FLÁVIA LEFÈVRE GUIMARÃES
WirelessBrasil
Dezembro 2014 Índice Geral
01/12/14
• MALDADES E INTROMISSÃO ILEGAL
A maldade mais fresquinha tirada da cartola das teles para engordar seus caixas
e reduzir a necessidade de investimentos imprescindíveis para o desenvolvimento
da internet no Brasil pretende ser uma grande sacada.
Há mais ou menos um mês as operadoras anunciaram que nos planos de banda larga
móvel contratados com franquias de volume de dados, quando esgotados os megabites correspondentes antes do final do mês, o serviço passará a ser
interrompido, ao invés de ser mantido com velocidade reduzida como vem ocorrendo
atualmente. Caso o consumidor queira continuar acessando a internet, deverá
pagar por mais dados.
E, na semana passada, divulgaram que estenderão este modelo de planos para a
banda larga fixa. O pior: com o apoio da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL),
que já se pronunciou no sentido de que não vê problemas, desde que o consumidor
seja avisado com no mínimo 30 dias antes da mudança dos contratos.
Genial! Cobram bem caro por planos ilimitados, a fim de atender aos grandes
consumidores corporativos e de alta renda, e cobram menos – mas ainda assim caro
– dos pequenos consumidores de baixa renda por planos com franquias de dados
pífias e, desta forma, garantem aumento da receita e redução de demanda por
capacidade de rede e, consequentemente, não se veem obrigadas a investir mais em
infraestrutura.
Além disso, pretendem se livrar do risco de descumprirem a obrigação expressa no
Marco Civil da Internet (MCI) – a de promover um gerenciamento das redes não
discriminatório e degradado; ou seja, de forma neutra, nos termos do que
determinou o art. 9º do MCI.
E para enganarem a sociedade anunciam que o objetivo da mudança é garantir
qualidade. Será? Só na cabeça das teles e da ANATEL é defensável que se
justifique reprimir o livre acesso à informação, cultura e liberdade de
expressão, sob o pretexto de melhorar a qualidade. Melhorar a qualidade para
quem? Para grandes corporações e consumidores de alta renda?
Além de ser absurda pelo aspecto do direito, a mudança anunciada altera
paradigmas assentados há anos com base em padrões técnicos; deixa-se de falar de
acesso para se falar em tráfego, trazendo para o provimento do serviço de acesso
à internet padrões de cobrança da telefonia, sem que haja justificativas
razoáveis para isso.
Entre os inúmeros problemas que decorrem desse modelo de negócios pretendido
pelas teles, dois, entre diversos outros, merecem destaque.
O primeiro diz respeito ao fato de que a estrutura da internet se organiza
basicamente em três camadas: a da rede física de telecomunicações, a camada de
redes de provimento dos serviços de acesso à internet, classificados como de
valor adicionado, nos termos do art. 61(1) , da Lei Geral de Telecomunicações (LGT)
e Norma 04/95 do Ministério das Comunicações e a camada de aplicações e
conteúdos, que também não pode ser classificada como telecomunicações.
Vale destacar que o consumidor para ter acesso à internet não contrata na
primeira camada, mas sim na segunda e na terceira que estão fora da competência
da ANATEL, cujas atribuições se restringem a serviços de telecomunicações (art.
18).
Quem contrata as redes das operadoras são os provedores de acesso que, de acordo
com a LGT, são usuários do serviço de telecomunicações (art. 61) seguindo as
regras de interconexão e contratação de capacidade das redes no mercado de
atacado. E nem se diga que quando as teles atuam como provedoras de acesso a
internet esta situação se altera, pois o que ocorre é a utilização de
infraestrutura própria para a prestação do serviço de valor adicionado – o
provimento de acesso.
Sendo assim, as últimas declarações da ANATEL, apoiando os anunciados planos de
serviço pelas teles não se sustentam, pois a agência não está investida de
poderes para tratar deste tema.
Sabemos da tradição da ANATEL de advogar para o interesse das teles,
especialmente as que integram grandes grupos econômicos – há mais de uma dezena
de casos que autorizam essa afirmação ocupando o Poder Judiciário e o Tribunal
de Contas da União. Entretanto, a ANATEL não pode chancelar a pretensão de novos
modelos de planos de serviço de acesso à internet das teles, sob pena de
extrapolar sua competência.
Além disso, ainda que tivesse competência, a concordância da ANATEL vai contra o
Código do Consumidor, que considera prática abusiva a elevação injustificada do
preço de produtos ou serviços (art. 39, inc. X) e impõe a nulidade de cláusulas
que estabeleçam vantagens exageradas ao fornecedor (art. 51).
Não podemos esquecer que o recém aprovado Marco Civil deixou expresso que o
acesso a internet é essencial (art. 7º) e também que o principal objetivo da lei
é a promoção do direito de acesso a todos (art. 4º), de acordo com fundamentos e
princípios expressos nos arts. 2º e 3º, onde encontramos os direitos humanos, a
defesa do consumidor, a finalidade social da rede e sua neutralidade.
Fundamental ainda ter em conta que o Marco Civil alçou o acesso à internet ao
patamar de serviço de interesse público, pois impôs a União, aos Estados,
Distrito Federal e Municípios o dever de estabelecer políticas públicas para
a “promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com
participação do Comitê Gestor da internet no Brasil” (art. 24, inc. II).Vejam
que a Lei não se referiu a ANATEL.
Assim, ainda que não se possa falar de serviço público estrito senso, o certo é
que ao tratar de acesso à internet falamos de serviço essencial de interesse
público, no âmbito da atividade econômica, mas nem por isso excluído da
abrangência do poder/dever normativo e regulador do Estado, nos termos do art.
174, da Constituição Federal.
Portanto, as manifestações da ANATEL chancelando a pretensão das teles de
comercializarem planos abusivos não passam de intromissão indevida, de
desrespeito à finalidade legal de inclusão digital, à liberdade de expressão e
ao direito à informação.
E nem se diga que o acesso gratuito à aplicativos como whatsapp e facebook vão
compensar o enorme potencial de dano que os planos de negócios anunciados pelas
teles recentemente podem causar. O objetivo do Marco Civil é promover a
educação, cultura, participação e acompanhamento social nos âmbitos
governamentais e não apenas diversão e informação superficiais.
Esperamos que as promessas apresentadas pela Presidenta Dilma durante a campanha eleitoral, com relação à universalização do acesso à internet se cumpram e que o Governo Federal repudie as condutas abusivas das empresas e a intromissão ilegal da ANATEL.
Flávia Lefèvre Guimarães
(1) Art. 61. Serviço de
valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações
que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas
ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de
informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações,
classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que
lhe
dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
§ 2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de
telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à
Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o
relacionamento entre aqueles
e as prestadoras de serviço de telecomunicações.