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Leia na Fonte: Teletime
[24/01/20]
Banda C, 5G e a dificuldade de escolher o caminho óbvio - por Samuel
Possebon
Sob qualquer aspecto que se olhe, é cada vez mais frágil a defesa da tese dos
radiodifusores de que o melhor modelo para evitar eventuais problemas de
interferência do 5G na recepção dos sinais de TV via satélite seria migrar todos
os canais para os satélites em banda Ku. Sem dúvida essa é uma solução que traz
risco zero de interferências, mas não apareceram argumentos técnicos ou
econômicos que provem que este é o modelo que melhor atende ao interesse
público.
É certo que a radiodifusão é um serviço de importância social indiscutível, e
que no Brasil muitas pessoas dependem da recepção via satélite, pois a cobertura
terrestre é limitada. Migrar esses canais para a banda Ku, às custas do edital
de 5G, contudo, não é algo que se sustente sob uma análise cuidadosa das outras
opções.
Recursos
A ideia dos radiodifusores é usar recursos do futuro leilão de 5G para subsidiar
a migração dos usuários de sistemas de recepção de TV em banda C para a banda Ku.
Isso significa que ou o governo arrecadará menos com o leilão para cobrir esse
custo, ou as operadoras de telecomunicações pagarão mais para ter a faixa, ou as
duas coisas ao mesmo tempo. Em qualquer uma das hipóteses, é indiscutível que
haverá uso de recurso público, e por isso a eficiência do modelo é premissa
fundamental. Na hipótese de migração para a banda Ku, a estimativa é de um custo
de R$ 1,5 bilhão, resolvendo o problema de apenas uma parte da população
(beneficiários do Cadastro Único), sendo que todos os usuários de banda C serão
afetados. Na hipótese da solução das teles, que prevê a instalação de filtros
nos casos em que efetivamente houver a interferência, os custo são de R$ 500
milhões, e o impacto seria muito menor, pois não existe o desligamento total dos
sinais e TV na banda C. Até há alguns meses, havia a dúvida sobre a eficácia dos
filtros, mas os testes do CPqD já mostraram que esse problema não existe.
A não ser que estas contas até aqui apresentadas se mostrem completamente
equivocadas, não parece haver dúvida de qual seria o melhor caminho em termos de
recursos púbicos, e o modelo das teles é o melhor. Mas pode-se argumentar que as
variáveis vão além do dinheiro envolvido.
Um argumento em defesa da migração das emissoras de TV para a banda Ku é que
isso libera o espectro de 3,5 GHz para futuros leilões de 5G. Com certeza o
apetite do IMT (padrão global de banda larga móvel) por espectro é insaciável e
a tendência é que no futuro de fato haja um avanço global do 5G (ou 6G) para
cima do espectro da banda C. Mas o fato de os canais de TV saírem da banda C não
é garantia de liberação de nada. Esta liberação terá que ser negociada, na
verdade, com as operadoras de satélite, que têm a prioridade de destinação da
faixa de banda C para seus serviços, pelo menos enquanto suas outorgas estiverem
válidas. Estes serviços vão além das transmissões de TV aberta. A banda C é
usada por aplicações corporativas de dados, para distribuição de canas de TV
fechados entre outras aplicações.
Algumas operadoras de satélite receberam a autorização de uso de espectro na
banda C atrelada à posição orbital recentemente (caso da SES, em 2014, por
exemplo). Isso significa que até pelo menos 2030 seria juridicamente complicado
para a Anatel tomar a faixa para o 5G, pois estão em jogo contratos decorrentes
de licitação pública, investimentos de centenas de milhões de dólares realizados
nos satélites e a expectativa legítima de pelo menos mais uma renovação do
espectro por mais 15 anos.
Além disso, as próprias operadoras de telecomunicações, que são as principais
interessadas em ter mais espectro no futuro, estão dizendo que não é necessário
liberar a banda C integralmente agora. E ainda que a banda C do satélite se
torne irresistível ao 5G para além da faixa de 3,8 GHz, com o novo modelo de
telecomunicações é bastante plausível que as operadoras de satélite que operam
em banda C sigam o caminho que foi adotado nos EUA, optando por vender as
frequências no mercado secundário, rentabilizando assim esse ativo, pelo qual já
investiram um bom dinheiro.
Modernização
O argumento dos radiodifusores de que a migração para a banda Ku proporcionará a
modernização da recepção via satélite também é frágil. A banda Ku digital está
longe de ser uma tecnologia nova. Ela é explorada pelas operadoras de TV por
assinatura, por exemplo, há pelo menos 25 anos no Brasil. Ao longo destes anos,
nenhuma emissora aberta optou por migrar para a banda Ku pelas vantagens
tecnológicas, até porque a banda C ainda tem vantagens em relação à robustez do
sinal. Desde 2007, quando começaram as primeiras transmissões e TV aberta
digital no Brasil, as emissoras de TV tampouco buscaram se entender para criar
um padrão único de digitalização da banda C para oferecerem aos seus
telespectadores as vantagens da alta definição. Brigaram entre si com padrões
proprietários que não levaram a lugar nenhum nem trouxeram benefícios aos
usuários.
Fato é que as emissoras de TV se acomodaram no modelo analógico que vigora na
banda C há quase 40 anos, sem nenhum esforço coletivo de melhorar o serviço. E
não foi só no satélite. Poucas investiram na digitalização das transmissões
terrestres ou ampliação da cobertura em grande parte dos municípios brasileiros.
Poderiam, em conjunto, ter instigado o governo a promover alguma política
pública de modernização das redes abertas de televisão, pleiteado incentivos em
troca de contrapartidas, proposto uma política de longo prazo de modernização do
mercado de radiodifusão, buscado parceria com emissoras públicas na construção
de redes compartilhadas, trabalhado para a atualização de normas e do marco
legal, defendido linhas de crédito… Nada foi feito. Só se movimentaram de
maneira coordenada no momento em que surgiu um edital de espectro para poder
pagar a conta. No caso da faixa de 700 MHz, as emissoras de TV tinham razão em
buscar uma compensação, pois eram as ocupantes da faixa e foram desalojadas para
dar lugar à banda larga móvel.
Mas na banda C há muito mais fragilidade jurídica, pois se trata de um serviço
que nem regulamentado é e cujas frequências não estão destinadas às emissoras,
mas sim aos serviços das operadoras de satélite. Ainda que a regulamentação
tivesse previsão para um "radiodifusor via satélite", usar recursos públicos na
atualização tecnológica deste serviço seria tão razoável (ou irrazoável) quanto
usar recursos públicos para trocar os celulares dos usuários de banda larga
móvel com a ultrapassada tecnologia 2G para aparelhos 4G, por exemplo. Algo,
aliás, justificável quando se fala na importância da conectividade para a vida
das pessoas.
É certo que a televisão aberta é um negócio cada vez menos rentável e que, para
além de duas ou três grandes emissoras, mostra-se quase inviável. Brasil
adentro, fora dos grandes centros, a viabilidade econômica é ainda mais
desafiadora. Isso é um problema quando se pondera o papel social da TV aberta.
Mas, afinal, a TV aberta no Brasil é um empreendimento privado, com os riscos
inerentes a tal, ou é um setor de interesse público, e como tal deve ser
regulado e sujeito a políticas públicas, ou mesmo passível de atuação estatal
direta? Ainda que seja um serviço remunerado apenas por publicidade e, portanto,
gratuito a quem tem o equipamento de recepção adequado, até que ponto prevalece
o risco empresarial e até que ponto deve entrar o interesse público? É uma
situação de esquizofrenia institucional que a radiodifusão não teve disposição
para enfrentar em outras ocasiões, e por isso se fragiliza ao invocar argumentos
nessa linha do interesse social apenas na hora de defender o uso de recursos
públicos.
Como comparação, o mercado tem pelo menos quatro operadoras de DTH nacionais que
transmitem os principais sinais das emissoras de TV aberta em seus pacotes.
Muitos com qualidade HD, inclusive pagando por esse conteúdo às redes de TV, e
seguindo os limites de cobertura regional de cada emissora (cuidado que, aliás,
boa parte das emissoras que operam na banda C nunca tiveram com suas próprias
afiliadas). O mercado de TV por assinatura é extremamente regulado, por lei
geral, lei específica e duas agências reguladoras. É um setor que cumpre cotas
de programação nacional, carrega canais de interesse público, contribui para
fundos públicos de fomento e universalização dos serviços, e que como poucos
setores da economia está sentindo pesadamente a crise econômica e os impactos
das mudanças tecnológicas. Nem por isso as operadoras de telecomunicações, que
operam estas redes de DTH, estão propondo usar recursos do 5G para investimentos
no próprio setor. Por analogia, até poderiam.
Se fosse para falar e modernização das transmissões de TV aberta, seria muito
mais razoável seguir o caminho das emissoras de rádio, que estão apostando na
transmissão via aplicativos. Certamente seria necessária uma complexa pactuação
com as operadoras de telecomunicações, mas por que não pensar em um modelo de
distribuição dos canais abertos de TV por meio da banda larga móvel, sem custo
ao usuário? Faz sentido a TV aberta gastar preciosos recursos em manter uma rede
própria de distribuição (terrestre ou via satélite), quando tudo caminha para a
banda larga (inclusive banda larga móvel)?
Prioridades
A chegada do 5G terá certamente um grande impacto econômico e pode contribuir
significativamente para um salto de inovação tecnológica no país em diversas
frentes, até mesmo no mercado de TV. No mundo inteiro, a maturidade do debate
sobre as implicações e estratégias de adoção do 5G é quase um marcador de
desenvolvimento. No Brasil não deve ser diferente. Mas estamos presos numa
questão acessória há um tempo excessivo.
A preocupação com as pessoas que dependem das transmissões via satélite para
receber os sinais de TV é justa e existem soluções tecnológicas viáveis e de
razoável custo/benefício para que elas não sejam prejudicadas com eventuais
interferência das transmissões em 5G na faixa de 3,5 GHz. Mas perder energia,
tempo e foco nessa discussão sobre o futuro da TV aberta via satélite quando
existem outras questões muito mais estratégicas a serem discutidas quando se
fala de 5G só evidencia a dificuldade que o Brasil e seus atores empresariais e
políticos têm de avançar no mundo digital.