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Leia na Fonte: Band / Colunas
[06/06/13]
Com aval da Anatel, teles vão mexer na sua conexão - por Mariana Mazza
Forças muito estranhas têm rondado a Internet brasileira. As últimas duas
semanas trouxeram à tona novamente um dos debates mais quentes nas
telecomunicações, sobre a neutralidade de rede. No dia 25 de maio, a Anatel
aprovou o novo Regulamento de Comunicação Multimídia (SCM), que traz as regras
para a prestação da Internet no país. O texto já está valendo, tendo sido
publicado no Diário Oficial da União no dia 31 do mesmo mês. O que o usuário das
redes não sabe é que esse documento tem potencial para mudar dramaticamente a
experiência dos consumidores na web.
O ponto alto, digamos assim, do novo regulamento é o fato de a Anatel ter
assumido o absoluto controle sobre a aplicação do princípio da neutralidade de
redes no Brasil. A neutralidade é talvez o maior ponto de atrito entre as
autoridades públicas e a sociedade civil na discussão sobre a oferta de Internet
no Brasil. Este princípio prevê que as operadoras de telecomunicações não façam
nenhuma discriminação entre os pacotes que trafegam na rede. Na prática, as
empresas ficariam proibidas de reduzir a velocidade oferecida quando seus
clientes acessassem serviços que demandam muita capacidade de rede ou concorram
com ofertas tradicionais das telefônicas, como aplicativos de voz sobre IP (VoIP).
Faço essa explicação no condicional porque o visão da agência reguladora destoa
do conceito básico da neutralidade defendido mundo afora. Para a Anatel, é
possível permitir que as empresas controlem a navegação dos usuário por meio da
redução de velocidade sem ferir o princípio da neutralidade de redes. Na visão
de muitos especialistas em Internet e ativistas o conceito anatelino não passa
de uma distorção, colocando os interesses do mercado acima dos direitos civis
dos usuários. Vários países também temem que a flexibilização do conceito da
neutralidade coloque em risco a democracia no acesso às informações na Internet.
No ano passado, a União Europeia divulgou um documento defendendo efusivamente a
adoção do princípio da neutralidade de redes sem exceções.
Um detalhe: apesar de a Anatel ter tornado pública sua visão deste conceito em
eventos nacionais e internacionais, a agência nunca colocou por escrito o que
entende por neutralidade em nenhum documento que rege o setor. O Regulamento do
Serviço de Comunicação Multimídia mantém a omissão. A agência incluiu nas
disposições finais e transitória a determinação de que as prestadoras devem
respeitar a neutralidade de rede, conforme regulamentação, nos termos da
legislação, mas não diz o que entende por neutralidade.
A frase sugere que pode vir um Regulamento da Neutralidade por ai, ao jogar para
uma regra ainda inexistente os parâmetros para o cumprimento deste artigo. O
lacônico texto da agência é esperto. Com a frase solta ao vento a Anatel força
seu protagonismo na gestão da neutralidade, mas ainda assim tenta manter o
direito da presidência da República (daí a citação à regulamentação) e do Poder
Legislativo (nos termos da legislação) de definir o conceito que será adotado no
Brasil. O texto pode estar ensaboado, mas não o suficiente para que a agência
escape da crítica de que a inserção da frase é um atropelamento do debate que
vem sendo travado há anos no Congresso Nacional em torno do Marco Civil da
Internet.
A neutralidade de rede foi a grande pedra no caminho da aprovação do Marco Civil
no ano passado, na Câmara dos Deputados. A briga girou em torno justamente da
legitimidade da Anatel para ser a única responsável pela gestão da neutralidade.
Na visão do relator da proposta Alessandro Molon (PT/RJ), quem deveria dizer
quais as diretrizes para a oferta da Internet é a Presidência da República, por
decreto, e não a agência reguladora. Ironicamente, o Ministério das Comunicações
(para onde poderia ser transferida esta atribuição) teimou que deveria existir
uma citação clara na nova lei dando poderes para a Anatel regulamentar a
neutralidade. O impasse impediu que o texto fosse votado e, por ora, não há
previsão de quando a proposta retornará à pauta da Câmara.
Como todos sabem, não existe vácuo legal. Na ausência do Marco Civil da
Internet, a Anatel não se furtou em fincar sua bandeirinha no território da
neutralidade, deixando bem claro que, seja qual for a ação do Legislativo, a
palavra final sobre o assunto será dela. Mas o movimento da agência não ficou
restrito ao campo político.
Entre várias mudanças na relação consumidor/empresa de banda larga, a Anatel deu
às companhias o direito de reduzir a velocidade de conexão de seus clientes. A
jogada vale para os pacotes de franquia de dados, em que os consumidores pagam
para usar uma quantidade limitada de bytes no acesso à Internet. De acordo com o
novo texto em vigor, após o fim da franquia, a operadora tem o direito de
derrubar a velocidade de conexão do cliente. Se o consumidor quiser manter a
velocidade, terá que pagar por isso.
Se considerarmos o que está escrito nos regulamentos de qualidade editados pela
Anatel, essa queda na velocidade estaria limitada, garantindo a entrega de 70%
da velocidade média contratada neste ano e de 80% a partir de 2014. Acontece que
a própria agência não pretende aplicar a regra da qualidade sobre os pacotes de
franquia. Segundo fontes, a interpretação é que as regrinhas de qualidade só
valem enquanto o pacote de dados está sendo consumido. Depois que a franquia
acabar, a operadora pode reduzir a velocidade para o patamar que quiser,
inclusive abaixo do mínimo exigido pela Anatel no regulamento de qualidade.
Esta interpretação cai como uma luva nos argumentos das empresas durante a
consulta pública do Regulamento do SCM. As grandes companhias reclamaram que não
seria justo manter o nível de qualidade após o consumo da franquia. A TIM chegou
a dizer que o consumidor seria premiado caso a Anatel exigisse uma velocidade
mínima após o uso completo do pacote. Cabe ressaltar aqui que não existiria
prêmio algum aos clientes uma vez que estes pacotes de franquia preveem a
cobrança excedente após o consumo do pacote.
Além de desrespeitar o consumidor, este artigo do novo regulamento abre um
precedente grave na disputa em torno da implementação do princípio da
neutralidade. Ao assegurar às empresas o direito de manipular ao seu bel prazer
a velocidade contratada pelo assinante, a Anatel inicia a pavimentação do
caminho onde a redução da velocidade é vista como uma ferramenta válida para as
empresas gerirem suas redes. E, por consequência, isso não feriria a
neutralidade das redes na visão do agente regulador.
Todos esses aspectos criam um cenário preocupante para os milhões de brasileiros
que usam a Internet. Em favor dos interesses puramente comerciais das empresas
de telecomunicações, as autoridades públicas estão gradativamente permitindo que
o cidadão brasileiro sofra uma censura tão grave ou pior do que a feita por
governos ditatoriais. Teremos nosso acesso à informação controlado e limitado
por grupos econômicos estrangeiros. Grupos estes que, nos últimos tempos, têm
deixado bem claro que sequer se importam em prestar um serviço de qualidade
mínima, vide a degradação da telefonia móvel no Brasil. Quem está sendo premiado
com este regulamento é o mercado, às custas do direito do consumidor de ter um
serviço de qualidade e pleno acesso à uma rede, que até ordem em contrário, é
livre.