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Leia na Fonte: Link Estadão
[05/02/17]  Rashomon e a franquia na internet fixa (1) e (2) - por Demi Getschko

Seria necessário estabelecer um segundo limite a algo que já tem um limite natural?

24/01/2017- 1ª parte

Rashomon, clássico filme de Akira Kurosawa, mostra que há diversas versões de um mesmo fato. Segue uma leitura pessoal, sem valor subjetivo do que seria “melhor”, “pior”, “benéfico” ou “maléfico” para usuários e fornecedores, do tema recorrente: a introdução ou não de “franquia” para internet fixa. Seria necessário estabelecer um segundo limite a algo que já tem um limite natural definido pela velocidade contratada? O modelo corrente é viável?

Existem modelos estatísticos a valor fixo e modelos proporcionais. Fixos podem ser planos de saúde, aluguel de veículos, restaurantes bufê ou rodízio e a própria internet fixa de hoje, ao definir patamares de custo. É fixo dentro da opção escolhida ou definida: idade, carro, variedade de comida, velocidade. Há modelos proporcionais ao consumo, como a conta de água ou luz, restaurantes por quilo, onde o valor varia de acordo.

Em muitos casos não há porque assumir que o valor cobrado do usuário deva ser proporcional ao consumo do serviço. Mesmo em modelos quantitativos, papéis e remuneração diferem. Na rede elétrica, que nos cobra por consumo, há três funções distintas: geração, transmissão e distribuição. Recebemos nossa conta do distribuidor e, por exemplo, sabemos que a energia consumida não foi gerada por ele.

Ao distribuidor cabe manter a estrutura capaz de entregar, digamos, 35 kW a cada uma das casas. Há componentes, proporcionais ao consumo, que envolvem gerador e transmissor (“linhões”) e outros, quase fixos, que pouco dependem do consumo, como o do distribuidor. Na internet, o que se consome também não é gerado pelo provedor. Ele cuida da obtenção e entrega de conteúdo, cuja fonte está nas pontas da rede. Ao provedor cabe manter a estrutura para isso.

Em nossas casas, o distribuidor da energia elétrica nos dá um limite de potência, por exemplo, 35 kW. Certamente a estrutura geral não comportaria uma demanda simultânea de “todas” as casas no pico. O distribuidor configura sua estrutura para suportar o pico do consumo “médio”. Esse máximo poderia, por exemplo, corresponder a 10 kW por residência, e a estrutura instalada deveria suportá-lo continuamente. O gerador e os “linhões” também estarão dimensionados para esse consumo.

Na internet, onde fluxo de conteúdo é bidirecional, os geradores estão nas pontas da rede. São, em sua maioria grátis, ou pagos diretamente com assinaturas, portanto a parcela de custo variável do “gerador”, que está na conta de luz, não faz parte da conta do provedor de internet.

Usemos, de forma ilustrativa, os mesmos números acima: alguém contrata um plano de acesso residencial a 35 Mbps. A estrutura estaria projetada, estatisticamente, para um consumo médio de 10 Mbps no conjunto de assinantes daquele plano de 35 Mbps. A expectativa lícita do usuário será, então, a de poder receber durante um mês, 10Mbps de média, o que daria cerca de 3 Terabytes de informação.

Esse seria o limite para ele. Tentar adicionar outro limite, uma “franquia” abaixo desse, é assumir que não se previu estrutura adequada e vendeu-se o que estatisticamente não é “entregável”.

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05/02/2017- 2ª parte

Na primeira parte da coluna sobre o modelo de contratação de internet fixa, sem franquia adicional – publicada em 22 de janeiro –, usou-se uma analogia com o serviço de energia elétrica. O paralelo entre as três camadas seria: geração de conteúdo (energia), transporte (“linhões”) e distribuição domiciliar. Na internet, o conteúdo é gerado pelos membros da rede, nas pontas, e ele é grátis ou pago diretamente por assinatura.

Aos provedores caberia cuidar das duas camadas remanescentes: transporte e distribuição. A distribuição, já discutida, depende de uma estrutura local que deve ser projetada para atender à demanda média prevista (CIR, na sigla em inglês) e tem um custo médio invariável com o uso instantâneo. Tratemos do transporte.

Nos primeiros anos de nosso acesso à internet, era natural que o conteúdo procurado estivesse no exterior, longe do usuário. Desta forma, o provedor teria de contratar uma banda adequada para trazer informação aos seus usuários. E esse custo, certamente, cresceria com a demanda. A analogia com a rede elétrica continua valendo: é preciso trazer mais eletricidade lá da usina para atender à demanda crescente dos usuários.

O que aqui acontece, entretanto, é que conteúdos frequentemente buscados no exterior acabam por migrar para perto dos usuários. Se na eletricidade “baterias” são usadas para fornecer energia instantânea sem demandá-la das “usinas”, na internet usam-se “caches”. Mas há uma diferença fundamental: enquanto as baterias elétricas esvaziam com o uso e precisam ser recarregas, as “baterias de informação” da internet não descarregam. Quando assisto a um filme por streaming, ele não é “gasto” e continua totalmente disponível para novo uso de todos.

Talvez uma analogia mais simples seria com TV por assinatura: o custo mensal não depende do tempo e dos canais aos quais o usuário assistiu.

A engenharia da internet, automaticamente, traz para perto dos usuários a informação que eles mais usam. Com isso, o custo dos “linhões” da internet deixa de subir na mesma taxa do consumo. Aliás, ao contrário da eletricidade ou da água, informações não são consumíveis. Os “bits” não se gastam com o uso e continuam sempre lá, disponíveis, usados ou não.

Os “caches”, as redes de distribuição de conteúdo (CDN) e os pontos de Troca de Tráfego são as baterias da rede. Informação disponível, barata e próxima do usuário. E, quanto mais previsível for o tipo de informação desejada, mais barato e eficiente será seu provimento. Nos pontos de troca de tráfego, geradores e consumidores de informação se interligam: os bits saem por uma porta e entram por outra, a caminho dos usuários e a um custo muito baixo.

Em resumo, o modelo de fornecimento por banda é viável, pouco sensível à previsível demanda crescente dos usuários. É um serviço estatístico, com limites impostos pela velocidade contratada e estrutura que atenda à média prevista, longe de ser uma internet ilimitada.

Adaptando o final ao Rashomon e às historinhas de antanho, “nos pontos de troca de tráfego, a vai-se de porta a porta e... quem quiser que conte outra”!

*É engenheiro eletricista