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Leia na Fonte: Tele.Síntese
[18/01/16] "Over the top" não está sobre o topo da nossa Constituição e Soberania - por Marcos Dantas*

*Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ; vice-presidente da União Latina de Economia Política da Comunicação – Capítulo Brasil (ULEPICC-Br); membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Google ou Facebook conquistam enormes audiências e correspondente faturamento publicitário. Diferenciam-se da "velha" radiodifusão porque não precisam assalariar, direta ou indiretamente, os artistas e jornalistas necessários para produzir essa audiência.

No entanto, se examinados de fora do discurso interessado dos porta-vozes desses empreendimentos, se iluminados por maior rigor conceitual, talvez quase nenhum desses negócios sustente-se como sendo realmente uma grande novidade. E, daí, não teriam porque deixar de serem tratados nos termos da legislação vigente, no máximo adaptada a detalhes circunstanciais.

Cadeia de valor

Tradicionalmente, o amplo setor das Comunicações divide-se em dois grandes ramos: telecomunicações e radiodifusão.

Por telecomunicações, entende-se um sistema de comunicação ponto a ponto, bidirecional, neutro relativamente ao conteúdo da mensagem, isto é: o prestador desse serviço não interfere e não pode interferir naquilo que é comunicado pelo seu usuário, logo o seu negócio centra-se na gestão da qualidade do sinal que permita às mensagens serem bem emitidas e bem recebidas, em ambas as direções.

E por radiodifusão, qualquer autor sério entenderá um sistema de comunicação ponto-multiponto, unidirecional ou multidirecional, cujo negócio se baseia na produção e divulgação de conteúdos culturais: notícias, músicas, entretenimentos vários, dramaturgia etc. O prestador do serviço é diretamente responsável por aquilo que é comunicado ao seu usuário.

No caso das telecomunicações, o prestador do serviço emprega engenheiros e outros técnicos que possam garantir a qualidade do sinal.

No caso da radiodifusão, o prestador, ainda que também necessite assegurar sinal de boa qualidade, empregará principalmente artistas, jornalistas, outros profissionais que possam lhe produzir mensagens com qualidade necessária para atrair um grande público (“audiência”).

Essas diferenças essenciais diferenciam naturalmente toda a cadeia de valor desses dois segmentos. Não faz parte da cadeia de valor das telecomunicações, por exemplo, indústrias que produzem discos ou filmes. Mas essas indústrias farão parte da cadeia de valor da radiodifusão.

As receitas de telecomunicações provém, principalmente, da cobrança por uso. As da radiodifusão provém, na maior parte, do faturamento publicitário, o que leva à sua necessidade de produzir grandes audiências capazes de justificar o investimento publicitário de terceiros.

Porque integra, na sua cadeia de valor, a produção e distribuição das indústrias de conteúdos culturais, a radiodifusão encontra-se, ainda, também contida em outro grande setor político-econômico, sem o qual sequer existiria: a indústria cultural propriamente dita. Antes da evolução das tecnologias digitais e da internet, essa abrangente indústria podia ser dividida em dois grandes ramos: “editorial”, que produz, fabrica e distribui discos, filmes, livros; e “onda”, a radiodifusão em si, ela mesma, repetindo, componente da cadeia de distribuição do setor editorial.

Como todo o valor, nos ramos de conteúdo, apóia-se em direitos autorais facilmente anuláveis dados os custos marginais tendendo a zero das cópias (numa abordagem marginalista) ou à difícil redução do trabalho concreto artístico a trabalho abstrato (numa abordagem político-econômica), a realização do valor só será possível por meio da edificação de barreiras à entrada.

Quando a base técnica era analógica, essas barreiras podiam ser facilmente erigidas, seja pelo sistema industrial-fabril, demandante de volumosos capitais monetários necessários à reprodução e distribuição de cópias de livros, discos e filmes; seja pela escassez de freqüências radioelétricas disponíveis para a radiodifusão.

A digitalização e, com ela, a internet derrubaram boa parte das barreiras mas não afetaram, na essência, a natureza dos negócios. Ou se afetaram, foi na crescente eliminação da cadeia de valor da indústria editorial, de quase tudo relacionado aos processos físicos de reprodução (prensagem de discos, impressão de livros), fazendo esse subsetor adquirir um formato muito similar ao da indústria de onda.

A música, por exemplo, cada vez menos necessita ser prensada em disco pois pode ser enviada diretamente, por radiofreqüências atmosféricas, a cabo ou satélite, de algum grande computador servidor central para os equipamentos terminais de acesso, fixos ou móveis, de seus apreciadores. Certamente, essa reconfiguração da cadeia de valor abriu oportunidade para a emergência de novos vencedores (Apple, por exemplo), assim como tem causado grandes perdas, às vezes definitivas, àqueles que não souberam ou não puderam se modificar e sobreviver (por exemplo, centenas e centenas de lojistas de bairro especializados na distribuição local, para aluguel, de cópias de filmes, ou DVDs).

Um desses lojistas, nos Estados Unidos, entendeu, ainda no século passado, que o seu negócio não precisava ficar restrito ao bairro. Através dos correios, montou um sistema de entrega a domicílio a qualquer endereço dos Estados Unidos. Com a evolução das redes de telecomunicações em alta velocidade associada à generalizada digitalização dos conteúdos audiovisuais, percebeu imediatamente que podia mudar sua plataforma de distribuição. E o mundo tomará conhecimento do Netflix…

A produção da indústria cultural, para chegar no mercado, é organizada em alguma programação que inclui tanto “lançamentos” quanto estoque de “catálogos”. A indústria de onda, podendo entregar seus produtos ao mercado num tempo no limite de zero (“tempo real”), logra organizar sua programação por segmentos de dias e horas – a programação linear típica do rádio ou da televisão.

No entanto, a crescente convergência de edição e onda, está levando a programação a assumir, cada vez mais, características editoriais: o chamado “pay per view”. O mercado vai substituindo, aos poucos, a programação linear da “velha” radiodifusão, por programação não-linear, embora apoiada em sistemas eletro-eletrônicos de transmissão e distribuição (não mais de sinais analógicos mas digitais), mais próprios da radiodifusão. O Netflix cresceu aqui.

Se, nisto tudo, surgiu realmente uma grande novidade, esta encontra-se na emergência e acelerada massificação de um terceiro modelo de programação: o “reticular”, típico da internet. Na medida em que qualquer indivíduo pode “radiodifundir-se”, como prega o YouTube, os investidores perceberam aí um fantástico potencial de mobilização de trabalho e produção de conteúdos, com a grande vantagem de não necessitarem concentrar esse trabalho em territórios definidos (logo, poupando-se dos investimentos em prédios, instalações etc.), nem (mais importante) manterem com ele os encargos das relações contratuais trabalhistas – o gênio capitalista conseguiu inventar o trabalho… gratuito! Esta nova, de fato, relação de trabalho e produção de valor expande os muitos negócios nascidos da internet, como o Google, o Facebook e tantos portais que, por aí, abrigam blogs, vídeos etc. Qualquer um se torna jornalista, qualquer uma se faz apresentadora de TV…

Com base nesse novo processo de agenciamento de trabalho, Google ou Facebook conquistam enormes audiências e correspondente faturamento publicitário. Diferenciam-se da “velha” radiodifusão porque não precisam assalariar, direta ou indiretamente, os artistas e jornalistas necessários para produzir essa audiência. A audiência se auto-produz. Ainda assim, se a relação de trabalho, na sua extrema precariedade e irresponsabilidade, é efetivamente nova, seguimos falando de uma indústria cultural que tende a convergir aspectos característicos de onda e edição.

Esse recrutamento de trabalho reticular nas dimensões espaço-temporais mundiais da internet, tornou-se possível devido à expansão, nas últimas décadas, de infra-estruturas “globalizadas” de telecomunicações. Um amplo conjunto de profundas mudanças econômicas, políticas e até culturais ou psico-sociais no mundo capitalista liberal democrático desde a crise do petróleo, em 1973, provocou, entre tantas outras conseqüências, um novo ordenamento regulatório nas telecomunicações que derrubou regras oriundas das primeiras décadas do século XX. Uma das mais importantes, talvez a mais importante, tenha sido a eliminação das restrições à internacionalização das operadoras de telecomunicações. Surgem daí gigantescas operadoras transnacionais: AT&T, British Telecom, Telefónica, Level3, a mexicana América Móvil (ex-Telmex) etc. No Brasil, o governo Cardoso houve por bem excluir a Telebrás, logo o nosso País, desse jogo…

“Convergência”

A mundialização das redes de telecomunicações, embora concentrada em poucas corporações “globais”, permitiu, sobre essa infra-estrutura internacionalizada, a mundialização da indústria de onda, trazendo junto, em novo digital formato, a indústria editorial. Assim, os negócios de telecomunicações que, sobre a base técnica analógica, evoluíam em paralelo, embora não raro conectados, com os negócios da radiodifusão e da cultura, passaram a se integrar cada vez mais com estes, dando origem ao que se chama “convergência”.

Certamente, para os investidores, pode ser muito interessante essa convergência de negócios e seu correspondente discurso marqueteiro. Mas numa abordagem mais objetiva, continua perfeitamente possível visualizar neles, cadeias de valor e relações de trabalho que distinguem muito claramente “telecomunicações”, “indústrias culturais de onda”, “indústrias culturais editoriais”. Se podemos falar de “convergência”, esta pode estar se dando na indústria cultural, na medida em que as antigas barreiras analógicas à entrada vão sendo substituídas por novas barreiras digitais na forma de “jardins murados”: sistema iPod-iTunes, Kindle-Amazon, a televisão por assinatura, o Facebook etc.

A interessada confusão conceitual tem, no entanto, refletido-se em pressões político-jurídicas que podem afetar fortemente as leis que regulam o campo das Comunicações e da Cultura. Isso é especialmente grave no Brasil, pois nossas autoridades políticas e regulatórias não se têm mostrado muito afeitas a investigar conceitualmente os processos, preferindo ajustar suas velas para onde sopram os ventos… Diferente, parece, é o comportamento dos países da União Européia onde as mudanças não deixam de produzir alterações também político-regulatórias mas sempre após muitos estudos e amplo debate. Daí, por exemplo, as diretrizes continentais que, até 2010, referiam-se à “televisão” e, desde então, se referem ao “audiovisual”: clara visão de que os negócios a serem regulados tratam menos de plataformas tecnológicas, mais dos conteúdos culturais produzidos e transmitidos.

Nestes, o tratamento a ser dado à cadeia produtiva cultural reticular, mais conhecida por internet, tem sido, mundialmente, um problema. E já há quem comece a sustentar que, considerando o grau de essencialidade social adquirida pela internet, tanto nas atividades econômicas quanto nas lúdicas, deve-se pensar na sua organização como um serviço público.

Para entender a internet, um primeiro ponto deve ficar claro: uma coisa são as trocas de e-mails pessoa a pessoa ou os sítios pessoais e empresariais suportados diretamente em empresas (grandes ou pequenas) prestadoras de serviços de acesso;
outra coisa, são grandes corporações como Google ou Facebook, atraindo para dentro de seus muros, cada vez mais, as práticas que se faziam (e ainda se fazem) livremente na grande rede. O Google, com o seu gmail, parece substituir-se aos velhos Correios, obedecendo, ao menos até agora, ao princípio da neutralidade ante o conteúdo – ou correspondência “inviolável”. Mas será mesmo que esse tipo de serviço pode ser privatizado, sem que a lei o autorize? É uma pergunta…
Já o Facebook transformou as conversas pessoais privadas, antes mantidas na sala de jantar ou na roda de botequim, em conversas públicas. E, vez por outra, por isto mesmo, até se dá ao direito de censurá-las, ainda que conforme seus opacos critérios. No momento em que qualquer indivíduo se propõe a ser um “espetáculo”, não será o caso de interrogar como o Facebook, ou o YouTube, entre outros, se enquadram, ou não, nos artigos 220 e 221 da nossa Constituição?

Outras situações poderiam parecer de equação bem mais simples, à luz de conceitos mais rigorosos. O WhatsApp, por exemplo, é um serviço de telecomunicações (voz e dados) suportado nas redes transnacionais de tráfego em alta velocidade. Explorando as possibilidades das tecnologias de comutação por pacote e das redes distribuídas (mundialmente), ele operou aquilo que as antigas redes analógicas (nacionais) não faziam, menos por real impedimento tecnológico, mais por causa de um tradicional modelo de negócios: separou o serviço (neutro) de troca de mensagens da sua infra-estrutura de transporte.
Enquanto serviço de telecomunicações, precisaria ser considerado à luz do artigo 21, item XI da nossa Constituição.

No entanto, uma vez introduzida essa separação entre o serviço de mensagens e a rede de transporte, seria o caso também de se considerar a introdução no Brasil do modelo de “regulação por camadas”, outra inovação européia para estes novos tempos, adotada, aliás, no nosso Marco Civil da Internet. O artigo 21-XI se aplicaria à camada de rede, logo alguma nova regulação deveria deixar isto claro.

Permanece, porém, em aberto a importantíssima questão da transnacionalidade do serviço e suas implicações para a economia brasileira e até para a segurança nacional. Qualquer serviço de telecomunicações, para operar no Brasil, deveria ter CNPJ brasileiro, estar devidamente autorizado por autoridade competente e cumprir suas obrigações fiscais nos termos da nossa legislação. Mesmo que sobre o topo…

Já o Netflix não passaria de uma grande locadora transnacional de produtos audiovisuais unitários, nas condições da indústria cultural editorial, se não tivesse migrado para o transporte por onda e, mais importante, em tempos mais recentes, não começasse a investir nas suas próprias produções.

Seu modelo, mais e mais, aproxima-se da cadeia de valor da nova indústria cultural convergente, integrando aspectos editoriais e de onda. Aqui – e não só devido ao Netflix – se impõe a necessidade de uma ampla revisão no nosso marco regulatório, atualizando todo o tratamento a ser dado à radiodifusão. Uma solerte, de fonte ignorada, e quase nada comentada mudança no item XII do art. 21 da Constituição, na reforma cardosina de 1995, subtraiu a radiodifusão do conceito abrangente de telecomunicações, na pretensão de limitá-la aos “velhos” rádio e televisão unidirecionais abertos.
Menos mal que, em 2002, nova reforma, introduziu, no parágrafo 3º do art. 222, a obrigação de “os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para prestação do serviço”, observarem os princípios do art. 221 (aplicados à radiodifusão), na forma de lei específica.

Como tudo o mais num texto constitucional, a precisa definição de seus conceitos cabe à lei “específica”. Podemos entender por “meios de comunicação social eletrônica”, as “atividades de telecomunicações ou de radiodifusão que possibilitam a entrega de programação audiovisual ou de rádio em qualquer plataforma, com as seguintes características:
a) fluxo de sinais predominantemente no sentido da emissora, prestadora ou operadora para o usuário;
b) conteúdo da programação não gerado pelo usuário; e
c) escolha do conteúdo das transmissões realizada pela prestadora do serviço, seja como grade de programação, seja como catálogo limitado de oferta de programação” – conforme proposto, pelo Fórum Nacional para a Democratização das Comunicações (FNDC), no seu projeto de lei de iniciativa popular para regular os meios. Como sabem os muito bem informados, essa definição foi quase toda, com pequeníssimas mudanças, extraída de definição proposta por um dos muitos anteprojetos de lei deixados pelo falecido ministro Sergio Motta em alguma gaveta do Ministério das Comunicações, e lá esquecidos até hoje… Nela, vê-se, se enquadraria o Netflix. Nela, aliás, também se enquadra o serviço de televisão por assinatura atualmente regulado pela lei 12.485/2011 e, nesta, equivocadamente definido como “serviço de telecomunicações”.

Concluindo, o termo “OTT” pode simplificar raciocínios… e confunde as mentes. No Brasil, o debate sobre a regulamentação das Comunicações tende a ser segmentado, ao sabor do jogo de pressões, quando, liderado pelo Governo, deveria ser integrado, considerando as relações sistêmicas que aí se apresentam.

Neste momento, o Ministério das Comunicações está propondo uma revisão da Lei Geral de Telecomunicações que, a julgar por muitas intervenções na consulta pública encerrada no último dia 15, e pelas próprias proposições do MC, não apenas ignoram qualquer ampla visão de conjunto como, pior, em alguns casos ignoram a própria Constituição brasileira.

Precisamos resgatá-la. E construir uma lei geral que obedeça a seus princípios, inclusive, em se tratando dos fundamentos da ordem econômica, o primeiro de todos, no art. 170: soberania nacional.