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Márcia Furukawa Couto |
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Discussão final:
Embora se tenha obtido resultados estatisticamente significativos através de
extensas repetições durante os experimentos, ficou evidente em nossos gráficos a
grande variabilidade entre os indivíduos. Em métodos psicofísicos de
investigação é esperada essa variabilidade devido à influência de múltiplos
fatores. Para experimentos envolvendo fenômenos da área visual com resultados
baseados em respostas subjetivas há que se considerar: (i) a variabilidade
anatômica de todas as estruturas envolvidas, desde a retina até o córtex visual;
(ii) variações individuais quanto à motivação e atenção. Baseados em dados
obtidos da literatura (abaixo descritos), concluiu-se que a segunda opção é a
mais provável, apesar da conhecida existência de grandes variações anatômicas
entre indivíduos.
Na retina humana a contagem de células fotorreceptoras apresenta grande
variabilidade nos dois graus centrais, com alguns indivíduos apresentando até
três vezes mais cones do que outros (Curcio et al., 1990). No entanto, nas
excentricidades adotadas em nossos experimentos, a contagem de cones e de
células ganglionares torna-se bastante homogênea entre indivíduos (Curcio et
al., 1990; Curcio e Allen, 1990). Adicionalmente, verificou-se que existe uma
correlação anatômica entre o volume de células ganglionares (e consequentemente
o nervo óptico) com o corpo geniculado lateral e o córtex estriado (Andrews et
al., 1997). Concluiu-se assim, que nas excentricidades adotadas nos presentes
experimentos não deve haver variação anatômica significativa entre os indivíduos
tricromatas, ao nível do corpo geniculado lateral e do córtex estriado.
A proporção de cones do tipo L em relação ao tipo M nos tricromatas pode variar
de 0.6:1 a 12:1 (40% L a 92% L) (Carroll et al., 2000). A exata proporção de
cada tipo de cone (S, M e L) nas excentricidades utilizadas nos presentes
experimentos é ainda pouco conhecida, sendo que a maioria dos dados disponíveis
na literatura mostra estas proporções dentro dos dois graus centrais, onde os
três tipos de cones aparecem distribuídos de forma aleatória (Roorda et al.,
2001; Hofer et al; 2005). Uma contagem de cones realizada em área parafoveal, a
4° de excentricidade, mostrou proporção L:M de 2:1 (Nerger e Cicerone, 1992). De
qualquer modo, existem evidências de que essa variabilidade na proporção L: M
não afeta significativamente a discriminação de cores (Roorda e Williams, 1999;
Brainard et al., 2000), exceto para estímulos muito pequenos, na faixa de 0,3
minutos de arco (Hofer et al., 2005). Como utilizamos estímulos com 0,4° (=24
minutos de arco) considera-se que os estímulos do experimento 3 foram homogêneos
do ponto de vista da cor para os tricromatas. Adicionalmente, existe a
possibilidade de uma normalização neural plástica que permitiria ao sistema
visual compensar diferenças individuais das proporções de cones L/M e tornar a
percepção final uniforme (Pokorny e Smith, 1987; Neitz et al., 2002).
Em se tratando de dicromatas, vários trabalhos indicam que estes possuem um
número de cones equivalente ao dos tricromatas (Cicerone e Nerger, 1989; Wesner
et al., 1991; Gegenfurtner e Sharpe, 1999). Isso é possível nos casos em que
ocorre a substituição de uma classe de cones por outra. O deuteranopo, por
exemplo, não possui cones M, que seriam substituídos por cones L, gerando assim
um número total de cones normal, embora acabe com um número muito maior de cones
L do que o tricromata. Entretanto, tem sido sugerida a existência de um grupo de
aproximadamente 15% dos dicromatas para os quais não há substituição, mas sim a
perda de toda uma classe de cones devido a uma mutação gerando fotopigmento não
funcional (Carroll et al., 2004). Esses indivíduos não apresentam qualquer perda
da função visual, exceto a discriminação de cor. Entretanto não se pode deixar
de levantar a hipótese de que essa variação entre indivíduos dicromatas possa
influenciar no resultado final do preenchimento perceptual de cores, exceto se
houver também para estes casos a suposta normalização neural plástica nivelando
a sua percepção final de cores (Neitz et al., 2002).
As variações quanto à atenção durante o experimento e quanto aos critérios
individuais na decisão de “preenchido”, são inerentes a esse tipo de
experimento. Procurou-se minimizar a influência do fator atenção através da
montagem de protocolos de curtíssima duração, que foram repetidos com intervalos
de aproximadamente um minuto entre eles, permitindo aos voluntários relaxar e
tirar o queixo do apoio entre um protocolo e o seguinte. Todos os voluntários
foram instruídos para fixar a cruz central durante o experimento de modo mais
estável possível, mas supõe-se que os indivíduos mais dispersos podem ter
introduzido considerável variação em nossos resultados.
Se por um lado, a variabilidade individual quanto à capacidade de manter a
atenção pode de algum modo dificultar a interpretação dos resultados nos
presentes experimentos, um fato curioso é que a atenção é um facilitador para o
preenchimento perceptual. De uma maneira geral, a atenção possibilita que
estímulos relevantes para uma determinada situação atinjam um grau/nível de
processamento maior do que outros estímulos presentes no ambiente (Posner,
1988). Na presença de mais de um escotoma artificial, aquele no qual o indivíduo
concentra sua atenção desaparece mais rapidamente (Lou, 1999). Observou-se que
os protocolos muito longos levavam ao aumento significativo da latência de
preenchimento, à medida que se aproximava o final do teste, o que provavelmente
estava relacionado a uma redução do nível de atenção.
A influência da atenção no processamento da ilusão gerada por cores
transparentes neon, foi demonstrada em experimento que comparou áreas de
ativação cortical com e sem controle de atenção (Sasaki e Watanabe, 2004). A
visualização do efeito neon de modo simultâneo com outra tarefa, ativou apenas a
área cortical V1. Por outro lado, o efeito neon sem outra tarefa simultânea
gerou ativação das áreas corticais V1, V2, V3/VP, V3A e V4v. Tal diferença
indica que o grau de atenção pode causar variações na qualidade e/ou latência do
preenchimento perceptual, ao recrutar extensões de áreas corticais muito
diferentes.
Os presentes resultados apontam para a influência de áreas corticais superiores
não retinotópicas (experimento 3) e após a divisão em vias dorsal e ventral
(experimento 2) no processamento do preenchimento perceptual de escotomas
artificiais. Esses resultados são corroborados por outros trabalhos presentes na
literatura. Em estudo com ressonância magnética funcional durante o
preenchimento perceptual de escotoma artificial cinza (Mendola et al., 2006)
apresentado nos quadrantes visuais superior e inferior esquerdos, verificou-se
significativa redução da ativação nas áreas correspondentes ao escotoma em V1 e
V2. Entretanto observou-se aumento na ativação de V3A, V4v, sulco intraparietal,
sulco temporal posterior superior, região ventral occipital-temporal e pulvinar,
tanto para escotomas do campo superior, quanto para os do campo inferior,
sugerindo que o preenchimento perceptual de escotomas artificiais recruta áreas
visuais superiores para seu processamento.
Em registro eletrofisiológico do córtex visual V1 e V2 de macacos durante o
preenchimento de cores oponentes vermelho/verde (von der Heydt, 2003)
verificou-se que as células ativadas para a cor dentro de área cortical
correspondente ao escotoma artificial não revertem de acordo com a mudança
perceptual induzida pelo preenchimento. Ou seja, para escotoma artificial
vermelho e fundo verde, após o preenchimento perceptual a área do escotoma
torna-se perceptualmente verde, mas as células de V1 e V2 com campos receptores
correspondentes ao escotoma persistem na sinalização da presença da cor vermelha
(von der Heydt, 2003). Esse achado corrobora a impressão de que o preenchimento
de cor ocorre com grande influência de áreas visuais superiores à área visual
primária.
Por outro lado, em extenso trabalho de revisão (Seghier e Vuilleumier, 2006),
fica patente que, até o presente momento, não há consenso em relação às áreas
corticais responsáveis pelo preenchimento perceptual. Foram compilados vários
trabalhos (Seghier e Vuilleumier, 2006) sobre as áreas corticais ativadas
durante o processamento visual de contornos ilusórios de Kanizsa. Muitos
mostraram ativação de V1 e V2, outros apresentaram V1 e V2 completamente
inativas ou ativadas de modo inconsistente. Esses trabalhos compilados por
Seghier e Vuilleumier, nos quais se verifica a ativação cortical através da
ressonância magnética funcional, apontaram com grande frequência a ativação de
áreas visuais superiores tais como o complexo cortical lateral-occipital (LOC)
durante a visualização de contornos ilusórios. A área LOC é frequentemente
associada ao reconhecimento de objetos e superfícies com bordas estando nesse
caso provavelmente relacionada ao reconhecimento global da figura ilusória (Grill-Spector
et al., 2001).
Apesar das controvérsias citadas, é provável que todas as áreas corticais
estejam de algum modo envolvidas no processamento do preenchimento perceptual,
em maior ou menor grau, dependendo dos parâmetros visuais do objeto preenchido.
Esses parâmetros definem as vias iniciais do processamento como a parvocelular,
a koniocelular ou a magnocelular, que embora extensamente conectadas entre si ao
nível do córtex cerebral, ativam preferencialmente determinados sítios
cerebrais.
Conclusões:
1) Foi criada linha de pesquisa para avaliação de preenchimento perceptual
visual no Laboratório de Neurociências e Comportamento da UnB.
2) Foi elaborado software que possibilita a montagem de protocolos, a aplicação
de testes e a coleta resultados de experimentos com preenchimento perceptual.
3) Existe importante efeito da posição bidimensional do escotoma artificial na
latência de preenchimento perceptual.
4) Não há influência de variações estereoscópicas na latência de preenchimento
perceptual para os valores de disparidade aqui testados.
5) A diferença de resposta entre os canais vermelho/verde e azul/amarelo
corrobora evidências recentes de que estes são sistemas funcionalmente
distintos.
6) Dicromatas apresentam em média maior latência de preenchimento perceptual do
que os tricromatas em decorrência de sua maior sensibilidade ao brilho.
7) Tricromatas apresentam influência de áreas corticais não retinotópicas para o
preenchimento de cor.
8) Dicromatas possuem seu único canal de oponência de cor (azul/amarelo) mais
homogeneamente distribuído no campo visual do que tricromatas.