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Leia na Fonte: Link / Estadão
[01/11/13]  Marco Civil: ‘Há pontos de retrocesso’ - por Murilo Roncolato [Entrevista com Renato Ópice Blum]

Entrevista com o advogado Renato Ópice Blum, especialista em direitos eletrônicos e membro de comissão de crimes da OAB-SP

SÃO PAULO – O projeto de lei nº 2126/2011, o chamado Marco Civil da Internet, foi adiado nesta terça-feira, 29, pela primeira vez após o Executivo ter colocado sua tramitação sob regime de urgência (embora no total, o projeto já tenha sido formalmente adiado cinco vezes). O prazo, na última segunda, 28, estourou, o que fez com que o adiamento da votação trancasse a pauta da Câmara. Isso significa que enquanto não for votado, não se vota mais nada. O texto recebe sugestões de mudanças há quatros anos, sendo entre 2009 e 2011 pela sociedade civil interessada através de consultas públicas; e nos dois últimos anos, por parlamentares.

Nesta reta final, mais alterações estão previstas e ambos os lados sabem que a briga será das grandes. Até lá, publicaremos no site do Link entrevistas com pessoas influentes sobre o assunto e envolvidos diretamente nas discussões. Na segunda entrevista da série, conversamos com Renato Ópice Blum, advogado especialista em Direito digital, e vice-presidente da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes de Alta Tecnologia da OAB-SP, que se opõe a uma série de trechos do texto atual.

Confira a entrevista:

Por que essa dificuldade em se votar o Marco Civil? O senhor discorda exatamente de quais pontos do texto?

Existe hoje uma dificuldade em se legislar sobre proteção de dados e demais temas. Retrato disso é o Marco Civil, que tem algumas intervenções importantes, mas outras como a questão da faculdade da guarda dos IPs e de responsabilidade de conteúdo pelos provedores de aplicações [empresas como Google e Facebook], entre outras coisas, que eu acho que representam mais um retrocesso do que uma evolução.
Renato Ópice Blum. FOTO: Divulgação

Veja, uma das soluções da presidente à espionagem era obrigar os serviços de aplicação a colocar informações de conteúdo e acesso no Brasil. Aí vem uma dúvida: que tipo de informação? De tráfego, cadastro e acesso? Isso tem que ser discutido. Nesse sentido, deveria-se corrigir a falha da redação do artigo 13, que faculta a guarda dos IPs aos serviços de aplicação. Quando se faculta, permite-se a ocorrência de crimes sem punição, porque não há como investigar quem postar conteúdo ilegal – e o provedor pode dizer que não tem o registro porque não era obrigado a armazená-lo –; se a vítima não tiver o IP do dono do conteúdo original não há como responsabilizar o criminoso.

O senhor acha que o tratamento dado ao provedor de conexão tinha que ser o mesmo dado ao de aplicação?

O provedor de conexão [empresas como Telefonica e Oi] está obrigado a guardar os registros por um ano, mas no artigo 11º diz que a guarda tem que ser feita em ambiente controlado e de segurança, e que os dados só podem ser fornecidos por ordem judicial. As informações são de ordem cadastral (IP, horário e data do acesso) e não de conteúdo. A Polícia, hoje, em investigações, já recebe esses dados, mesmo sem ordem judicial. O Marco Civil vai obrigar a ordem judicial. Já ao serviço de aplicação a guarda é facultativa. Se o de conexão tem obrigação, não entendo a faculdade. A obrigação se deve à possibilidade de identificar o IP de algum criminoso.

Como se faz isso? Sabendo que ele usou algum serviço, se você não tem tiver o log do serviço de aplicação, você não tem como saber qual é o provedor de conexão. Não adianta ter um e não o outro. Imagine que eu crie um e-mail do Gmail. E mando um e-mail para alguém ameaçando-o de morte. Para saber quem é a pessoa, a vítima vai ao juiz, que manda o Google fornecer os IPs; com os IPs, consulta-se o provedor de conexão que alocou aqueles IPs e, então, vai se saber por ele, através de nova ordem judicial, os dados do cliente. Só se chega ao provedor de conexão passando pelo serviço de aplicação. É incoerente o de conexão guardar e o de aplicação não. Isso causa insegurança jurídica. Há muitas ameaças hoje na internet, a garantia da segurança é possível.

E o artigo 15º, que fala da responsabilidade do provedor de aplicação?

O maior problema do artigo 15º se chama tempo. Porque a internet é muito dinâmica, um conteúdo ilegal pode ser compartilhado muito rapidamente e prejudicar muitas pessoas. O único elemento que tem condição de eliminar um conteúdo ilegal no menor tempo possivel é o provedor de conteúdo. Hoje, no Brasil, na Europa e nos EUA funciona assim: você identifica o conteúdo ilegal, comunica o serviço de aplicação e ele é o único que pode fazer a remoção [o chamado “notice and takedown”]. Ao informar o serviço, ele tem duas possibilidades: remove ou não. Se remover, fica isento de responsabilidade. Se não remover, pode ser corresponsabilizado.

O artigo 15º diz que a punição vem do desrespeito à ordem judicial. Na prática, torna necessário que se vá ao judiciário pedir ordem judicial. Se tiver de ir ao judiciário, por mais rápida que a vítima vá, a ordem do juiz leva horas para ser obtida e outras horas para chegar ao serviço de aplicação. O tempo que se perde pode tornar a ordem judicial inócua. A vítima pode se chatear (ou coisa pior, basta pensar nos jovens que se mataram por sofrer uma humilhação muito grande na internet) ou vai identificar o criminoso e resolver a situação por conta própria. Isso seria regredir. Em fóruns, hoje, já se discute possibilidades de dar mais eficácia a isso, visando dar ainda mais conforto às vítimas. Por outro lado, exigir ordem judicial para tudo pode congestionar o judiciário.

Mas isso dá uma autonomia para o provedor de serviços que recai, como já acontece, em uma prática desregrada de “notice and takedown”. Provedores derrubam blogs e não dão satisfação ao dono do blog, ferindo o princípio do contraditório e da ampla defesa.

O Marco Civil original dizia que o provedor tinha que remover e avisar o autor que foi removido. Isso mudou agora. Estamos falando de conteúdos ilegais. Havendo dúvida o provedor não remove e isso vai pra judiciário normalmente. Nos casos em que não há duvida, o serviço deve remover. O risco da atividade é deles, dos serviços de aplicação. Existem empresas que prestam esses serviços online e ganham por isso. Se há alguém que pode ser responsabilizado por uma atividade dentro de um serviço prestado, a empresa é que é punida.

Eu gostava mais do texto original, porque dava a chance do autor do conteúdo de se defender. A gente está falando de crimes, crimes que está claro que se trata de um crime, o contexto duvidoso dentro disso é mínimo. E tenha certeza, 98% do que acontece na web é legítimo. De mais de 2 mil casos aqui com que já trabalhamos, apenas sobre três havia dúvida sobre o crime. É muito raro, mas se houver dúvida, o provedor de serviço deve manter, se o judiciário depois disser que o provedor não deveria ter mantido e ele terá de pagar indenização, é risco de atividade. Afinal de contas, ela é remunerada, a teoria de risco da empresa é real, na democracia capitalista é assim que funciona.

Sobre derruba deliberada, isso é algo que, por exemplo, o Google não pode fazer. Deve haver comunicação prévia. Se não for assim, a empresa pode ser processada e responsabilizada por derrubar a página em questão. A regra é não retirar, só se retira aquilo sobre o que eles têm prova de que é ilegal – e eles são espertos, só derrubam coisas que têm certeza para não tomar processo. A reclamação da vítima, em si, já tem que dar uma série de evidências para que o provedor de serviço de que se trata de um conteúdo ofensivo ou ilegal.

O senhor defende que o parágrafo 2º do artigo 15º, que exclui a aplicação dele sobre casos de infração de direitos autorais, deveria ser retirado. Por quê?

Se for haver uma interpretação excludente, “para direito autoral vale isso, para outras não” isso pode gerar inconstitucionalidade do artigo. Aliás, se o 15º passar, tenho certeza de que será julgado inconstitucional. Há artigos da Constituição que dizem que a privacidade das pessoas tem de ser preservada, há o princípio da segurança pública e o da igualdade de todos perante a lei. Nesse caso os serviços de aplicações terão atendimento especial, quando se isenta o provedor de responsabilidade gera-se uma contradiz disso. Trata-se, assim, de forma não isonômica quem é ainda o mais responsável pelo assunto. De novo, o único elemento que tem o botão para ligar ou desligar conteúdos postados na web é o serviço de aplicações, ele tem de ser responsabilizado para resolver a ilegalidade. O direito autoral é mais importante que ameaça, pornografia infantil, vazamento de informação sigilosa, pessoas difamadas, etc? Não deveria. Sendo assim, segue-se o princípio da isonomia e aplica-se a mesma regra para tudo. O novo texto dá margem para excepcionalidade e isso não pode.

Levou-se tanto tempo para aprovar o Marco Civil que outras leis, de cunho penal, foram aprovadas antes dele. Sendo aprovado, o Marco Civil demandará alterações nestes textos?

Por enquanto, leis já aprovadas não terão que ser revisadas. Exemplo é a Lei Carolina Dieckman (nº 12.737), mas que foi um desastre, ninguém vai ser condenado por essa lei. No entanto há outros projetos que tratam da guarda de logs que poderão mudar o que for aprovado do texto do Marco Civil. E, sim, isso é possível, já que o Marco Civil é uma lei ordinária, isso significa que ela pode ter seus termos revogados. Isso é democracia.