FLÁVIA LEFÈVRE GUIMARÃES
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Maio 2014 Índice Geral
30/05/14
• Pela garantia da Neutralidade de rede no Marco Civil da Internet - por Flávia Lefèvre Guimarães
Pela garantia da Neutralidade de rede no
Marco Civil da Internet
Temos de comemorar a grande vitória da sociedade com a sanção pela Presidente
Dilma Rousseff do Marco Civil da Internet no último dia 23 de abril.
Foram longos anos de participação e acompanhamento do projeto de lei no
Congresso Nacional, que teve como relator o Deputado Alessandro Molon (PTRJ),
numa luta acirrada com grandes grupos econômicos como Vivo e Oi, que se opuseram
contra a garantia da neutralidade da rede e tiverem como grande aliado o
Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Dezenas de entidades se reuniram na
Campanha Marco Civil Já
e conseguiram mobilizar a sociedade nas redes; e a grande movimentação teve peso
determinante para a aprovação da lei na Câmara e Senado Federal.
O Marco Civil da Internet vai entrar em vigor a partir do dia 23 de junho deste
ano e, considerando que há temas centrais que serão objeto de regulamentação
pelo Poder Executivo, as disputas pelos interessados – governo, empresas
provedoras de conexão, aplicações e conteúdos e sociedade civil – já começaram.
A reação das empresas de telecomunicações diante da aprovação da lei, que
notoriamente contrariou muitos de seus interesses comerciais, foi promover a
publicação de matérias e entrevistas com uma interpretação absolutamente
descolada do que determina a lei, especialmente no que diz respeito ao art. 9º,
que trata na neutralidade.
Considerando o recente anúncio feito pela Presidente Dilma de que será aberta
consulta pública para o processo de regulamentação do MCI, realizamos uma breve
análise com base nos debates que precederam a aprovação do MCI; no Decálogo de
Conceitos editado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil; na mais
recente Declaração Multissetorial de São Paulo que resultou do encontro Netmundial
ocorrido de 23 a 25 de abril deste ano;
em
documento
divulgado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do
Senado.
Nossa intenção é compartilhar elementos com cidadãos e entidades interessados em
contribuir no processo de consulta pública a ser instaurado, mobilizando a
sociedade para atuar na efetivação dos direitos trazidos pela Lei 12.965/2014,
essenciais para a garantia da democracia na internet e inclusão digital.
O caput do art. 9º
O caput do art. 9º, estabelece que o “responsável pela transmissão, comutação ou
roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de
dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou
aplicação”.
As empresas de telecomunicações que operam as redes fixas e aéreas são as
responsáveis às quais a lei impõe o cumprimento do dever de conferir tratamento
isonômico a quaisquer pacotes de dados, pois as teles são as provedoras de
conexão e que operam a transmissão, comutação e roteamento.
Seguindo as orientações referidas acima, entendemos que cumprir o princípio da
neutralidade significa garantir que a navegação na internet continuará livre e
aberta, como temos experimentado até hoje. Ou seja, as empresas não poderão
limitar o uso de aplicativos ou os sites a serem acessados pelos usuários de
acordo com planos de serviços com preços diferenciados por tipo e quantidade de
aplicativos e conteúdos a serem acessados.
Veja alguns dos princípios da governança da internet consensados no Netmundial:
ESPAÇO UNIFICADO E NÃO FRAGMENTADO
A Internet deve continuar a ser uma rede de redes globalmente coerente,
interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um
conjunto comum de identificadores únicos e que permita que datagramas e
informação fluam livremente de ponta a ponta independentemente de seu conteúdo
legal.
SEGURANÇA, ESTABILIDADE E RESILIÊNCIA DA INTERNET
A segurança, estabilidade e resiliência da Internet deve ser um objetivo
fundamental de todas as partes interessadas na governança da Internet. Como um
recurso global universal, a Internet deve ser um ambiente estável, resistente,
seguro e confiável. Eficácia na abordagem dos riscos e ameaças à segurança e
estabilidade da Internet depende de uma forte cooperação entre os diferentes
intervenientes.
ARQUITETURA ABERTA E DISTRIBUÍDA
A Internet deve ser preservada como um ambiente fértil e inovador baseado em uma
arquitetura de sistema aberto, com colaboração voluntária, gestão coletiva e
participação, apoiando a natureza ponta-a-ponta da Internet aberta, e buscando
especialistas técnicos para resolver problemas técnicos no local apropriado de
uma maneira consistente com esta abordagem aberta e colaborativa.
AMBIENTE FAVORÁVEL PARA A INOVAÇÃO SUSTENTÁVEL E A CRIATIVIDADE
A capacidade de inovar e criar está no âmago do notável crescimento da
Internet e trouxe grande valor para a sociedade global. Para a conservação de
seu dinamismo, a governança da Internet deve continuar a permitir a inovação
livre de barreiras através de um ambiente de Internet favorável, consistente com
outros princípios deste documento. Empreendedorismo e investimentos em
infraestrutura são componentes essenciais de um ambiente favorável.
As orientações transcritas são incompatíveis com a interpretação que as teles
vêm publicando, no sentido de que poderão fechar contratos para conceder
condições privilegiadas de tráfego aos grandes consumidores – fornecedores de
conteúdo, aplicações, serviços tecnológicos e interface, que sejam associadas às
empresas operadoras de redes.
O princípio da neutralidade visa não só garantir a rede aberta e livre, de modo
a assegurar o acesso democrático à internet, mas também impedir práticas
anticoncorrenciais que prejudiquem a economia e os consumidores.
Sendo assim, as empresas estão impedidas de vender pacotes de acesso restrito a
determinados aplicativos, mesmo considerando o teor do inc. VIII, do art. 3º, da
Lei 12.965/2014: “VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na
internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta
Lei”.
O mesmo art. 3º, no inc. IV estabelece que a “preservação e garantia da
neutralidade da rede” é um princípio e, portanto, os modelos de negócios
desenvolvidos pelas teles terão de respeitá-lo, como ficou expresso na lei.
Nossa interpretação, por conseguinte, é no sentido de que as teles podem vender
planos com velocidades distintas para o provimento de acesso à internet,
estabelecendo preços proporcionais.
Todavia, discriminar o tráfego na rede seja por qual motivo for está proibido
pela lei, com as exceções estabelecidas no § 1º, do art. 9º.
O § 1º, do art. 9º
As situações que autorizam a flexibilização do princípio da neutralidade e das
obrigações descritas no caput, estão descritas no § 1º, do art. 9º. Veja-se a
redação do parágrafo e seus incisos:
§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos
das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do
art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o
Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente
poderá decorrer de:
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e
aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência.
Para entendermos o alcance deste dispositivo a primeira questão que se coloca é:
a discriminação ou degradação é autorizada para garantir a prestação adequada
dos serviços e aplicações prestados por quem?
Entender este aspecto é importante, pois as empresas de telecomunicações,
invocando este dispositivo, têm entendido que poderão firmar contratos
concedendo condições privilegiadas de tráfego de dados às empresas de venda de
conteúdo ou aplicativos, como é o caso do Netflix ou Facebook, por exemplo.
Alegam as teles que, para garantir a adequada prestação dos serviços ou
aplicações das empresas com as quais contratem, poderão quebrar a neutralidade.
Ocorre que o responsável mencionado no caput (responsável pela transmissão,
comutação ou roteamento) são as teles e não os provedores de conteúdo ou
aplicativos, o que significa que a autorização para a quebra da
neutralidade só será possível quando estiverem demonstrados de forma cabal quais
os requisitos técnicos seriam indispensáveis para a prestação adequada dos
serviços de TRANSMISSÃO, COMUTAÇÃO OU ROTEAMENTO e aplicações de
responsabilidade das teles e não de seus contratantes.
Admitir a quebra da neutralidade por parte das teles para garantir a prestação
adequada de serviços comercializados por outras empresas, como pretendem as
teles, é violar frontalmente o princípio da neutralidade e o caput do art. 9º do
MCI.
Primeiro porque, na hipótese defendida pelas teles, estar-se-ia admitindo a
contratação de acesso e conexão em condições privilegiadas com grandes
consumidores tais como Youtube, Google entre outros o que revela clara
discriminação em detrimento dos pequenos usuários.
Considerando que a lei admite hipóteses para discriminação e degradação de
tráfego e que tais hipóteses serão fixadas por decreto a ser editado pelo Poder
Executivo, é importante ter como premissa para a definição da regulamentação da
lei que todos os contratantes do serviço de provimento de acesso e conexão devem
receber tratamento isonômico.
E, sendo assim, para garantir a prestação adequada do serviço prestado pelos
responsáveis descritos no caput do art. 9º, certamente serão definidas regras
para Acordos por Nível de Serviço (= SLA – Service Level Agreement), desde que
os limites impostos pelo § 2º sejam respeitados.
§ 2º, do art. 9º
E o § 2º, do mesmo art. 9º, determina que o responsável mencionado no caput (=
provedores de acesso e conexão), nos casos de discriminação ou degradação
deverão:
a) absterem-se de causar dano aos usuários;
b) agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
c) informar de modo transparente aos usuários as práticas de gerenciamento e
mitigação do tráfego de dados e
d) OFERECER SERVIÇOS EM CONDIÇÕES COMERCIAIS NÃO DISCRIMINATÓRIAS E ABSTER-SE
DE PRATICAR CONDUTAS ANTICONCORRENCIAIS.
Sendo assim, é insustentável o entendimento das teles, pois, se conferirem
condições privilegiadas de tráfego especiais para determinado consumidor, estará
configurada a oferta discriminatória de serviço, proibida não só pelo MCI, mas
também pelo art. 3º, inc. III, da Lei Geral de Telecomunicações, que determina
ser um direito dos usuários dos serviços o de não ser discriminado quanto às
condições de acesso e fruição. Temos ainda o inc. II, do art. 6º, do Código de
Defesa do Consumidor (CDC), estabelecendo como um dos direitos
básicos a garantia de igualdade nas contratações; o parágrafo único do art. 3º e
o 6º, do MCI, estabelecem que o CDC deve ser aplicado de forma sistemática para
a interpretação da nova lei.
Portanto, qualquer interpretação a respeito do alcance das exceções previstas no
§1º, do art. 9º, deverá estar de acordo com os dispositivos acima referidos, que
tratam de serviços de telecomunicações e da proteção e defesa do Consumidor,
assim como a regulamentação que vier a ser estabelecida.
Os provedores de acesso e conexão também não podem adotar condutas
anticoncorrenciais.
Será a regulamentação a ser editada que vai estabelecer as hipóteses em que se
autorizará a adoção de condutas diferenciadas de gerenciamento do tráfego dos
pacotes de dados, por conta de requisitos técnicos indispensáveis para a
prestação adequada do serviço para uma determinada empresa de conteúdo ou
aplicativos – as denominadas Over the top (OTT), que contrate com os provedores
de acesso ou conexão.
E, para evitar condições discriminatórias de prestação de serviço e práticas
anticoncorrenciais, os provedores de acesso e conexão estarão obrigados a
conferir o mesmo tratamento tanto para o tráfego dos pacotes de uma OTT que
contrate diretamente os seus serviços de rede, quanto para outra OTT que
contrate com outro provedor de conexão ou acesso, sob pena de causar prejuízos
aos usuários em geral.
§ 3º, do art. 9º
Para garantir o tratamento igualitário no tráfego de dados, o § 3º, do art. 9º,
determina que na provisão de conexão ou acesso à internet, onerosa ou gratuita,
bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar,
filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste
artigo.
Ou seja, o provedor de conexão está impedido de monitorar conteúdos, a fim de
evitar que privilegiem determinados provedores de conteúdo, de aplicações, de
serviços tecnológicos ou de interface, que venham a se associar ou venham a
contratar o seu serviço de conexão e acesso à internet.
É por este motivo que estudos a respeito do Marco Civil da Internet, como por
exemplo o divulgado pelo Senado, afirmam que a oferta gratuita de aplicativos
viola a neutralidade. Vale transcrever trecho do estudo:
Consideramos, apesar de já ter notícias de posições
contrárias, que viola a neutralidade de rede a oferta privilegiada a
determinadas aplicações (como facebook), por meio de uma velocidade de conexão
mais célere, ainda que sob o pretext da gratuidade.
A oferta gratuita de acesso a determinada aplicação é uma estratégia de
marketing, pois evidentemente tanto o provedor de conexão, que amplia sua base
de usuários e o volume de trágego por suas redes, quanto o provedor de
aplicações, que incrementa o potencial publicitário de seu service, têm
benefícios econômicos indiretors por essa oferta.
Ocorre que, ao estimular o acesso a determinada aplicação (como o Facebook), o
provedor de conexão viola o princípio da neutralidade da rede, pois privilegia o
conteúdo de uma aplicação em detrimento de outro, redirecionando (ou estimulando
o redirecionamento) o internauta a determinada aplicação.
Ora, por que o provedor de aplicação só dará privilégio a uma determinada
aplicação (como o facebook) em detrimento de outra (como o Orkut)? Isso não é
admitido.
Além disso, se o provedor de conexão oferta acesso gratuito ao Facebook, para
cumprir o contrato firmado com o consumidor terá necessariamente de monitorar os
dados para saber se de fato a utilização é do aplicativo liberado ou de outro
como o Twitter, por exemplo.
E o monitoramento, como vimos acima, está proibido, justamente para preservar a
neutralidade da rede, o direito de escolha do consumidor e evitar práticas
anticoncorrenciais.
A regulamentação do MCI
Mesmo depois de aprovado o Marco Civil da Internet – Lei 12.965, de 23 de abril
de 2014, continuam comentários de que a referência constante do art. 9º, no
sentido de que a matéria seria regulamentada por Decreta significaria abrir uma
porta para que o governo monitore e censure a internet.
O MCI veio definir limites inclusive e especialmente para os Poderes Públicos na
atuação que desenvolvem na internet. Pensem em qual realidade estaríamos hoje se
não tivéssemos uma Constituição Federal limitando a atuação de governos e de
agentes públicos. O MCI vem muito mais para orientar as práticas de agentes
econômicos e entes públicos na formulação de políticas para o uso da internet do
que para cercear direitos. É justamente o oposto: o MCI protege a liberdade e a
privacidade.
O primeiro ponto a ser esclarecido nesta discussão é quem possui atribuição
legal para editar regulamentos para a aplicação das leis. E a resposta está nos
arts. 84, inc. IV e 87, §1º, da Constituição Federal, que atribuem este poder
privativamente ao Presidente da República e Ministros de Estado, que manifestam
seus atos normativos por meio de Decretos e Portarias.
Além disso, a neutralidade diz respeito à direito de acesso à internet e impede
o tratamento discriminatório dos internautas por razões comerciais, políticas,
religiosas, etc, temas estes que estão alçados ao patamar de políticas públicas,
como é fácil concluir já dos primeiros artigos da lei. Ocorre que as Agências
Reguladoras são meras implementadoras de políticas pré-definidas por lei ou por
decretos regulamentadores.
Portanto e considerando que a neutralidade implica em questões de ordem técnica
para a operação das redes, o art. 9º, do MCI necessariamente terá de ser objeto
de regulamentação, o que só poderá ocorrer por meio de Decreto expedido pelo
Presidente da República ou Ministro das Comunicações e, só posteriormente, de
atuação da ANATEL para fazer cumprir o que ficar estabelecido, editando atos por
meio dos quais exercita o poder de regulação e fiscalização e não
regulamentação.
Ou seja, o texto do MCI só repete o que já está na Constituição Federal e não
implica na autorização para que governos implantem o vigilantismo e o
cerceamento dos direitos à livre manifestação do pensamento e à informação.
O uso que os governantes fazem de suas atribuições legais são questões de outra
ordem e que não se confundem com os objetivos do MCI. Além disso, a lei deixou
expresso que para a regulamentação terão de ser consultados a ANATEL e o Comitê
Gestor da Internet no Brasil, sendo que este último organismo se constitui pela
participação de governo, empresas, academia e sociedade civil.
Além disso e considerando que as disputas por ganhos econômicos na internet são
enormes; basta ver o grande debate instaurado sobre o tema da neutralidade na
Europa e Estados Unidos da América, com manifestações favoráveis e contrárias à
fixação do conceito de forma abrangente, a construção da regulamentação do MCI
para ser legitimada terá de contar com a participação de todos os agentes do
setor.
Portanto, é bem vinda a notícia de que haverá espaço para ampla participação da
sociedade no processo de regulamentação, pois só assim conseguiremos confrontar
os interesses meramente econômicos dos grandes grupos econômicos que operam as
telecomunicações, e impedir que se apoderem da definição dos parâmetros técnicos
que autorizam em caráter excepcional a discriminação e degradação do tráfego de
dados.
Flávia Lefèvre Guimarães