FLÁVIA LEFÈVRE GUIMARÃES
WirelessBrasil
Janeiro 2017 Índice Geral
11/01/17
• Carta Capital: "Um presente bilionário às teles, tramado entre governo e Congresso, acoberta fracassos e irregularidades da Oi e falhas da Anatel"
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Fonte: Revista Carta Capital
[11/01/17] Rolo oculto - por
André Barrocal
TRAMOIA
Um presente bilionário às teles, tramado entre governo e Congresso, acoberta
fracassos e irregularidades da Oi e falhas da Anatel
Às vésperas do Natal, o Congresso e o governo prepararam
um presente às companhias de telefonia fixa de dar inveja ao mais generoso Papai
Noel.
Tentaram mudar a lei para que elas não tenham mais de pagar para explorar o
serviço público nem aceitar metas de atendimento aos brasileiros, muito menos
devolver, ao fim dos contratos em 2025, o patrimônio público alugado nos leilões
de1998.
Em troca, promessas de investimento em banda larga. É verdade que o fone fixo
perdeu espaço devido aos celulares, enquanto a internei veloz é mais demandada.
O plano tramado em Brasília significa, porém, doar bilhões às teles, e numa área
vital à soberania nacional. "Crime de lesa-pátria", segundo o senador Roberto
Requião.
Por trás do escandaloso plano, por ora no aguardo de uma decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) sobre sua sanção pelo presidente Michel Temer, esconde-se
um enredo ao qual o senador reservaria palavras parecidas. O "presente" ajudará
a acobertar fracassos e malfeitos da 0i, a maior operadora de telefonia fixa do
Pais, e falhas do órgão público regulador do setor, a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel).
Nos termos defendidos pelo ministro das Comunicações, Gilberto Kassab, e o
presidente da Anatei, Juarez Quadros, a reviravolta nas regras facilitará a
venda
da Oi, dona de prejuízos acumulados de 10 bilhões em 2014 e 2015, de uma dívida
de 65 bilhões e de um pedido de recuperação judicial. Com o fim dos contratos de
concessão na telefonia fixa, repletos de obrigações às empresas, como levar
serviço a áreas pobres, e sua substituição por meras autorizações da Anatel,
quase um livre-mercado, a empresa se tornaria mais atraente para eventuais
compradores.
Quem acompanhou debates na Anatel sobre alterações regulatórias garante: a
proposta em curso foi talhada para resolver o pepino da Oi. Decretar intervenção
na empresa é tudo que o governo e setores parlamentares desejam evitar. Entre os
acionistas da companhia, há personagens com boas relações com o poder, casos de
Sérgio Andrade e sua empreiteira Andrade Gutierrez, doadora de campanhas e na
mira da Operação Lava Jato.
A atratividade da Oi aumentaria ainda graças a outra modificação legal armada em
Brasília. Uma novidade cobiçada por todo o setor, a tratar dos chamados "bens
reversíveis", um tema polêmico. Quando as teles arremataram partes da Telebras,
toparam devolver no futuro aqueles bens essenciais ao serviço, como antenas,
cabos e prédios, melhorias incluídas. Uma devolução "automática", diz a Lei
Geral de Telecomunicações de 1997. Está na LGT, mas é uma situação normal em
concessões. Quando uma hidrelétrica é entregue à exploração privada por prazo
determinado, volta no fim do acordo para o governo, que pode fazer nova
licitação. Idem para uma rodovia.
As teles não gostam da ideia detalhada nos contratos. Manejaram como quiseram
esse patrimônio ao longo do tempo e pouco foram importunadas pela Anatel. As
mudanças negociadas em Brasília acabam com a restituição automática. Fica tudo
para as teles. É outra mãozinha para ajudar a achar interessado na Oi.
Dados da Anatei indicam que o total de bens reversíveis era de 105 bilhões de
reais em 2013, conforme declarações das empresas. Eis uma noção do tamanho do
"presente às teles. Metade da bolada, 51,9 bilhões de reais, está sob a guarda
da pré-falimentar companhia.
O presidente da Anatei tem dito que os bens reversíveis não passam de 17 bilhões
de reais, seria esse o valor incluído pelas companhias em seus balanços. Um
patrimônio que logo virará um “mico., segundo Quadros, devido à decadência da
telefonia fixa. Com declarações assim, em que joga contra o interesse público e
a favor do privado, faz jus a uma placa de 9 de setembro de 2014, obra da
Telebrasil, a Associação Brasileira de Telecomunicações, a homenageá-lo com o
título de "associado honorário, pelos serviços de notável mérito em prol das
telecomunicações".
A diferença de 80 bilhões de reais entre declarações das empresas e inscrições
em balanços talvez tenha outra explicação. Há pistas de uma verdadeira
dilapidação de bens reversíveis (patrimônio públicos) por parte das companhias,
com a conivência do órgão regulador.
De 2011 a 2013, o patrimônio reversível da Oi encolheu em 10,5 bilhões de reais,
uma constatação da Anatel. Instada a se pronunciar a empresa alegou ter
feito"exclusão de itens não localizados no processo de inventário".
O Tribunal de Contas da União (TCU) não ficou convencido. Em um relatório de
2015, cobrou da agência a apuração do bilionário sumiço, até hoje incondusa. E
há mesmo razões para suspeitar que a explicação seja outra.
Fiscalizações anteriores e sigilosas da Anatel descobriram que a Oi vendeu bens
reversíveis de forma irregular. As alienações só poderiam ter ocorrido com
autorização prévia da agência, após uma análise do impacto na prestação do
serviço. E o dinheiro arrecadado deveria ir para uma conta específica, destinada
a suprir consequências no serviço.
Carta Capital teve acesso a alguns desses relatórios, como o 0074/2009/ERO2FS, a
mirar a Telemar, nome original da 0i, e o 050/2010/ERO2FS, a botar lupa na
Brasil Telecom, agora incorporada à Oi.
O objetivo das fiscalizações era o mesmo, averiguar o controle dos bens
reversíveis, e as conclusões idem. Um festival de infrações.
A ação na Telemar durou de março a julho de 2009. Os fiscais identificaram
1.026.311 bens vendidos entre 2002 e 2007 sem anuência prévia. E que recursos
obtidos com as vendas não foram para as contas específicas.
Idêntica situação na Brasil Telecom, alvo de dezembro de 2009 a dezembro de
2010. As duas empresas foram multadas e sofreram procedimentos de apuração de
responsabilidades, os chamados Pados, de resultados desconhecidos.
A dilapidação dos bens reversíveis não é exclusividade da 0i,mas uma prática
setorial, como indicam outras fiscalizações confidenciais. A Telefônica
(ex-Telesp) foi alvo de outubro a dezembro de 2008. As infrações encontradas,
como a alienação sem aval de 51 bens em 2008, estão descritas no relatório
0020/2010/ER01FB.
A Embratel (Claro) esteve sob olhar dos fiscais de novembro de 2009 a abril de
2010 e, entre outras, cedeu à Justiça 5.074 bens sem informar que se tratava de
bens reversíveis. segundo o relatório 0027/2010/ER04FS.
As companhias não teriam se esbaldado dessa forma sem a conivência da Anatel. É
o que se pode concluir de uma auditoria interna da agência de 2007, uma
auditoria de 2015 do TCU e uma sentença judicial de 2012.
A auditoria interna ocorreu de outubro a novembro de 2007, conforme o relatório
011/2007/AUD. Houve quatro constatações. Ausência de uma relação de bens
reversíveis com dados da época da privatização, falta de fiscalização, lapso
regulatório entre 1998 e 2006 e fragilidade de um regulamento baixado em 2006.
Essa última norma definiu o procedimento de controle dos bens. As empresas
deveriam manter um inventário atualizado deles e mandar à Anatel todos os anos
uma listagem. O regulamento respaldou as fiscalizações sigilosas. Até então, de
1998 a 2005, a agência não tinha feito nada, o que facilitou dilapidações. A
inoperância deu-se por duas razões, "descaso" e "descumprimento reiterado" das
obrigações da Anatel, conforme uma auditoria de 2015 do TCU a respeito da
atuação da agência no controle dos bens reversíveis de 1998 a 2014.
O relatório mereceu um pedido de reconsideração pela Anatel. Segundo o
documento, de 2007 a 2014, houve 124 pedidos de anuência de venda encaminhados
pelas empresas à agência. Um número "incoerente", pois em boa medida partia das
empresas menores, segundo a própria agência. A norma de 2006 foi contestada em
2008 pelas teles, por exigir que a listagem de bens fosse acompanhada do parecer
de uma auditoria independente. Só que essa turma independente não estava
disposta a botar a digital na cumbuca.
A Anatel atendeu ao pedido e topou rever o regulamento, processo em aberto até
hoje. Em 2009, uma canetada de seu presidente de então, Ronaldo Sardenberg,
liberou as empresas para vender bens reversíveis sem anuência prévia em
transações de até 750 mil reais. Um estímulo ao fracionamento do patrimônio
reversível.
Desmembrar foi uma das técnicas usadas na dilapidação, juntamente com a
terceirização. É o que diz uma papelada sigilosa da Anatel enviada pelo
Ministério das Comunicações à Câmara em 2011, sob o Ofício 79/2011, em resposta
ao requerimento de informações 616/2011.
Criar uma empresa como mesmo nome mas outro CNPJ - ou seja, fazer-se laranja de
si mesmo - foi outra técnica. Aconteceu com uma das gigantes do ramo.
A partir de 2012, a Anatel passou a divulgar na internet a lista dos bens
reversíveis recebida das companhias. Há quem ache pouco. Uma ação civil pública
da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) contra a Anatel e o
governo tenta obrigar a agência a incluir como anexo dos contratos de concessão
um inventário de todos os bens reversíveis existentes em 1998 e atualmente. "A
ausência do inventário", diz a ação, permite que "a Anatei e as concessionárias
defendam teses esdrúxulas para tentar convencer de que a apropriação de recursos
públicos pela iniciativa privada tem respaldo legal."
Em julho de 2012, o juiz federal João Luiz de Souza, da 15ª Vara Cível de
Brasília, deu ganho à Proteste. Uma sentença desconcertante para os réus, que
recorreram. "A Anatel, por falta de conhecimento dos bens, cuja responsabilidade
de regulamentação e monitoramento lhe compete, encontra-se em situação de total
descontrole dos bens reversíveis, pondo em risco não só a reversibilidade desses
bens ou seus substitutos ao patrimônio público como, também, a continuidade da
prestação do serviço, permitindo a dilapidação desse patrimônio necessário a
esse serviço."
O descontrole seria tanto, na visão do juiz, que não se poderia descartar a
hipotética situação de uma concessionária vender tudo de uma hora para outra e a
telefonia fixa ficar muda.
A Anatel costuma invocar "sigilo" para responder por que jamais requisitou o
inventário completo dos bens da Telebras, depositado no Arquivo Nacional. O
material seria "confidencial". Argumento conveniente, pois ajuda a Anatel a
defender-se mais facilmente de acusações sobre vista grossa quanto ao destino
dado aos bens da Telebras.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso agradece. O tucano orgulha-se de ter
arrecadado 22 bilhões de reais com um leilão que tinha valor mínimo de 13
bilhões. O balanço de 1997 da Telebras, o último pré-privatização, está no
Arquivo Nacional. Carta Capital teve acesso. Mostra que o patrimônio da Telebras
era de 31,987 bilhões de reais, 10 bilhões a mais do que o arrematado por FHC.
"Essa mudança que querem fazer na regulação da telefonia fixa é uma doação mais
escandalosa do que foi a privatização, são 100 bilhões de reais", afirma Rogério
Santanna, presidente da Telebras de maio de 2010 a maio de 2011 durante uma
tentativa petista de ressuscitá-la. "É para resolver o problema da Oi, que
vendeu todos os seus bens reversíveis, e da Anatel, que permitiu tudo, com ações
e omissões. As irregularidades serão todas legalizadas, ninguém vai pagar por
nada." Procurada, a Oi não quis comentar problemas com bens reversíveis.
Irregularidades à parte, a mudança de regras gera polêmica. O SindiTelebrasil,
sindicato das empresas, defende o fim das concessões e da devolução de bens,
modelo nascido de um projeto de 2015 do deputado Daniel Vilela, do PMDB de
Goiás, e agora encampado pelo governo. Acha que é o maior avanço setorial desde
a LGT, capaz de destravar investimentos em banda larga, a contrapartida ao
"presente", com melhora na qualidade e no alcance.
O ministro Kassab, das Comunicações, prevê aportes de 50 bilhões de reais. Foi
um senador do partido dele, Otto Alencar, do PSD da Bahia, quem deu a feição
final ao projeto, em dezembro, antes de a oposição acionar o STF para que
houvesse uma votação plenária previamente à sanção de Temer.
Kassab é apontado como "lobista do projeto, juntamente com Quadros, da Anatel,
em um pedido levado pela Proteste ao Ministério Público em 28 de dezembro para
que a dupla seja investigada.
Para a entidade, a proposta vai gerar "vultoso e irreparável prejuízo" à
sociedade, em virtude da transferência de bilhões em patrimônio público, e
"vantagem ilegal" às atuais concessionárias, as quais assumiram a telefonia fixa
no passado por um valor que seria superior, caso o contrato não contivesse a
cláusula dos bens irreversíveis.
Não só: a permuta "bens reversíveis e concessão" por"investimentos em banda
larga" seria frágil e ameaçaria a democratização da internet veloz, um ditame do
Marco Civil da Internet, de 2014.
A representação da Proteste foi encaminhada ao chefe do MP no Distrito Federal,
Marcus Marcelus Gonzaga Goulart. O substituto eventual de Goulart, procurador
Paulo José Rocha Júnior, participou de uma audiência pública na Câmara em
outubro e bateu no projeto. Vê "vantagem indevida" às atuais concessionárias e
uma "doação com encargo (promessa de investimentos)" sem garantia de que
o "encargo" sairá do papel, pois "a Anatei não tem um histórico bom de cobrança
de metas e investimentos", como demonstrado na fusão Oi-BrasilTelecom.
Por sua situação pré-falimentar, a Oi seria, aliás, mais uma preocupação quanto
ao modelo proposto. Se os bens reversíveis se tornarem propriedade da empresa,
disse Rocha Júnior, poderão ser confiscados pela Justiça para o pagamento de
credores, uma ameaça à continuidade da prestação de serviços de telefonia fixa.
O magistrado responsável pela recuperação judicial por ora demonstra atenção ao
tema. Em um despacho de 14 de julho, o juiz Fernando Viana, da 7ª Vara
Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio, anotou o óbvio: venda de bens
reversíveis controlados pela 0i só com autorização da Anatel. Mais: "Há que se
determinar idêntica providência no que se refere a uma pretensa alteração do
controle das empresas do Grupo Oi".
O TCU também pega no pé. Uma investigação sigilosa aberta em maio passado para
acompanhar discussões sobre nova regulação da telefonia fixa apontou "risco de
dano ao Erário" com a pretendida permuta entre o fim das concessões em troca de
investimentos em banda larga. Isso porque os cálculos do montante dos
investimentos dependeriam de um encontro de contas sem parâmetros claros.
Quem é do ramo e viu o projeto diz que a definição de "bens reversíveis" no
texto deu uma diferença de bilhões de mais em favor das teles, ao excluir fibras
ópticas das contas.
Com tantos rolos e benesses envolvidos, entende-se por que o Senado recebeu o
projeto enviado pela Câmara em 30 de novembro, tenha providenciado um relatório
(obra de Otto Alencar) em 1º de dezembro, aprovado o texto em uma comissão no
dia 6 e despachado à sanção de Temer sem passar pelo plenário.
Uma proposta espantosa como esta terá dificuldade de resistir a um debate à luz
do dia. Está nas mãos de Cármen Lúcia, presidente do STF, decidir se o plenário
do Senado terá ou não de votar a lei. Ou se Temer já pode preparar a caneta para
sancionar o presentão às teles.