Pravda, em russo, significa “a verdade”.
Esse foi o nome do jornal do Comitê Central do Partido Comunista da
URSS, que desempenhava a função de voz oficial do Estado soviético. O
conceito de verdade oficial é o pilar sobre o qual se ergue a chamada TV
Pública, criada por medida provisória do Executivo.
O ministro da Comunicação Social, Franklin
Martins, autor intelectual do projeto, reivindica como fonte de
inspiração a BBC, rede pública britânica. Os críticos, por outro lado,
enxergam na Telesur de Hugo Chávez o modelo do que alcunharam de TV
Lula. Mas a nova rede brasileira não se assemelha à BBC, pois carece de
independência, nem à Telesur, pois carece de um programa político e
ideológico.
A BBC nasceu em 1922, como consórcio
privado para emissões radiofônicas experimentais, transformando-se anos
depois numa companhia estatal de televisão. Sua incorporação pelo Estado
respondia aos objetivos geopolíticos de obtenção de liderança na nova
tecnologia de TV e de manutenção de uma influência mundial que se esvaía
no ritmo da crise do Império Britânico. No pós-guerra, com a dissolução
do Império, a BBC afirmou-se progressivamente como centro noticioso
independente. Essa condição, comprovada recentemente na cobertura da
invasão do Iraque, reflete a tradição de separação entre Estado e
governo na Grã-Bretanha e se expressa num conselho cujos integrantes são
indicados pela rainha.
A chamada TV Pública brasileira não é
pública nem estatal, mas puramente governamental. Franklin Martins caçoa
da opinião pública quando promete independência para um ente dirigido
por um Conselho Curador, um Conselho Diretor, um Conselho de
Administração e uma Diretoria Executiva preenchidos por nomeações
presidenciais. Ao contrário da BBC, a rede brasileira será a voz da
verdade do governo de turno e, também, um prêmio para jornalistas e
intelectuais que não têm vergonha de desempenhar o papel de áulicos dos
poderosos da hora.
A Telesur, embora formalmente
plurinacional, é um instrumento da política externa “bolivariana” de
Hugo Chávez. Trata-se de uma TV estatal, mas de um Estado que se
identifica cada vez menos com a nação venezuelana e cada vez mais com o
regime chavista. Sua missão é desfraldar a bandeira da “Pátria Grande”
latino-americana, difundir o antiamericanismo e promover a liderança do
caudilho entre correntes nacionalistas e de esquerda no subcontinente.
Ao contrário de Chávez, Lula é um
conservador e um pragmático, cujas tendências salvacionistas não o
impedem de governar com as elites econômicas e de restaurar a influência
evanescente de elites políticas anacrônicas. A rede de TV que implanta
não tem a pretensão de veicular uma verdade que se quer histórica, mas
unicamente as verdades minúsculas que interessam ao Planalto. Em
princípio, é mais um privilégio posto à disposição de futuros ocupantes
do Executivo e um campo de trabalho para jornalistas empenhados em se
deitar à sombra fresca da árvore do poder.
Há tempo, correntes do PT inconformadas
com a “democracia burguesa” reivindicam do governo Lula um programa de
“controle social da mídia”, eufemismo que abrange tanto a criação
estatal de veículos subordinados ao partido como a limitação da
liberdade de imprensa. A pressão surtiu efeitos periféricos, como o
direcionamento de verbas de propaganda de empresas estatais para o
financiamento de veículos impressos e eletrônicos que praticam o
jornalismo chapa-branca. A nova rede de TV não é, primariamente, uma
resposta a essas demandas, mas um produto da divulgação midiática dos
escândalos de corrupção no governo federal.
O terremoto do “mensalão” convenceu Lula a
criar uma rede de mídia subordinada à sua vontade. Franklin Martins e
Tereza Cruvinel, comentaristas políticos destacados que, desafiando os
fatos, funcionaram durante a crise como porta-vozes informais das
narrativas do Planalto, foram recompensados, respectivamente, com os
cargos de ministro e presidente da nova Empresa Brasileira de
Comunicação. Helena Chagas, a jornalista que alertou o então ministro
Antonio Palocci para uma incomum movimentação na conta bancária do
caseiro Francenildo Costa, ganhou o cargo estratégico de diretora de
jornalismo da TV governamental.
As indicações evidenciam que, ao contrário
do que afirma Franklin Martins, o foco da rede de TV será o jornalismo
político, não a disseminação da produção cultural regional, uma missão
das TVs educativas estaduais. Mas onde está o argumento para justificar
que o governo deve gastar impostos produzindo jornalismo político?
Karl Marx escreveu, no longínquo 1842, uma
série de artigos em defesa da liberdade de imprensa. Juntamente com uma
crítica devastadora da censura, cuja leitura recomendo aos marxistas
atuais, entusiastas de regimes que fecham jornais e encarceram
jornalistas, registrou singelamente que, em todos os lugares,
“documentos oficiais do governo se beneficiam de perfeita liberdade de
imprensa”. Muito anterior ao desenvolvimento das modernas máquinas de
propaganda que permitem aos governos importunar os cidadãos dia e noite
com a sua própria versão de todas as coisas, o registro de Marx gera uma
indagação: qual é a utilidade social de uma mídia governamental?
A indicação de Helena Chagas para a
direção de jornalismo merece atenção particular. Voluntária ou
distraidamente, ela rompeu uma regra de ouro do jornalismo, segundo a
qual ninguém - muito menos as autoridades! - pode ter acesso
privilegiado a uma notícia de interesse público. A sua participação
instrumental na quebra ilegal do sigilo bancário de uma testemunha, um
crime de Estado típico de regimes policiais, é uma aula inteira sobre as
relações incestuosas entre jornalismo e governo. A concepção que cerca a
nova rede de TV interpreta o incesto como virtude e, orwellianamente,
traduz submissão como independência. O Pravda nunca publicou a verdade.