BLOCO
Blog dos Coordenadores ou Blog Comunitário
da
ComUnidade
WirelessBrasil
Outubro 2010 Índice Geral do BLOCO
O conteúdo do BLOCO tem forte vinculação com os debates nos Grupos de Discussão Celld-group e WirelessBR. Participe!
28/10/10
• Marco Regulatório de Telecom (14) - Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações - por Por Octavio Penna Pieranti e Paulo Emílio Matos Martins
Olá. WirelessBR e Celld-group!
Nos próximos dias 9 e 10 de
novembro o governo pretende fazer em Brasília um seminário internacional sobre o
marco regulatório da radiodifusão, comunicação social e telecomunicações.
Na viagem que fez à Europa, Franklin Martins convidou representantes de agências
reguladoras do setor a vir ao Brasil participar do seminário. A Unesco e a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também foram
convidadas.
Já opinei que,
ao tentar misturar legislação de telecom com ideologia, Franklin Martins presta
um enorme desserviço à sociedade e aos profissionais das áreas envolvidas.
Agradeço ao Bruno Cabral a indicação desta matéria, que serve de ambientação
sobre o assunto.
Aqui está o "post" anterior:
09/10/10
•
Marco
Regulatório de Telecom (13) - Na contramão dos anseios da sociedade, Franklin
Martins elabora projeto de "controle social" da mídia
Boa leitura!
Um abraço cordial
Helio Rosa
Portal WirelessBRASIL
BLOCOs
Tecnologia e
Cidadania
------------------
Obs: Prefira sempre ler na
fonte!
Fonte: Observatório da Imprensa
[01/05/07]
Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações - por Por
Octavio Penna Pieranti e Paulo Emílio Matos Martins
Publicado originalmente na
Revista de Economía Política de las
Tecnologías de la Información y Comunicación, vol. IX, nº 1, jan-abr/2007;
título original "A radiodifusão como um negócio: um olhar sobre a gestação do
Código Brasileiro de Telecomunicações"
Este artigo tem como objetivo apresentar um olhar sobre a gestação do Código
Brasileiro de Telecomunicações, promulgado em 1962, confrontando-o com o mercado
nascente e analisando os atores envolvidos em sua aprovação, seus interesses e o
debate acerca do texto da lei. Fez-se uso de documentos legais, atas de
votações, registros em publicações oficiais acerca do processo legislativo, além
de livros e artigos acadêmicos.
Introdução
Em 1962, a radiodifusão e a telefonia brasileiras ganharam seu primeiro grande
marco regulatório, o Código Brasileiro de Telecomunicações. Passados mais de
quarenta anos de sua promulgação, o conteúdo relativo à telefonia foi revogado e
outros artigos foram mutilados, novas tecnologias impuseram uma lógica de
desenvolvimento peculiar ao setor e diversas leis e decretos passaram a
funcionar como apêndice do código, mas esse continua vigente. Este artigo tem
por objetivo analisar o processo que levou à aprovação do Código Brasileiro de
Telecomunicações pelo Congresso Nacional em 1962, correlacionando-o à expansão
da radiodifusão no Brasil.
Metodologia
Este artigo é uma investigação histórica que se baseia na interpretação dos
acontecimentos e na análise das estruturas duradouras, tidas como centrais para
a compreensão do tema ora estudado, sem rígido apego à narrativa linear calcada
na ausência de remissões e inflexões, em consonância com o paradigma da Nova
História (CURADO, 2001). Ainda assim, observações referentes a personagens e a
eventos conjunturais são determinantes, bem como o domínio político, por sua
excelência para as Comunicações no Brasil, é o cerne deste estudo.
Adicionalmente, uma análise documental e bibliográfica é feita em relação à
legislação, às atas das votações que levaram à aprovação do Código Brasileiro de
Telecomunicações e ao Diário do Congresso Nacional, onde foram publicados os
vetos à lei feitos pelo então Presidente da República João Goulart.
Parte desses documentos foram avaliados por meio de técnicas de análise de
conteúdo, com o objetivo de categorizar, de acordo com tipologia específica, os
vetos estabelecidos ao CBT pelo então Presidente da República, João Goulart. As
categorias analisadas baseiam-se em uma interpretação qualitativo-quantitativa
dos vetos. Para defini-las, foram levantadas suas freqüências em valores
absolutos e em percentuais. Como ressaltam Dellagnelo e Silva (2005), admite-se,
neste método, a utilização dessas abordagens quantitativas simples para uma
posterior interpretação qualitativa.
Foram respeitados, na construção da tipologia adotada, os limites impostos pelo
método da análise de conteúdo. Como destacam Bardin (1977) e Vergara (2005), as
categorias devem ser homogêneas, sendo factíveis para o tratamento de um mesmo
assunto; exaustivas, abrangendo por completo o que se propõem a reunir sem
deixar margem a dúvidas; exclusivas, impedindo que uma mesma unidade ou elemento
se encaixe em mais de uma categoria; e pertinentes, adequando-se ao problema
estudado e aos objetivos da pesquisa empreendida.
Apesar de, em parte, publicadas em meios de comunicação oficiais, as principais
fontes utilizadas neste trabalho estiveram distantes de pesquisadores nas
últimas décadas, de acordo com levantamento bibliográfico feito para este
estudo. Trata-se de edições do Diário do Congresso Nacional e de atas de
votação, ou seja, documentos relativos ao processo de aprovação do CBT, do qual
constam votos, vetos, justificativas e discursos do Presidente da República, de
senadores e de deputados.
O mercado de radiodifusão em 1962
Desde 1922, quando foi realizada a primeira transmissão de rádio no Brasil, a
radiodifusão não parou de crescer. Nas primeiras transmissões, ainda não era
possível dimensionar a força que o novo meio ganharia no Brasil, graças a uma
programação centrada em radionovelas, no radioteatro e nos programas de
auditório. Nas décadas de 1940 e 1950, quando o rádio viveu seu auge, foram
revelados cantores e atores que se tornariam referências nacionais.
Some-se à possibilidade de inovar uma outra, a de investir em mercado
tardiamente regulado, incipiente e promissor. Quase uma década depois de
começarem as transmissões, a regulamentação do setor foi iniciada por dois
decretos, 20.047 de 1931 e 21.111 de 1932, promulgados no governo de Getúlio
Vargas. Com a regulação tardia, o governo via-se obrigado a enfrentar, de saída,
a pressão de empresários em defesa de seus direitos adquiridos. A regulamentação
tardia da radiodifusão, como lembra Godoi (2001), viria a caracterizar o setor
em toda a sua história.
Até o início da década de 1950, a expansão do rádio no Brasil ocorreu conforme
demonstrado no gráfico 1:
Gráfico 1: Emissoras de Rádio no Brasil (1946-1951)
Fonte: Elaboração dos autores, com base no Anuário
Estatístico do IBGE. Não estavam disponíveis os modos de transmissão de duas
emissoras em 1948, uma em 1949 e 28 em 1951.
À época, ainda predominavam as transmissões em ondas médias, sendo poucas as
emissoras que operavam em ondas tropicais. O crescimento percentual do número de
emissoras no Brasil pode ser observado no gráfico 2, abaixo:
Gráfico 2: Crescimento Percentual das Emissoras de Rádio no Brasil (1946-1951)
Fonte: Elaboração dos autores, com base no Anuário
Estatístico do IBGE
Note-se que, apesar do número de emissoras no Brasil continuar em franca
ascensão (à exceção do total de emissoras em 1951 em relação ao ano anterior,
que ficou estável), esse crescimento tendia a ser cada vez menor.
Na mesma época, aliando som e imagem, um novo meio de comunicação chegava aos
lares de algumas poucas famílias brasileiras. A TV Tupi, responsável pela
primeira transmissão de televisão em 1950, brevemente se estenderia por outras
cidades e estados, formando uma rede e sendo seguida, neste mesmo processo, por
outras emissoras. Entre 1959, ano em que começou a ser divulgado pelo IBGE o
número de emissoras de televisão existentes no Brasil, e 1962, ano de
promulgação do CBT, aumentou de oito para 27 esse número, comportando-se da
seguinte forma:
Gráfico 3: Crescimento Percentual das Emissoras de TV no Brasil (1959-1962)
Fonte: Elaboração dos autores, com base no Anuário
Estatístico do IBGE
O aumento no número de emissoras ocorria a cada ano, porém também era cada vez
menor. Ao rádio, restou outra estratégia – a interiorização, ocupando a maior
parte do território brasileiro, onde a TV, por questões técnicas, não chegava ou
chegava com dificuldade. Note-se, no gráfico 4, que a interiorização foi
promovida basicamente por meio das emissoras transmitidas em ondas médias:
Gráfico 4: Crescimento das Emissoras de Rádio no Brasil (1959-1962)
Fonte: Elaboração dos autores, com base no Anuário
Estatístico do IBGE
As transmissões em ondas médias eram preferencialmente adotadas em todo o Brasil
e eram a forma dominante principalmente no interior. Nas capitais, faziam-se
notar, também, as emissoras em ondas curtas. O altíssimo número de emissoras
transmitidas em ondas médias no interior fez com que, em valores absolutos,
viesse de longe das capitais o maior número de emissoras de rádio,
caracterizando o rádio como o meio de comunicação por excelência do interior. O
gráfico 5 possibilita uma comparação entre as taxas de crescimento do rádio na
capital e no interior:
Gráfico 5: Crescimento Percentual das Emissoras de Rádio no Brasil (1959-1962)
Fonte: Elaboração dos autores, com base no Anuário
Estatístico do IBGE.
Com base nas estatísticas descritivas de crescimento da radiodifusão nas décadas
de 1940, 50 e 60, pode-se formular hipóteses quanto ao mercado, que demandam
investigação posterior para serem validadas ou refutadas. A diminuição na taxa
de crescimento das emissoras de radiodifusão pode ser reflexo dos seguintes
fatores: inexistência de condições técnicas apropriadas para a expansão das
emissoras e formação de redes, falta de empresários com recursos suficientes
para proceder aos investimentos necessários; e ausência de um marco regulatório
que desse garantias e segurança aos interessados no setor.
Enquanto o rádio se consolidava no interior, a televisão avançava sobre o bolo
publicitário brasileiro, cujas verbas mais fartas tradicionalmente se concentram
nas capitais. Em 1962, pela primeira vez, a TV ultrapassou percentualmente o
rádio nesse quesito, chegando a ocupar 24,7% do bolo publicitário contra 23,6%,
distância que viria a aumentar nos anos seguintes, conforme demonstrado pelo
gráfico 6:
Gráfico 6: Participação Percentual no Bolo Publicitário Brasileiro (1955-1966)
Fonte: Publicidade Brasileira, 2 (17): 6, jun. 1978, apud
Lattman-Weltman, 2003
Note-se o grande salto na participação das emissoras de TV no bolo publicitário
entre 1960 e 1962: o índice saltou, em dois anos, de 9% para 24,7%. Em 1966, a
TV se tornaria o meio com maior participação no bolo publicitário (39,5%),
superando também a revista, que passou a ter 23,3% da fatia contra 17,5% do
rádio.
O mercado da radiodifusão tornava-se ainda mais interessante aos investidores,
graças ao interesse do próprio Estado em participar de operações no setor. O
IBGE reconhecia, em 1956, 28 emissoras de rádio mantidas com subvenções
estatais: uma no Maranhão, uma no Pará, uma em Pernambuco, uma em Alagoas, oito
em Minas Gerais, duas no Espírito Santo, duas no Rio de Janeiro, sete em São
Paulo, duas no Paraná, duas no Rio Grande do Sul e uma em Mato Grosso.
Ajudados pelas benesses estatais, os empresários donos de meios de comunicação
de massa, independentemente da mídia em que operavam, amparavam-se nos favores
gerados no seio do Estado para consolidarem suas empresas. Já regulado o rádio,
permaneciam sem regulação consolidada as transmissões de televisão, apesar de
obviamente demandarem especificações técnicas próprias. A ausência de regulação
favorecia, em parte, os interessados em investir no setor. Se, por um lado, a
obtenção de uma concessão dependia de critérios mais subjetivos, tal como apoio
político, por outro, não precisavam se preocupar, por exemplo, com questões
relativas a limites para a posse de emissoras, caráter dos investimentos e tipo
de programação a ser veiculada.
A relação de permissividade e de simbiose entre interesses público e privado não
se restringia ao financiamento de atividades por parte dos agentes públicos.
Empresários do setor, aos poucos, alcançaram cargos políticos de destaque e
teriam papel importante na empreitada que levaria à regulação da radiodifusão no
Brasil, por meio da promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações.
Os vetos de João Goulart
Na mensagem nº173, datada de 27 de agosto de 1962 e publicada na seção II do
Diário do Congresso Nacional de 5 de setembro de 1962, o Presidente da República
João Goulart relacionou 52 vetos ao projeto de lei que instituía o Código
Brasileiro de Telecomunicações (CBT) (BRASIL, 1962a). Fruto de nove anos de
negociações, o CBT fora protocolado como Projeto de Lei do Senado nº 36, de
1953, e, depois, na Câmara dos Deputados, com o número 3.549, de 1957 (BRASIL,
1962b).
Antes dos vetos, o documento refletia os entendimentos entre militares,
estudiosos da telefonia e de sistemas de transmissão de dados (PIERANTI, 2005),
e civis, notadamente empresários com interesses no setor. Não era preciso em
relação aos critérios para distribuição de concessões de emissoras de rádio e de
televisão, nem em relação a punições de eventuais infrações. Técnico em sua
essência, não estipulava limites rígidos para as diferentes formas de
preenchimento das freqüências. Os vetos estabelecidos pelo Presidente da
República foram separados em categorias na tabela abaixo:
Vetos de João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT)
|
Número de Vetos |
% do Total |
Fortalecimento do Presidente da República |
13 |
25 |
Competências de ministérios e outros órgãos |
16 |
30,77 |
Conflito com outros marcos legais |
8 |
15,38 |
Imprecisão do texto do CBT |
11 |
21,15 |
Outras |
4 |
7,70 |
Total |
52 |
100% |
Fonte:
Elaboração dos autores
A primeira categoria, fortalecimento do Presidente da República, envolve todos
os vetos que, de alguma forma, buscavam ampliar a participação do Poder
Executivo nas telecomunicações seja como autoridade concessionária, seja como
ente responsável por supervisionar medidas e ações referentes ao tema tratado.
Como exemplo do primeiro papel, podem-se destacar os exemplos abaixo (as razões
do Presidente da República estão precedidas pelo texto final do Código
Brasileiro de Telecomunicações):
"Veto: Artigo 33 § 3º
Texto: Os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o
serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão,
podendo ser renovados por períodos sucessivos e iguais, se os concessionários
houverem cumprido todas as obrigações legais e contratuais, mantido a mesma
idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público (art. 29
X).
Justificativa: O prazo deve obedecer ao interesse público, atendendo a razões de
conveniência e de oportunidade, e não fixado a priori pela lei. Seria restringir
em demasia a faculdade concedida ao Poder Público para atender a superiores
razões de ordem pública e de interesse nacional o alongamento do prazo da
concessão ou autorização, devendo ficar ao prudente arbítrio do poder concedente
a fixação do prazo de que cogita o inciso vetado.
(...)
Veto: Expressão "se a respectiva concessionária ou permissionária decair do
direito à renovação" no Caput do artigo 75
Texto: A perempção da concessão ou autorização será declarada pelo Presidente da
República, precedendo parecer do Conselho Nacional de Telecomunicações, se a
respectiva concessionária ou permissionária decair do direito à renovação.
Justificativa: Tratando-se de concessão, ou permissão ou autorização, não se
deve construir ou estabelecer nenhum direito da renovação que tolheria o
prudente arbítrio da autoridade concedente." (PIERANTI, 2005, p. 121-122)
Como exemplo da pretendida ampliação de poder por parte do Poder Executivo,
pode-se destacar o seguinte veto:
"Veto: Artigo 33 § 4º
Texto: Havendo a concessionária requerido, em tempo hábil, a prorrogação da
respectiva concessão ter-se-á a mesma como deferida se o órgão competente não
decidir dentro de 120 (cento e vinte) dias
Justificativa: Não se justifica que, competindo à União o ato de fiscalizar, de
gerir, explorar ou conceder autorização, ou permissão ou concessão etc., o seu
silêncio, muitas vezes provocado pela necessidade de acurado exame do assunto,
constitua motivação para deferimento automático. Os problemas técnicos surgidos,
as exigências necessárias à verificação do procedimento das concessionárias etc.
podem, muitas vezes, ultrapassar o prazo de 120 dias, sem qualquer culpa da
autoridade concedente." (PIERANTI, 2005, p. 121)
A segunda categoria, competências de ministérios e outros órgãos, abrange os
vetos que discutiam a participação nas telecomunicações e na radiodifusão dos
diversos atores ligados ao Estado, exceção feita ao Presidente da República.
Neste âmbito, estão ministérios, poderes Legislativo e Judiciário e o Conselho
Nacional de Telecomunicações, que João Goulart propôs, por exemplo, ser
vinculado ao Ministério da Viação e das Obras Públicas. Um dos vetos
estabelecidos foi:
"Veto: Parágrafo único do artigo 53
Texto: Se a divulgação das notícias falsas houver resultado de erro de
informação e for objeto de desmentido imediato, a nenhuma penalidade ficará
sujeita a concessionária ou permissionária.
Justificativa: A veracidade da informação deve ser objeto de exame antes da
divulgação da notícia, não sendo justo que alguém transmita uma informação
falsa, com todos os danos que daí podem decorrer, inclusive para a segurança
pública, sem sujeição a qualquer penalidade. A apreciação da boa ou má fé da
divulgação ficará a cargo da autoridade competente ou do Poder Judiciário, se
for o caso." (PIERANTI, 2005, p. 121)
As duas categorias seguintes, conflito com outros marcos legais e imprecisão do
texto do CBT, que, juntas, englobam 36,53% dos vetos, são de interesse
secundário para esta pesquisa, referindo-se a questões legais e à inserção deste
novo documento no espírito do manancial legal vigente no país. A quinta
categoria, outras, reúne os vetos que não se encaixam nas categorias anteriores.
As duas primeiras categorias, fortalecimento do Presidente da República e
competências de ministérios e outros órgãos, abrangem, juntas, 55,77% dos vetos.
Enfraquecido como Presidente da República, João Goulart seria deposto menos de
dois anos depois da promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações. Em
1962, ainda tentava dar, no campo das telecomunicações, ao Estado e a ele
próprio a força de que fora daquele campo não dispunha.
O fortalecimento do Estado contrastava com as pretensões de alguns atores,
manifestadas explicitamente nos artigos do Projeto de Lei que instituía o Código
Brasileiro de Telecomunicações. Ao se opor às concessões de emissoras de
radiodifusão por prazos pré-determinados, Goulart usava como justificativa o
"interesse público" – neste caso, estatal – ao qual as emissoras e as concessões
públicas deveriam se submeter. Opunha-se, ainda, ao estabelecimento de normas
que restringissem o poder de regulação do Estado, bem como seu papel de
fiscalizador das concessões. Ao rechaçar prazos fixos para as concessões e a
possibilidade de renovação automática das mesmas, na ausência de posicionamento
por parte do agente regulador, ampliava os riscos do investidor, nele
reconhecendo a possibilidade de dissonância em relação ao "interesse público".
Quando confrontado esse interesse com a pretensão pessoal dos empresários,
deveria prevalecer, de forma incontestável, o primeiro, a ser definido e
defendido pelo agente estatal.
Note-se que essas contestações do Presidente da República não se restringiam ao
modelo de concessões públicas, mas também às informações veiculadas pelos meios
de comunicação eletrônicos. Isso fica claro no veto de Goulart ao parágrafo
único do artigo 53 do Projeto de Lei em discussão. Para justificar a existência
de uma censura prévia a esses meios, o Presidente da República fazia uso de
conceitos como "justiça" e "má fé" da divulgação das notícias – conceitos
flexíveis, amplos e passíveis de interpretação diferenciada, dependendo do
ocupante do cargo máximo da hierarquia federal. Defendida a censura prévia,
Goulart não a requisitava para si ou para qualquer órgão a ele diretamente
submetido, ficando essa prática como responsabilidade do Poder Judiciário ou de
outra autoridade competente para a função.
Publicada no Diário do Congresso Nacional, a defesa dos vetos feita por Goulart
e, em sua essência, a defesa do papel do Estado como regulador essencial das
telecomunicações, foi apreciada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
A apreciação do Congresso Nacional
Quando o Congresso Nacional reuniu-se, no dia 26 de novembro, para apreciar os
vetos de João Goulart ao Projeto de Lei que instituía o Código Brasileiro de
Telecomunicações, já era evidente a força de empresários (e futuros empresários)
de mídia no parlamento brasileiro. De reuniões anteriores haviam participado,
por exemplo, Carlos Lacerda, dono da Tribuna da Imprensa, e Antônio Carlos
Magalhães, que, com o tempo, viria a se tornar um dos principais nomes da
radiodifusão nacional. Convocado o Congresso Nacional para a votação às 21h30,
foi encerrada a discussão e constatada a falta de quorum para a votação (BRASIL,
1962c).
Nova sessão seria iniciada, no dia seguinte, com uma novidade. Na manhã daquele
dia (Abert, 2006), foi fundada a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
de Televisão – Abert. Até então, os empresários de mídia reuniam-se em
associações estaduais e em um sindicato das empresas proprietárias de meios de
comunicação de massa. A criação da Abert refletia a mobilização dos empresários
do setor, que haviam se organizado em função dos debates acerca do Código
Brasileiro de Telecomunicações e, posteriormente, em oposição aos vetos de João
Goulart. Posicionavam-se, assim, contrariamente ao fortalecimento da presença do
Estado na radiodifusão brasileira.
Entre os que se dedicaram à formação de um grupo de pressão contrário aos vetos
de Jango estavam personagens de destaque no cenário político (ou que viriam a
tê-lo), radialistas e especialistas em radiodifusão. Nos dois últimos grupos,
estavam, por exemplo, José de Almeida Castro, Mário Ferraz Sampaio e Enéas
Machado de Assis (que, por sua vez, já participara das discussões no Congresso
Nacional como especialista em radiodifusão). No primeiro grupo a lista é
extensa. Antônio Abelin já exercera mandato de vereador em Santa Maria, Rio
Grande do Sul. João Calmon, representante dos Diários Associados, voltaria a
freqüentar os mesmos corredores do Congresso Nacional em que, no fim de 1962,
liderou o movimento dos empresários. Em 1963, ele se elegeria deputado federal
e, na década seguinte, senador da República. Clóvis Ramalhete se tornaria
ministro do Supremo Tribunal Federal. Nagib Chede conquistaria vaga de deputado.
Todos esses são reconhecidos pela própria Abert (2006) como peças-chave na luta
contra os vetos de João Goulart.
A aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações dar-se-ia em duas reuniões
do Congresso Nacional – a segunda, no dia seguinte à primeira, em 28 de
novembro. Nelas, cada um dos vetos de João Goulart seria derrubado, um a um, em
votação nominal, o que sugere a despreocupação dos votantes com a impressão que
a sociedade e seus eleitores poderiam ter de suas manifestações. Entre os vetos
citados na seção anterior, os prazos das concessões (Artigo 33 § 3º) seriam
mantidos por 181 votos contra 50 e 7 em branco; a possibilidade de deferência
automática da renovação às concessões seria mantida por 187 votos contra 49 e 2
em branco; a impossibilidade de punição a empresas que desmentissem eventuais
notícias falsas rapidamente foi mantida por 235 votos contra 11 e sete em
branco; e as restrições à perempção da concessão constantes do artigo 75 foram
mantidas por 243 votos contra 3 e 7 em branco.
Curiosamente, nem o Presidente da República, nem os congressistas que aprovaram
o Código Brasileiro de Telecomunicações consignaram qualquer objeção ao
parágrafo único do artigo 38 do documento. Determina o dispositivo: "Não poderá
exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou
televisão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial."
(BRASIL, 1962d)
Em 1988, a nova Constituição Federal passaria a proibir, em seu artigo 54, que
parlamentares firmassem ou mantivessem contrato com empresas concessionárias de
serviço público, como é o caso das emissoras de rádio e de televisão, ou que
aceitassem ou exercessem cargos ou funções nelas (PIERANTI, 2005). Juntos,
Código Brasileiro de Telecomunicações e Constituição Federal poderiam ter
restringido sobremaneira a influência de parlamentares no setor. Na prática,
porém, as restrições não surtiriam efeito.
Considerações finais
O processo de discussão, de elaboração e de aprovação do Código Brasileiro de
Telecomunicações exemplifica de forma precisa a conjuntura de forças no cenário
da radiodifusão na década de 1960 e que, de certa forma, tem eco até o presente.
Cabe apontar, como observado, que, à época da promulgação do Código Brasileiro
de Telecomunicações, a radiodifusão já despertava grandes interesses por pelo
menos dois motivos. Um deles era inequívoco: emissoras de rádio e de televisão
já apareciam como excelente veículo político, sendo arma importante em qualquer
campanha eleitoral. O segundo estava se consolidando: crescia o mercado de
radiodifusão e, com ele, crescia a participação dos meios de comunicação
eletrônicos no bolo publicitário. Enquanto o rádio firmava-se como o meio de
comunicação, por excelência, do interior do país, sendo, não raro, o único que
realmente chegava às áreas mais afastadas, a televisão conquistava as cidades e
antevia a possibilidade de ampliar sua área de recepção. A radiodifusão
tornava-se, então, negócio lucrativo e com bom potencial de crescimento, porém,
no raiar da década de 1960, já diminuía a taxa de crescimento da radiodifusão,
conforme constatado.
Revelava-se, já na década de 1960, a formação de um grupo de pressão ligado à
radiodifusão comercial. Os membros desse grupo não se restringem ao próprio
empresariado, estendendo-se a representantes políticos, que, muitas vezes, se
confundem com os primeiros. A presença de empresários do setor entre os
parlamentares, embora em flagrante dissonância com os dispositivos do Código
Brasileiro de Telecomunicações e da Constituição Federal, permite a ampliação da
força desse grupo de pressão. A simbiose entre público e privado, com parte do
Congresso Nacional legislando em causa própria (e, portanto, defendendo seus
interesses de forma ferrenha), fica caracterizada neste caso. Some-se a isso o
acesso facilitado à sociedade que os empresários têm por intermédio dos seus
meios de comunicação, possibilitando a difusão de suas idéias com vistas à
influência da opinião pública.
Juntos, empresariado e parte do Congresso Nacional (seja os primeiros
representados no segundo, seja o inverso) constituem entrave considerável à
possível (e nem sempre freqüente) oposição do Poder Executivo. Decisões, em
contextos democráticos, do Presidente da República que contrariem esses
interesses dificilmente encontram respaldo e apoio decisivo no Congresso
Nacional. Vale lembrar que, historicamente, a ação dos meios de comunicação tem
se mostrado, no Brasil, decisiva para a condução de governos, sugerindo que o
enfrentamento entre Poder Executivo e mídia dificilmente se mostraria proveitoso
para o primeiro. O eficiente grupo de pressão deixa espaço diminuto para o
atendimento de demandas nascentes no âmbito de movimentos sociais ligados às
Comunicações. Há de se questionar, portanto, a possibilidade de mudanças no
setor, dada a eficiência histórica da atuação do empresariado.
Em 1962, essa relação de forças era menos clara. Por meio de seus vetos ao CBT,
João Goulart opôs-se a interesses dos empresários, aparentemente reunidos de
forma pulverizada em associações regionais, e apostou em sua própria força no
Congresso Nacional. O resultado desse choque demonstra que, apesar da
descentralização organizacional, já eram claros os interesses coletivos, sendo
grande a capacidade de aglutinação em torno deles. A criação da Abert, portanto,
mais que criação de um grupo de pressão, configura-se como consolidação da
predisposição para a defesa de interesses coletivos existentes anteriormente. Ao
darem origem à associação justamente no dia em que seria revelado o resultado da
pressão coletiva dos meses anteriores, os empresários mostraram que já era
grande sua organização.
Referências
- ABERT. História da Abert. Abert, 2006. Disponível
aqui. Acesso em: 2. mai. 2006.
- ANUÁRIO ESTATÍSTICO. Rio de Janeiro: IBGE, 1946-
- BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
- BRASIL. Mensagem nº 173. Diário Oficial do Congresso Nacional, Seção II,
Brasília, DF, 5 set. 1962a.
- Relatório nº 24. Diário Oficial do Congresso Nacional, Brasília, DF, 21 nov.
1962b.
-Atas das Comissões. Brasília, DF, 1962d (mimeo).
- Lei nº 4117, de 27 de agosto de 1962d. Institui o Código Brasileiro de
Telecomunicações. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, 05. out. 1962. Disponível aqui. Acesso em: 6. jun. 2004.
- CURADO, Isabela. Pesquisa Historiográfica em Administração: uma Proposta
Mercadológica. In: Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de
Pós-Graduação em Administração, 25., 2001, Campinas. Anais. Campinas, SP: Anpad,
2001.
- DELLAGNELO, Eloise Helena Livramento; SILVA, Rosimeri Carvalho da. Análise de
conteúdo e sua aplicação em pesquisa na Administração. In: VIEIRA, Marcelo
Milano Falcão; ZOUAIN, Deborah Moraes. Pesquisa Qualitativa em Administração:
Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.
- GODOI, Guilherme Canela de Souza. Históricos e Perspectivas: Uma Análise da
Legislação e dos Projetos de Lei sobre Radiodifusão no Brasil. Cadernos de CEAM:
As relações entre mídia e política, Brasília, ano 2, n. 6, 2001.
-LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Mídia e transição democrática: a (des)institucionalização
do pan-óptico no Brasil. In: ABREU, Alzira Alves de; KORNIS, Mônica Almeida; -
LATTMAN-WELTMAN, Fernando (org.). Mídia e Política no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2003.
- PIERANTI, Octavio Penna. Políticas Públicas para Radiodifusão e Imprensa: Ação
e Omissão do Estado no Brasil pós-1964. Rio de Janeiro: EBAPE/FGV, 2005.
Dissertação de mestrado (mimeo).
- VERGARA, Sylvia Constant. Método de Pesquisa em Administração. São Paulo:
Atlas, 2005.
[Procure "posts" antigos e novos sobre este tema no Índice Geral do BLOCO] ComUnidade WirelessBrasil