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[08/07/13]  Os grampos no Brasil e a perplexidade do governo - por Mariana Mazza

Não há mais como tapar o sol com a peneira. Depois das matérias publicadas pelo jornal O Globo no domingo e nesta segunda-feira, o governo resolveu admitir em público o que já sabia há anos: sim, estamos sendo espionados. As autoridades se arrepiaram. Foram à imprensa, disseram estar indignadas com as revelações estampadas no jornal, fizeram reuniões emergenciais. Todo esse estardalhaço para uma informação que já estava límpida desde as primeiras denúncias do ex-agente da NSA (a agência americana de segurança) Edward Snowden. O Brasil achou mesmo que estava fora dessa confusão quando os documentos começaram a surgir no britânico The Guardian? Será mesmo que o assunto só atraiu a atenção do governo brasileiro depois da denúncia de um jornal brasileiro, como sugeriu o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, em sua primeira entrevista sobre o caso? É difícil acreditar.

É possível dizer que o Palácio do Planalto estava plenamente consciente dos riscos que a Internet traz hoje nas questões de segurança nacional. O tema foi o cerne para a criação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) sob a tutela pública, por meio da revitalizada Telebrás. Como bem lembrou hoje o portal Convergência Digital, o antigo tutor do projeto Rogério Santanna demitido da presidência da Telebrás no governo Dilma Rousseff sempre frisou a necessidade de o governo brasileiro se defender dos grampos, criando um sistema menos dependente das redes das empresas privadas de telecomunicações. Cientes ou não das invasões, as empresas de telefonia brasileiras já deram provas ao longo dos anos que são bastante vulneráveis a estes ataques. Até mesmo o governo federal já foi alvo de arapongagem. Quem não se lembra do Caso Kroll? Chegamos até a ter uma CPI dos Grampos. Se o governo não conseguiu proteger suas próprias conversas telefônicas da espionagem de empresas de telecomunicações sediadas no Brasil, seria ingenuidade achar que estamos blindados contra a bisbilhotagem internacional.

Pois bem, o PNBL foi gestado nos últimos meses do governo Lula sob a batuta de Dilma Rousseff, que chefiava a Casa Civil à época. Não dá para dizer então que a presidente Dilma não sabia dos riscos que existem na rede. Posso crer que a presidente tenha confiado no ministro Paulo Bernardo para monitorar a questão. Bernardo também estava bem informado sobre a possibilidade de invasões internacionais desde 2008, quando o PNBL começou a ser desenhado. Na ocasião, ele era ministro do Planejamento, órgão que teve papel crucial no projeto já que Rogério Santanna era secretario de Logística e Tecnologia da Informação na mesma pasta. Ou seja, Bernardo era chefe de Santanna, que há anos alertava sobre a fragilidade do Brasil nesta área.

Existem vários aspectos técnicos que podem ter facilitado a interceptação das informações no Brasil. Muitos equipamentos de rede usados por empresas brasileiras são fornecidos por empresas norte-americanas e possuem sistemas de back door, que permitem o acesso a qualquer momento de dados pelo governo. Esses sistemas são criados por força de uma lei norte-americana, que exige das empresas locais a facilitação ao acesso de informações por questões de segurança. Se esses dispositivos estão sendo usados para a espionagem da NSA, estaríamos falando de uma coleta de dados bem mais abrangente do que o governo suspeita, chegando a possibilidade de acessar conversas telefônicas e informações pessoais dos cidadãos brasileiros. Também é possível que o grampo tenha sido feito nos cabos submarinos usados pelas companhias para as comunicações internacionais, como suspeita o ministro Paulo Bernardo.

O governo norte-americano respondeu protocolarmente ao Brasil após as denúncias, usando a mesma explicação apresentada para outros países vitimados pela rede de monitoramento. Basicamente, os EUA insistem que fazem o que todo mundo faz, ao recolher informações dos cidadãos.

Esse mantra entoado pelo governo norte-americano me fez lembrar de um caso que denunciei em 2008. Na época, a Anatel havia encaminhado um ofício para as empresas de telecomunicações exigindo a abertura completa dos dados de faturamento das companhias em tempo real para os fiscais da agência. A ideia era dinamizar a fiscalização das operadoras. O problema é que os dados de faturamento são sigilosos por conterem informações sobre hora, destinatário e duração das chamadas feitas pelos clientes. Com isso em mãos, a Anatel poderia facilmente arapongar os cidadãos, bisbilhotando quem anda falando com quem. Após a denúncia, a Anatel anulou a ordem, mas dois anos depois a agência ainda insistia na criação de um Centro Nacional de Sensoriamento Remoto (CNSR). O centro nunca saiu do papel, mas em 2010 a Anatel incluiu nos contratos das teles a obrigação de fornecer qualquer dado para fim de fiscalização, mesmo os protegidos por sigilo. Sendo assim, estamos mais do que familiarizados com esse tipo de coleta de informação, seja para fins de segurança nacional, como argumenta os EUA, seja para facilitar a fiscalização das empresas, como defende a Anatel.

Para além das polêmicas técnicas e argumentos para chancelar a quebra da privacidade dos cidadãos, uma das coisas que mais me preocupa neste episódio é o oportunismo de algumas autoridades para, no olho do furacão, fazer prevalecer suas teses. Um caso clássico é a insistência com que o ministro Paulo Bernardo tem reclamado que o controle da Internet tem sido feito hoje por uma empresa na Califórnia. Que empresa é essa? Bom, pelo contexto das declarações, o alvo de Bernardo parece ser a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). Esta corporação fruto de uma parceria público-privada tem como única função coordenar a distribuição dos endereços IP na rede. Como bem define um grande conhecedor desse setor, ela é a lista telefônica da Internet.

Mirar na ICANN é um desperdício de tempo e energia. Mas, por trás do levante de Bernardo contra a lista telefônica se esconde outros interesses. O mais grave deles é arranjar um álibi para transformar a União Internacional de Telecomunicações (UIT) órgão da ONU responsável por harmonizar as regras do setor entre os países em uma grande agência reguladora da Internet no mundo. A UIT virar a Anatel da Internet não soa muito bem para quem acompanha os debates sobre o uso da rede e acesso à informação.

De toda essa tempestade, apenas uma boa notícia parece ter emergido até agora. A presidente Dilma Rousseff pediu para que o Congresso Nacional apresse a votação do Marco Civil da Internet. Essa nova lei pode não resolver as fragilidades da nossa rede no tema arapongagem, mas instituirá princípios importantes para garantir a liberdade de comunicação na web. Não custa lembrar que a votação do Marco Civil foi embarreirada no ano passado por ação do próprio governo, encabeçado pelo ministro Paulo Bernardo. Tudo porque o governo queria que a Anatel tivesse plenos poderes para gerir a Internet no Brasil. Talvez o episódio com a NSA tenha dado uma lição para as autoridades locais: governança de Internet, se for feita, é algo para os poderes eleitos e não para uma autarquia ser responsável. O que está em jogo não é somente o direito dos cidadãos de se comunicarem. É a própria segurança do país.