José Ribamar Smolka Ramos
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Janeiro 2012 Índice Geral
30/01/12
• Contribuições apresentadas por José
Smolka à Consulta Pública nº 02/2012, para discutir os pedidos da "Oi" de
impugnação dos Regulamentos de Gestão da Qualidade RGQ-SCM e RGQ-SMP
2. Minha atuação profissional me leva a considerar de forma unificada todas as instâncias do provimento de acesso à Internet em banda larga, por isso não farei muita distinção entre o SCM e o SMP nos meus comentários. Até porque, a médio prazo, entendo que estes dois serviços, e ainda o STFC, devem convergir para uma definição comum.
3. Acima de tudo percebo uma grande falha no processo de elaboração e publicação do RGQ-SCM e do RGQ-SMP: as iniciativas regulatórias foram motivadas basicamente pelo desejo de dar uma justificativa ao “clamor popular”, amplificado pela imprensa. Isto é política, e não regulação técnica. Foi negligenciada a medição objetiva do estado de descumprimento de obrigações contratuais pelos provedores, e considerado como indicador da existência de um problema real a repercussão constante na imprensa de reclamações sobre a qualidade do serviço – particularmente com respeito ao serviço de acesso móvel à Internet, sem levar em conta que, do ponto de vista da própria imprensa, “notícia boa não vende jornal”. Pois bem, eu posso falar, com base em minha experiência pessoal, que em mais de dez anos da utilização de acessos em banda larga, fixos e móveis, à Internet (em várias localidades), raramente experimentei problemas sistemáticos de má qualidade que pudessem ser atribuídos inequivocamente ao provedor. E esta também é a experiência percebida por vários colegas e amigos. Porém estas experiências positivas de uso não recebem a mesma divulgação, nem repercutem tanto, quanto as ruins. O que me leva a indagar: qual é o estado real das coisas? Não existe resposta objetiva para esta pergunta, e para uma boa regulação técnica, é necessário compreender antes o estado atual do problema (se é que existe um problema real).4. As imperfeições que percebo nos Regulamentos são de ordem conceitual, de ordem técnica e de ordem legal.
5. No nível conceitual, percebo uma má definição entre os serviços envolvidos, e o que se pretende atingir com os regulamentos:a) O serviço de acesso à Internet não é, no contexto do atual marco regulatório brasileiro, um serviço de telecomunicação. Ele é definido como um serviço de valor agregado aos serviços de telecomunicação que o suportam (nos termos do art. 61 da LGT). Assim sendo, ele não é passível de regulação formal pela Anatel. Além disso, a estrutura de governança federativa da Internet não inclui, no contexto atual, a garantia de qualidade dos serviços fim a fim. Desta forma os usuários de serviços providos através da Internet tem que contentar-se com serviços providos no modo best-effort;
b) É necessário explicitar que o que está sendo regulado é, tão somente, o serviço de acesso IP em banda larga, que suporta o serviço de acesso à Internet, pode ser realizado com diversos suportes tecnológicos. Os regulamentos excluem do seu alcance os provedores deste serviço que sejam de pequeno porte (definidos como aqueles que possuam menos que 50.000 usuários), o que, na prática, é a mesma coisa que dizer “estes regulamentos só se aplicam aos provedores de acesso IP que também são concessionários do STFC ou permissionários do SMP”. Então cabe a seguinte pergunta: os usuários que residam em localidades onde o serviço de acesso IP não é prestado principalmente por concessionários do STFC ou por permissionários do SMP (esta situação é típica de localidades do interior e da periferia das grandes cidades) não terão direito a informação sobre a qualidade do serviço prestado por seus provedores?c) O serviço de acesso à Internet é, no momento, o único serviço suportado pelo serviço de acesso IP em banda larga. Até que isto mude, e que regras para a interconexão e garantia da qualidade do serviço fim a fim nas redes IP dos provedores sejam estabelecidas (o que é mandatório para que ocorra a migração destas redes para o modelo NGN), não existe forma prática dos usuários do serviço de acesso à Internet se beneficiarem efetivamente de vários dos parâmetros de desempenho da rede e, ainda assim, qualquer provedor do serviço de acesso IP em banda larga só poderá influir nestes parâmetros dentro do seu próprio escopo de governança (o que não é suficiente para garantir, do ponto de vista do usuário, desempenho satisfatório dos serviços providos através da Internet).
6. No nível técnico chamam-me a atenção os seguintes aspectos:a) Os indicadores de desempenho da rede abrangem os aspectos de disponibilidade, taxa de transmissão (instantânea e média), latência bidirecional (round-trip delay), variação da latência (jitter) e perda de pacotes (packet loss);
b) Basear o indicador da disponibilidade da rede do provedor do serviço de acesso IP em banda larga no comportamento observado de uma amostra da população é, em minha opinião, questionável. Eventos que causem efeito significativo na disponibilidade da rede, a depender do tamanho e da distribuição geográfica da amostra dos usuários, tem probabilidade não desprezível de passarem sem detecção (ex.: a falha de um BRAS da rede de acesso DSL, ou a falha de um GGSN da rede de acesso HSPA, ou a falha de um roteador de borda). Neste caso eu sou mais favorável ao cálculo da disponibilidade a partir dos registros coletados pelo sistema de gerência de falha da operadora. O indicador poderia ser calculado pelo produto do nº de usuários afetados pela falha (eventualmente determinado de forma estatística) pela duração da falha em horas. Somados estes valores em um mês, temos o indicador de indisponibilidade expresso em usuários-hora/mês, o qual deverá ter um valor teto;c) Os indicadores de round-trip delay, jitter e packet loss são decisivos para avaliar a capacidade de uma rede IP transportar eficazmente o tráfego de aplicações de voz e vídeo. Entretanto os valores ideais para estes parâmetros só podem ser atingidos por dois meios: a utilização de uma arquitetura de garantia de QoS nos elementos da rede (ex.: DiffServ), ou o puro e simples overprovisioning (que eu costumo chamar de bandwidth overkill). A primeira alternativa, além de ser complicada para aplicar sobre o tráfego da Internet, só seria realmente eficaz nos trechos BRAS-roteador de borda ou GGSN-roteador de borda. No trecho usuário-BRAS não é possível identificar a natureza das aplicações utilizadas pelo usuário, porque os pacotes do usuário trafegam neste trecho encapsulados pelo mecanismo de tunelamento PPP. De forma similar, no trecho usuário-GGSN o tunelamento GTP torna invisível a natureza da aplicação utilizada, e, embora o 3GPP tenha definido o mecanismo MBMS para garantia de qualidade do serviço sobre a interface de rádio HSPA, não está claro como seria o interfuncionamento das classes de serviço MBMS e as classes de serviço DiffServ. Assim só resta o overprovisioning para tentar atingir os valores-alvo dos indicadores. Isto significa que no PMT haverá ociosidade para garantir que os indicadores fiquem dentro da faixa esperada, e fora do PMT a ociosidade será enorme. Isto é má engenharia e péssima economia. Mas é neste sentido que os regulamentos empurram os provedores de acesso IP em banda larga afetados pelos regulamentos publicados. E parece existir uma postura do tipo “Eles são grandes, tem muito dinheiro e podem pagar por isso”. Isto não é boa regulação. É preconceito.
d) Não consigo enxergar lógica no estabelecimento dos mesmos parâmetros para a taxa de transmissão, instantânea e média, para redes de acesso DSL e redes de acesso HSPA. Nas redes DSL o usuário é fixo, e não existe competição por recursos da rede de acesso entre o tráfego de voz e tráfego IP. Nas redes HSPA, além de existir a disputa por banda entre o tráfego de voz e tráfego IP (que é mais intenso justamente no PMT), existe um componente estatístico adicional devido à mobilidade dos usuários (handover entre setores ou células adjacentes). O resultado lógico é que, para uma mesma densidade de usuários, as redes de acesso HSPA apresentam um desempenho com maior variabilidade. Portanto, para atingir os objetivos de taxa de transmissão instantânea e média publicados nos regulamentos, e considerando que a única forma para conseguir isso é através do overprovisioning, as redes de acesso HSPA terão que manter capacidade ociosa proporcionalmente maior que as redes de acesso DSL;e) Este overprovisioning na interface de rádio das redes de acesso HSPA só pode ser conseguido pelo adensamento da malha de transceivers (Node-b), o que, além de dispendioso, é complicado (às vezes impossível) de conseguir, considerando-se as restrições à instalação de mais antenas de telefonia celular;
f) A experiência internacional considerada nos estudos realizados pela Anatel para a instrução do processo de elaboração e aprovação do RGQ-SCM e do RGQ-SMP mostra que a adesão voluntária à regulação (casos do Reino Unido e Portugal) não garantem que os indicadores de desempenho da rede atingirão os valores esperados, e que uma regulação impositiva (caso da Índia) também não é garantia de sucesso. Interessante que, no caso indiano, os valores objetivo para os indicadores de desempenho foram estabelecidos a partir de uma pesquisa que definiu o baseline de partida do processo, o que não ocorreu no caso Brasileiro;g) Então a conclusão óbvia é que, em função dos custos que os regulamentos (tais como publicados) imporão sobre os provedores do serviço de acesso IP em banda larga, a Anatel precisa explicitar:
Porque ela julgou necessário adotar um modelo impositivo, que é ainda mais restritivo e burocrático que o modelo indiano?Porque isto foi considerado o único modo de conseguir melhoria objetiva da qualidade do serviço para os usuários?
Porque os custos impostos aos provedores são considerados proporcionais ao benefício esperado para os usuários?Quais os critérios objetivos para escolher os indicadores de desempenho da rede aplicáveis e definir seus valores objetivo iniciais e sua progressão temporal?
Considerando a natureza das aplicações acessadas pelos usuários no SVA de acesso à Internet (que é, no momento, o único suportado pelo serviço de acesso IP em banda larga) quais benefícios concretos para os usuários esta regulação deseja alcançar?Qual a relação custo/benefício da imposição da contratação de terceiros para executar a geração dos dados de teste e certificar os processos de coleta dos dados e cálculo dos indicadores? Pessoalmente, isto mostra que a Anatel não se considera capacitada para exercer estas atividades, e prefere terceirizá-las.
h) Finalmente, tal como reclamado pela Oi, existe incompatibilidade aritmética entre o indicador de reclamação dos usuários com o indicador de reclamações de reparo. As reclamações de reparo são, necessariamente, um subconjunto das reclamações recebidas pela operadora. Ambos os indicadores são calculados (conforme os regulamentos publicados) dividindo o número de reclamações (total ou reparo, conforme o caso) pelo número de acessos em serviço. Isto torna aritmeticamente impossível que o indicador de reparo apresente percentuais maiores que o indicador de reclamações. Creio que houve um engano, e o indicador de reclamações de reparo não devia usar o número de acessos em serviço no numerador, mas o número total de reclamações recebidas (que é o numerador no cálculo do indicador de reclamações). Isto daria coerência aos dois indicadores.7. Vou elencar os aspectos legais que me preocupam, apesar de não ser advogado:
a) Não tenho conhecimento da existência de uma exposição de motivos que justifique a opção pela forma dos regulamentos publicados. Isto fere o art. 40 da LGT (Lei 9.472 de 16/07/1947) e o princípio da motivação, exigido no caput do art. 2º da Lei 9.784 de 26/01/1999;b) Com exceção dos indicadores de taxa de transmissão instantânea e média, todos os demais indicadores (com metas obrigatórias para o SCM e obrigação de divulgação para o SMP) não tem efeito prático para a qualidade percebida pelos usuários do SVA de acesso à Internet (único usuário dos serviços de telecomunicação de acesso IP subjacentes – regulados como SCM ou SMP). Me parece que a Anatel, assim agindo, fere o princípio de proporcionalidade que deve orientar a elaboração de atos da Administração Pública Federal, conforme o caput e inciso VII do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784 de 26/01/1999;
c) A imposição de custos aos permissionários do SCM e do SMP, sem a correspondente comprovação do benefício objetivo proporcionado aos usuários destes serviços, fere diretamente a exigência do inciso VI do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784 de 26/01/1999: “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público” (grifos meus);d) A complexidade do modelo regulatório adotado precisa de justificativa razoável e clara, caso contrário a Anatel estará descumprindo o inciso IX do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784 de 26/01/1999: “adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados”;
e) Tanto o SCM quanto o SMP são prestados exclusivamente em regime privado. Assim sendo o desbalanceamento entre custos e obrigações impostas às permissionárias e o benefício objetivo causado aos usuários também fere o estipulado nos incisos III, IV e V do art. 128 da LGT (Lei 9.472 de 16/07/1947): “os condicionamentos deverão ter vínculos, tanto de necessidade como de adequação, com finalidades públicas específicas e relevantes”, “o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional à privação que ele impuser” e “haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos” (grifos meus);