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Leia na Fonte:
Consultor Jurídico
[27/06/14]
Marco civil da internet deve embasar futuros diplomas sobre cibercrimes -
por Leonardo Rezende Cecilio
Leonardo Rezende Cecilio é advogado
criminalista, sócio do Lerner & Feijó Advogados. Especiailsta em Direito Público
pela Universidade Candido Mendes e pós-graduando em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Coimbra (Portugal). Membro da Association Internationale de
Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e do
Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI).
Na última segunda-feira (24/6) entrou em vigor a Lei 12.965/14, instituindo
o marco civil da Internet no Brasil. Trata-se de um ineditismo normativo de
escala internacional ao positivar princípios, direitos e garantias para o uso da
web no País e traçar diretrizes para a atuação dos entes federativos.
Pioneira em abrir consulta à sociedade civil, através de uma plataforma online,
em linhas gerais, a nova lei estabelece como fundamentos a finalidade social da
rede, os direitos humanos, o exercício da cidadania e a livre concorrência, e,
para isso, consagra a liberdade de expressão, a proteção da privacidade, a
preservação da neutralidade, da liberdade negocial e da natureza participativa
da internet. Insculpindo no ordenamento jurídico uma série de direitos de
usuários e provedores de conexão, o diploma cataloga bens jurídicos ligados à
tecnologia até então flutuantes na doutrina, moldando um novo parâmetro para
futuras legislações sobre crimes na web.
Modernamente, costuma-se creditar à disciplina penal a eficácia no combate à
criminalidade, recorrendo-se à incriminação reiterada de condutas e ao
recrudescimento das penas em uma desajeitada tentativa de se aplacar a ânsia por
segurança de uma coletividade que se autocompreende como vítima. A identidade de
ultima ratio do Direito Penal vai, assim, sendo subvertida pela cultura da
emergência, e conduzida à condenável prática de se legislar baseando-se em
episódios determinados.
As atuais configurações ostentam a valoração de novos elementos (ou, ao menos,
nova valoração de elementos já existentes) como indispensáveis para uma vida
plena e autorrealizada no contexto social, o que os torna novos paradigmas da
intervenção do Direito Penal. Mas, se a disciplina tem se expandido e se
condicionado a partir da urgência, a política criminal no ambiente web não seria
diferente.
Diretamente proporcional ao incremento das tecnologias da informação e
comunicação (TICs) é o aumento das atividades mal intencionadas no campo
informático. Sejam ações já previstas ou não na legislação penal, as
hostilidades informáticas são hoje destaque crescente nos relatórios de
segurança e na imprensa internacional, e sua complexa linguagem sui generis
desafia produtor, operador e destinatário da norma. A maior dificuldade na
definição de crimes no ambiente tecnológico é, seguramente, a identificação do
que se pretende tutelar.
Há um embaraço conceitual que faz considerar como crime informático qualquer
conduta hostil relacionada a computadores, chegando-se ao contrassenso de assim
se classificar até mesmo ações que sequer são definidas como crime. De todo
modo, a drasticidade do comparecimento do Estado no cotidiano social pela via
incriminadora declara que a escolha do legislador pelo Direito Penal demanda
parcimônia e precisão. Deve-se a isso o fato de a incriminação, para ser
legítima, ter de partir da eleição do bem jurídico.
Afirmava José Frederico Marques que toda infração penal pressupõe a violação de
uma proibição normativa de outro campo do Direito; a sanção punitiva complementa
uma outra norma (não penal), exercendo uma função de reforço e mantendo sob sua
égide o bem jurídico. Contudo, por força normativa do princípio da
fragmentariedade da disciplina, somente os bens jurídicos mais relevantes são
dignos da tutela penal, e para isso é necessário um juízo de importância social
bastante para se justificar sua real necessidade.
A política criminal que toca o ambiente de alta tecnologia hoje confunde
condutas direcionadas contra a informática com as que dela se valem como mero
instrumento para atacar bens jurídicos já contemplados no direito positivado. A
própria Convenção de Budapeste – que inaugurou no plano internacional o combate
normativo ao chamado cibercrime – propôs definições de delitos específicos a
partir da combinação de tipos já conhecidos com a circunstância peculiar de
serem praticadas através de sistemas informatizados – como os crimes contra a
honra e os crimes de ódio, que, como sabemos, já possuem seu bem jurídico bem
definido e não representam, por si só, qualquer risco à segurança da informação.
Uma difamação praticada em ambiente de trabalho ou em uma comunidade
residencial, por exemplo, não se difere de uma cometida via internet. Da mesma
forma, discursos racistas são discursos racistas – ocorram dentro ou fora da
rede.
Em casos como esses, temos – quando muito – crimes informatizados, que nada mais
são que meras versões digitais de delitos já tipificados e profundamente
estudados pela doutrina penalista. Hipótese totalmente diversa é aquela em que
uma conduta representa um ataque à segurança da informação ou das ferramentas
(físicas ou lógicas) responsáveis pelo processamento, armazenamento e
transferência de dados.
O marco civil da internet contempla a proteção da estabilidade, segurança e a
funcionalidade da rede (art 3º, V), trazendo para o direito positivo o resguardo
da disponibilidade da informação – garantia de que estará a serviço do usuário
quando acessada, e que é ameaçada, por exemplo, nos ataques de negação de
serviço (DDoS), que suspendem websites pela sobrecarga do servidor.
Outro exemplo é a proteção dos dados pessoais (art. 3º, III), que corresponde à
confidencialidade, à autenticidade à integridade da informação – garantidoras de
que ela será acessada somente por usuários autorizados e legítimos, e de que não
serão corrompidas. São violadas, dentre variadas possibilidades, quando há o
acesso indevido – seja remoto ou local – a um terminal.
É fundamental compreendermos a inviabilidade de se inserir na mesma categoria de
crimes condutas que violem bens jurídicos diferentes simplesmente porque
relacionadas à cibernética, porque, em geral, trata-se de uma questão de modus
operandi. O meio especializado hoje fala na tendência da Internet of Things (IoT),
a internet das coisas – que já está sendo construída.
Hoje, a internet já possui alcance interplanetário, conectando de satélites a
eletrodomésticos, e estima-se que, em futuro não muito distante, haverá uma
conexão absoluta em rede – incluindo seres vivos. Conceber como crime
informático toda a gama de possíveis delitos pela circunstância de estarem
vinculados às TICs será tão leviano quanto seria considerar como crime econômico
todo delito que guarde relação com dinheiro, como o furto de uma carteira
contendo moeda em espécie.
Referências:
BECK, Ulrich. O que é Globalização: equívocos do globalismo, respostas à
globalização. Trad. CARONE, André. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CECILIO, Leonardo Rezende; et al.. Complejidad Janus: La doble cara de la
información. In: FODERTICS 3.0. Coord. Federico Bueno de Mata. Santiago de
Compostela: Andavira, 2014 (no prelo).
MARQUES, Jose Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 1. 2ª Ed. Propedêutica
Penal e Norma Penal. São Paulo: Saraiva, 1964.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La Expansión del Derecho Penal: Aspectos de política
criminal en las sociedades postindustriales. Tercera Edición. Madrid: EDISOFER
S.L., 2011.
PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico penal e Constituição. Revista dos Tribunais,
1997.