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Leia na Fonte: Teletime
[18/09/19]
Decisão do TCU sobre bens reversíveis pode travar novo modelo - por Samuel
Possebon
A operacionalização do principal aspecto do PLC 79/2016, que cria o novo modelo
de telecomunicações, pode estar em risco em função de uma divergência
metodológica fundamental que opõe, hoje, TCU, Anatel e empresas de
telecomunicações. O Tribunal de Contas da União julgou na semana passada um
recurso da Anatel em um processo sobre o acompanhamento da questão dos bens
reversíveis. O entendimento final do tribunal, no entendimento de técnicos e
advogados ouvidos por este noticiário, pode dificultar imensamente, ou mesmo
inviabilizar, a aplicação em projetos de banda larga dos recursos da conversão
das concessões de telefonia fixa em autorizações, como preconiza o novo modelo.
A decisão do TCU, na forma do Acórdão 2.142/2019, foi votada horas antes de o
PLC 79/2016 ser aprovado pelo Senado, por unanimidade, mas só se tornou pública
no dia seguinte, quando foi publicada pelo noticiário Telesíntese.
A decisão da corte de contas tem o potencial, na visão de especialistas ouvidos
por este noticiário, de travar qualquer possibilidade de a Anatel definir a
metodologia e calcular rapidamente o valor correspondente à adaptação das
concessões de telefonia fixa em autorizações e conseguir converter estes valores
em projetos de banda larga. Este valor econômico, segundo o novo modelo aprovado
pelo Congresso, seria revertido em compromissos de investimento priorizando "a
implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados
em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades".
A razão do impasse é que a decisão do TCU entende o patrimônio das
concessionárias como patrimônio público e consagra a visão patrimonialista sobre
bens reversíveis, ou seja, ao final da concessão tudo volta para a União. Este
entendimento vai em direção oposta às premissas e ao trabalho que a Anatel vinha
fazendo até aqui, em que todas as modelagens e acompanhamentos sobre a concessão
partiam do princípio de que o patrimônio era privado e que a reversibilidade dos
bens da concessão obedeceriam a lógica funcionalista, com a posse retornando ao
Estado apenas nos casos essenciais. Foi esta a visão que a Anatel levou ao
Senado durante a tramitação do PLC 79, que tem fundamentado boa parte das
decisões sobre bens reversíveis e até mesmo atualizações na regulamentação, como
o novo Regulamento de Bens Reversíveis previsto na agenda regulatória, que
estava sendo redesenhado para se tornar o Regulamento de Continuidade da
Concessão, em que o futuro concessionário, se houver interesse, é quem diria que
bens seriam essenciais ao STFC. Tudo isso cai por terra com o acórdão do TCU.
O TCU cravou por unanimidade (10 ministros votaram a favor) a lógica do controle
patrimonial para ser seguida pela Anatel e deu à agência um prazo de 210 dias
para apresentar relação que identifique " todos os bens reversíveis do Serviço
Telefônico Fixo Comutado (STFC), ao final do exercício de 2017, sem as falhas
identificados nas Relações de Bens Reversíveis, apresentadas pelas
concessionárias (…), após cotejo com as informações relativas aos bens
reversíveis e do ativo imobilizado das operadoras de telefonia fixa comutável,
obtidas de outras fontes". O acórdão diz o que a Anatel precisa fazer:
"solicitar às prefeituras órgãos públicos federais, concessionárias e
autorizatárias de serviços públicos, prestadoras de serviços, cartórios de
imóveis, para identificar bens imóveis que, em algum momento, tenham composto o
acervo das concessões do STFC"; analise as demonstrações financeiras das
empresas de telecomunicações para identificar a alienação de de bens; promova
uma varredura em todas as Relações de Bens Reversíveis de 2007 para cá (cada
relatório anual tem quase 10 milhões de linhas); busque junto ao BNDES e as
consultorias que ajudaram no processo de privatização as listas de bens
reversíveis; busque em processos em curso na Justiça documentos referentes ao
patrimônio das teles privatizadas (cita especificamente a ação da Proteste);
amplie a capacidade de fiscalização relacionadas a bens reversíveis; inclua
outros bens que julgue reversíveis entre outras determinações que demandarão um
esforço concentrado da agência.
Problema de fundo
Mas o mais impactante do voto não é nem a parte das determinações, mas sim a
fundamentação do ministro relator, Walton Alencar Rodrigues, que diz
explicitamente no início de sua manifestação. Para o ministro, o que está em
discussão não é apenas procedimentos de uma auditoria operacional, mas "o
controle e a gestão do gigantesco patrimônio público federal, atualmente
estimado em mais de R$ 121.600.000.000,00 (cento e vinte e um bilhões e
seiscentos milhões de reais), transferido às concessionárias, a partir do ano de
1998, e por elas livremente utilizado na prestação do serviço público de
telefonia". Mais adiante o ministro volta a afirmar que este patrimônio público
passou a ser gerido pelas concessionárias com a privatização. "A Anatel
descumpriu praticamente a íntegra de suas obrigações legais e contratuais, no
que se refere ao controle dos bens reversíveis do STFC, desconsiderando o
patrimônio público de R$ 121,6 bilhões de reais, gerido pelas concessionárias",
numa clara visão de posse temporária.
Ainda não está claro se a Anatel vai recorrer ou acatar a determinação. Análises
ainda estão sendo feitas, ainda que a agência informe não ter sido notificada.
Existem precedentes jurídicos de órgãos do Executivo questionando determinações
do Tribunal de Contas da União na Justiça, mas em aspectos pontuais que
envolviam direitos de terceiros. Outra possibilidade é que as operadoras de
telefonia fixa entrem na Justiça, já que o entendimento do TCU traz implicações
sérias para elas, mas como elas não são parte do processo no TCU, isso só poderá
ser feito quando a Anatel aplicar conceitos e premissas das quais as
concessionárias discordem. Fato é que a manifestação do Tribunal de Contas é já
em último estágio de recurso, não cabendo nenhuma outra medida, segundo
especialistas em processos semelhantes no TCU ouvidos por este noticiário. A
Anatel recorria do acórdão de uma auditoria realizada em 2015 e já em fase de
embargos de declaração.
Próximos passos
Existe ainda perplexidade sobre as possíveis implicações do acórdão do TCU e
impasse sobre o que será feito, mas é certo que os técnicos da agência terão
grande dificuldade de compatibilizar a decisão do Tribunal de Contas da União,
sobretudo em relação à premissa de que o patrimônio das concessionárias é
público e não privado, e também a visão patrimonialista dos bens reversíveis,
com uma metodologia de cálculo para a conversão das concessões em autorizações
que venha a ser aceita pelas concessionárias e que resulte, efetivamente, em
valores que possam ser aplicados em banda larga. Basta lembrar que é
prerrogativa das concessionárias solicitar a migração e aceitar os termos
colocados pela Anatel (e que precisarão necessariamente ser validados pelo TCU).
Caso não haja migração, permanecem as obrigações do STFC impostas às atuais
concessionárias. Pelo PLC 79, elas poderão inclusive ter sua concessão
prorrogada para além de 2025, o que estenderia o prazo das concessões por pelo
menos 20 anos, sem que se materialize nenhum dos benefícios sobre os quais as
argumentações em favor do PLC 79 foram construídas.
Outra possibilidade é que as concessionárias decidam, diante da ausência de
sustentabilidade do STFC já constatada por elas e informada à Anatel e à
Justiça, devolver as concessões à União, e nesse caso há duas consequências: de
um lado, o Estado precisará manter os serviços em operação (a própria Anatel,
endossada pelo Ministério da Economia, calcula em R$ 43 bilhões o custo
operacional de manter o STFC hoje); de outro lado, será aberta uma tremenda
batalha jurídica entre as operadoras e a Anatel, com a agência, de um lado,
cobrando a transferência dos bens reversíveis para a União dentro da visão do
TCU (ou seja, patrimônio público e calculado pelo seu valor patrimonial) e, de
outro, as operadoras questionando esta visão sobre os bens, alegando ser
patrimônio privado e calculado com base em seu valor funcional. E ainda
questionando junto à Anatel os vários elementos que, ao longo dos anos,
alegadamente, desequilibraram a concessão em desfavor das empresas, como a troca
nos indicadores de reajuste, demora na homologação de tarifas, inclusão de
obrigações não relacionadas à concessão (como as metas de backhaul ou
atendimento a escolas com banda larga) etc. Ou seja, um cenário de conflito que
por si só inviabilizará o PLC 79/2016 no seu aspecto mais comemorado quando de
sua aprovação: a possibilidade de um pacto setorial para investimentos em banda
larga, inclusive com a previsão de um projeto de lei específico orquestrado
entre governo e oposição justamente para este fim.
Senado ou TCU?
A decisão do Tribunal de Contas da União (um órgão auxiliar do Congresso e com
ministros indicados pelos parlamentares) foi tomada horas antes da decisão
unânime do Plenário do Senado Federal sobre no novo modelo de telecomunicações,
na última quarta, dia 11 (com a abstenção da Rede). A sessão do TCU aconteceu às
14:30, três horas depois que a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicações e
Inovação do Senado (CCT) havia aprovado o parecer da senadora Daniella Ribeiro
(PP/PB), apresentado na semana anterior, depois de uma análise de sete meses,
com interlocuções inclusive com técnicos do TCU, segundo apurou este noticiário.
Sobre o PLC 79, o voto do ministro Walton Rodrigues diz: "Caso a migração do
modelo se confirme, serão cotejados os valores dos bens reversíveis que serão
incorporados pelas hoje concessionárias, futuras autorizatárias, com os dos
investimentos realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade
do serviço concedido, não integralmente custeados por meio das tarifas cobradas
dos usuários, nem por recursos correspondentes a alienações, desvinculações e
onerações de bens reversíveis, os quais se mostrem essenciais à continuidade da
prestação do serviço e não estejam inteiramente exauridos. Para o acerto final
de contas, imprescindível saber quais são, onde estão e quanto valem os bens
reversíveis, para evitar incorporação de bens sem a devida compensação, na forma
de ressarcimento/reversão/investimentos".
Já o ministro Benjamin Zymler escreveu em seu voto: "No presente momento,
destaco que, caso o Projeto de Lei em tela (PLC 79) seja aprovado na forma em
que se encontra, haverá a transferência dos bens reversíveis para o patrimônio
das empresas, as quais, em contrapartida, deverão realizar investimentos no
valor correspondente ao dos referidos bens. Diante disso, cabe indagar como será
calculado esse valor, uma vez que a agência não possui dados confiáveis". Ou
seja, os ministros do TCU indicam que a decisão do Senado pode ter sido
atropelada porque a Anatel não teria condições de fazer as contas dentro das
premissas colocadas pelo Tribunal de Contas da União, o que coloca toda a
pressão agora sobre a agência. É improvável que os técnicos da agência
descumpram o Acórdão do Tribunal de Contas. Segundo apurou este noticiário, a
Anatel prepara uma nova relação de bens reversíveis mais adequada aos parâmetros
do TCU para ser apresentada até o final do ano. Mas é certo que haverá uma
divergência fundamental com as empresas no momento em que se for calcular o
valor desses bens dentro das premissas do TCU.
Ressalte-se que houve requerimentos para que o PLC 79 tramitasse também na
Comissão de Assuntos Econômicos, como os realizados pelo senador Jean Paul
Prates (PT/SE) e pelos conselheiros do Conselho de Comunicação Social, Fábio
Andrade e Maria José Braga, onde as questões econômicas poderiam ter sido
discutidas, além de parecer do consultor legislativo Marcus Martins alertando
para problemas semelhantes aos indicados pelo TCU.
Entendimentos diferentes
O PLC 79 tem, na questão dos bens reversíveis, uma leitura diferente da que foi
manifestada pelo TCU em suas manifestações. Diz o projeto do novo modelo
aprovado pelo Congresso (ainda aguardando a sanção): "serão considerados bens
reversíveis, se houver, os ativos essenciais e efetivamente empregados na
prestação do serviço concedido. (…) Os bens reversíveis utilizados para a
prestação de outros serviços de telecomunicações explorados em regime privado
serão valorados na proporção de seu uso para o serviço concedido". O que o PLC
79 fez foi justamente deixar claro que a conta deveria ser feita em cima daquilo
que efetivamente for relevante para a continuidade dos serviços de telefonia
fixa, dentro de uma visão claramente funcionalista.
Já o TCU construiu todos os seus acórdãos partindo da definição do contrato de
concessão, a saber: "Cláusula 22.1 Integram o acervo da presente concessão,
sendo a ela vinculados, todos os bens pertencentes ao patrimônio da
Concessionária, bem como sua controladora, controlada, coligada ou de terceiros,
e que sejam indispensáveis à prestação do serviço ora concedido, especialmente
aqueles qualificados como tal no Anexo 1 (Qualificação dos Bens Reversíveis da
Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Local)".
Quais as consequências? Mais uma vez, o voto do relator Walton Rodrigues dá uma
pista do caminho que a Anatel terá que seguir para obedecer o entendimento do
órgão de controle: "a linha de entendimento ora adotada não constitui óbice à
alienação de bens que se tenham tornado absolutamente prescindíveis à prestação
do serviço concedido. Tais bens podem ser alienados, desde que a venda seja
precedida de avaliação adequada do preço de mercado e da expressa anuência da
Anatel. O valor correspondente deve ser, necessariamente, utilizado na aquisição
de outros bens reversíveis que se incorporem ao acervo da concessão".