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Fonte: Carta Capital
[19/02/09]
Nos
bastidores das telecomunicações (Entrevistada: Flávia Lèfevre) - por Luiz
Antonio Cintra
Nos últimos três anos, a advogada Flávia Lèfevre acompanhou de perto o
surgimento das novas regras do setor de telecomunicações que permitiram, entre
outras novidades, a compra da Brasil Telecom pela Oi, como desejava o governo
federal. Nesse período, Flávia fez parte do Conselho Consultivo da Anatel, um
órgão de aconselhamento da direção da agência, sem poder deliberativo. Foi para
o conselho, composto por 12 integrantes, em uma das duas vagas destinadas aos
representantes dos usuários.
Antes de deixar o conselho, como representante da Pro Teste, uma associação de
defesa dos direitos dos consumidores sediada em São Paulo, Flávia abriu um
processo contra a Anatel. Segundo a advogada, a agência agiu
inconstitucionalmente ao fechar um acordo de troca de metas com as
concessionárias de telefonia fixa do País. Pelo acordo, ficou acertado que as
operadoras terão de levar banda larga a todas as cidades onde atuam. “Isso é
totalmente ilegal. Elas não podem usar receitas da telefonia fixa para investir
em um negócio em regime privado, como é o da banda larga”, afirma. Além disso,
Flávia critica a exclusão de uma cláusula que garantia o retorno à União, ao fim
da concessão, da infraestrutura que terão de construir até 2010.
A Justiça federal concedeu liminar a favor da Pro Teste. Na sentença, a juíza
Maria Cecília de Marco Rocha considerou que a retirada da cláusula abriu margem
para futuras ações judiciais das operadoras. “Infere-se que houve vício de
motivação, já que se consignou a reversibilidade e acolheram-se os argumentos em
sentido contrário, calcados na tese de que o backhaul não é essencial ao Serviço
Telefônico Fixo Comutado (STFC). Conclui-se, ademais, que o vício abriu margem
para que as concessionárias do STFC questionem, no futuro, a reversibilidade do
backhaul”, anota a juíza. No dia 14 de janeiro, o desembargador Antônio Ezequiel
da Silva confirmou a liminar.
A reversibilidade do backhaul à União, como é chamada a infraestrutura de banda
larga, foi retirada da minuta do contrato, de acordo com a Anatel, por ser
“redundante”. A agência afirma que essa condição já está prevista no contrato
original de concessão. Na entrevista a seguir, a advogada comenta a disputa
jurídica com a Anatel e outros lances das telecomunicações do País.
CartaCapital: No ano passado, a Anatel alterou o marco
regulatório para permitir a compra da Brasil Telecom pela Oi. Em seguida, trocou
as metas das concessionárias de telefonia fixa, que terão 2010 para construir o
chamado backhaul, a infraestrutura necessária para a internet em alta
velocidade, em todos os municípios das concessões. Como a senhora avaliou essas
mudanças?
Flávia Lèfevre: A alteração da Lei Geral de Outorgas para
viabilizar o negócio entre a Brasil Telecom e a Oi vai significar um impacto
violento na possibilidade de se acirrar a competição. Se somarmos a essa
alteração, a troca de metas do Plano Geral de Universalização das Metas (PGMU),
quando o governo pretendeu que as concessionárias implantassem a rede para
comunicação de dados, chamada pela Anatel de Serviço de Comunicação Multimídia (SCM),
veremos a repetição do que acontece hoje com a telefonia fixa. A telefonia fixa
é concentrada nas mãos das concessionárias e cartelizada, uma não atua na região
da outra, quando elas já poderiam estar fazendo isso. A Oi poderia atuar em São
Paulo, a Telefônica na região da Brasil Telecom, por exemplo.
CC: Por que a senhora votou contra a troca de metas no
conselho consultivo da Anatel?
FL: O backhaul é o fio de uma meada que cada vez
conseguimos puxar mais. Fui relatora da troca de metas no Conselho Consultivo, e
fui voto vencido por 10 votos contra 2. Só que a Pro Teste, por entender que o
backhaul é ilegal, foi para a Justiça. As metas de universalização que são
essenciais para a telefonia fixa já foram cumpridas. Elas estavam no primeiro
decreto que estabeleceu as metas, e em dezembro de 2005, quando venceu a
primeira fase da privatização, era condição sine qua non, de acordo com a Lei
Geral das Telecomunicações (LGT), que as metas deveriam ter sido cumpridas para
permitir a renovação das concessões.
CC: E elas foram de fato cumpridas?
FL: Sem entrar no mérito se foram cumpridas ou não, o fato
é que a Anatel certificou o cumprimento das metas, tanto que prorrogou os
contratos por mais 20 anos, era condição para a prorrogação. As próprias
concessionárias afirmam que 100% das metas relativas à universalização foram
cumpridas. Ou seja, em qualquer localidade do País, o usuário tem condições de
solicitar a instalação de um telefone fixo. Além disso, 100% da rede foi
digitalizada, outra meta. A pergunta então é por que temos uma penetração de
STFC tão baixa, com uma média de menos de 21 telefones a cada 100 habitantes,
sendo que em alguns estados não chega a oito? Porque as pessoas não têm dinheiro
para pagar a assinatura básica, não por falta de infraestrutura.Considerando
isso, não queremos as PSTs das metas antigas, mas sim a redução das tarifas.
CC: O governo argumenta que a troca de metas tem o
objetivo de fomentar a expansão da banda larga, como parte de uma política de
inclusão digital.
FL: Dizem que o backhaul é importante para a expansão da
banda larga, ótimo, também achamos, só que a LGT é clara neste ponto. A LGT diz
que não serão deixados à exploração exclusiva do regime privado os serviços
considerados essenciais. Se o governo acha que a banda larga é tão importante
assim, e nós achamos também, deveria usar a sua atribuição constitucional e
baixar um regulamento geral de serviços, coloque lá Serviço de Telefonia Fixa
Comutada, Serviço de Comunicação de Dados e fale: esses serviços serão
explorados no regime público e no privado. Então se o governo reputa a banda
larga como algo tão importante, ele que faça isso. Na verdade, o governo não tem
alternativa de acordo com a Lei Geral. A LGT diz que, para cada modalidade de
serviço, haverá um contrato específico. E fala expressamente que é proibido o
subsídio entre as diferentes modalidades de serviços. Se o backhaul é uma rede
IP de acesso à internet em banda larga, como a própria Anatel falou, como é
possível incluir no contrato de serviço de telefonia fixa uma meta de
universalização para a implantação de uma rede que atenderá um outro serviço?
Com isso, oneram-se as tarifas da telefonia fixa. É importante investir na
inclusão digital, mas não pode fazer subsídio cruzado nem dar de presente para
as concessionárias, sem licitação, a implantação dessa rede. Isso é totalmente
ilegal, além de socialmente injusto porque já pagamos a implantação da rede do
STFC. Qual a justificativa para onerar o contrato de concessão para criar um
subsídio para um serviço prestado no regime privado?
CC: O consumidor pagará a conta desse investimento?
FL: Pela lei, a receita para o cumprimento de metas é
proveniente da exploração eficiente do serviço. Ora, se as empresas assumem o
compromisso de implantar uma infraestrutura e a receita tem de vir dali, quando
fizer uma revisão de tarifa, as concessionárias irão argumentar que não poderão
reduzir as tarifas porque têm todas essas metas a cumprir. E a tarifa não irá
baixar. Considerando que essa rede não é essencial ao STFC, isso representa um
descumprimento do princípio da modicidade tarifária. E isso porque o serviço
público essencial tem de gerar lucro para a concessionária, mas o menor lucro
possível, já que o objetivo principal é ampliar o acesso do serviço. E para
tanto é necessária uma tarifa módica, caso contrário a infraestrutura estará em
todo o País, mas não será utilizada.
CC: Daí a decisão de ir à Justiça.
FL: Entramos com a ação civil pública no dia 11 de abril
do ano passado, alguns dias após a assinatura dos aditivos aos contratos de
concessão para a troca de metas. A princípio, a juíza da primeira instância não
concedeu a liminar. Como eu estava no conselho consultivo da Anatel, continuei
acompanhando o caso. E pedi para a Anatel a cópia dos aditivos para juntar aos
processos. Quando me mandaram o contrato, levei um susto ao perceber que havia
sumido uma cláusula, a que deixava expresso que a rede do backhaul era
resersível, ou seja, que ao final da concessão seria devolvido à União.
Imediatamente informei à juíza. E falei na Anatel, já que era preciso um
processo administrativo interno para justificar a retirada da cláusula, já que
havia passado por consulta pública, e durante a consulta o documento que foi
finalizado para a análise do Conselho Consultivo, trazia uma minuta com cláusula
da reversibilidade. E no dia 29, quando fui ver, tiraram a cláusula. A primeira
irregularidade é que a mudança da cláusula estava sendo discutida dentro da
agência concomitantemente à discussão no Conselho Consultivo, que não foi
informado sobre o que se passava. Não foi dada nenhuma publicidade a essa
mudança.
CC: Como se deu a retirada da cláusula?
FL: A retirada da cláusula se deu por um procedimento
interno da Anatel chamado circuito deliberativo. O decreto foi editado dia 7 de
abril, os aditivos foram assinados dia 8 de abril. A cláusula foi retirada do
dia 7 para o dia 8, apoiada em um parecer da Procuradoria da Anatel, segundo o
qual a cláusula seria irrelevante porque, como se trata de uma meta de
universalização, estaria subentendida ser reversível, conforme justificativa
número 30 da consulta pública. E abre aspas como se uma das empresas que
participaram da consulta pública tivessem concordado com o fato de que a rede
seria naturalmente reversível. Fui conferir as contribuições das empresas
durante a consulta pública, e quase caí para trás. Em primeiro lugar, porque o
texto entre aspas no parecer simplesmente não existe. E não só não existe, como
o que todas as empresas dizem nessas contribuições é justamente o contrário.
Segundo elas, como essa rede não é essencial para o STFC e será usada para a
banda larga, estaríamos abrindo um precedente ruim de colocá-lo como um bem
reversível, já que ele não é reversível. A Oi, a CTBC e a Telefônica afirmaram
isso, como justificativa para a retirada da cláusula. A Anatel e a União
entraram com um recurso para suspender a liminar, perderam e o presidente do TRF
negou, mantendo a liminar. Com isso, os aditivos do backhaul estão suspensos.
Diante disso, a Anatel, que sempre disse que a cláusula era desnecessária,
chamou as concessionárias de volta, para incluir novamente a cláusula, com um
prazo de 48 horas. Daí a Oi, a Brasil Telecom e a Telefônica disseram que não
irão assinar. Só a Sercontel e a CTBC toparam, e isso porque elas têm zero de
backhaul para construir, inclusive porque tem área de concessão muito pequena.
Depois, o presidente da Telefônica afirmou que assinará, desde que a Anatel
deixe claro o que é exatamente o backhaul. Agora, é muito estranho, porque isso
significa que as concessionárias assinaram um contrato sem saber a que ele se
referia.
CC: A senhora considera que o governo está equivocado na
condução da política nacional de telecomunicações?
FL: O governo quis modificar o cenário das
telecomunicações no País, mas não quis enfrentar o caminho democrático para
fazer essa mudança. Em primeiro lugar, seria preciso ter mudado a LGT, já que
várias coisas que estão sendo feitas são contra a lei. O mesmo no caso do
backhaul, e neste caso até aqui a Justiça tem sido favorável à minha tese.