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Fonte: Estado de S.Paulo
[19/09/13]
A lerdeza estatal e a comunicação - por Eugênio Bucci
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM
O Estado demora. Por definição e antes de qualquer outra providência, demora.
Demora tanto que parece torturar a sociedade, impondo a todos nós um sofrimento
compulsório. A percepção aflitiva de que o Estado inelutavelmente demora, e
demora, e demora mais é fonte da neurose do nosso tempo.
Vamos aos exemplos. O escândalo do mensalão explodiu na opinião pública em 2005,
lá se vão oito anos, e o julgamento se arrasta até hoje, difundindo a
desagradável sensação de que a Justiça, quando tarda, falha. Um magistrado
debruçado sobre os autos (e apenas sobre os autos) talvez argumente que o
processo jurídico tem seu tempo próprio e que, em relação a esse tempo, não há
atrasos. Do outro lado, o cidadão em turbulência, atirado à liquidez total das
bases materiais da vida real, diria que o tempo do processo jurídico se
divorciou do tempo da sociedade – e, em relação a este, demora demais.
O Legislativo demora igualmente. O Marco Civil da Internet vem se arrastando há
anos. Enquanto isso, as conexões da era digital já funcionam massiva e
maciçamente, sem que exista uma lei para regulá-las a contento. A lei tarda – e
falha –, assim como tardam e falham as respostas do Poder Executivo aos
protestos de rua, que já começam a minguar depois de mais de três meses de
intensa atividade. Também aqui é possível ver que o tempo dos manifestantes (que
é o tempo da sociedade) não coincide com o tempo do Estado. Daqui a alguns
meses, quando os protestos voltarem, em alta velocidade, o Estado demorará, de
novo, a saber o que fazer.
O descompasso é brutal: é como se o Estado vivesse em uma era histórica e a
sociedade, em outra. A explicação para esse descolamento desastroso passa pelos
padrões tecnológicos da comunicação social: enquanto a máquina estatal se
organizou segundo o paradigma dos jornais diários, a sociedade move-se, há
décadas, no ritmo das redes digitais interconectadas. Vem daí, da comparação
inevitável entre os dois padrões, a sensação de lerdeza que experimentamos
quando olhamos para a administração pública.
Há duas expressões da Teoria da Comunicação que vêm a calhar: instância da
palavra impressa e instância da imagem ao vivo. O Estado que aí está foi moldado
pela primeira, a instância da palavra impressa, enquanto a vida social se
articula hoje na segunda, a instância da imagem ao vivo, a partir da qual
floresceram a internet, os bancos de dados online e as redes sociais. A
temporalidade da TV ao vivo e da internet é uma só: a instantaneidade e a
ubiquidade na velocidade da luz. Já a instância da palavra impressa é bem mais
lenta: operava, e ainda opera, no tempo cíclico das voltas do planeta em torno
do Sol, com intervalos de 24 horas.
Se é verdade que o Estado emerge da comunicação social – ou, em termos menos
vagos, se é verdade que a instituição do Estado é gerada por meio de sucessivas
abstrações que ganham existência formal a partir das práticas comunicativas
entre cidadãos livres reunidos na esfera pública –, então também é verdade que
foi a comunicação mediada pelos jornais diários que determinou o formato e as
rotinas do Estado.
As evidências desse fato histórico são inúmeras. Uma delas, quase uma
caricatura, é muito fácil de constatar: enquanto a opinião pública e o mercado
seguem os padrões tecnológicos da instância da imagem ao vivo, a bordo do
Twitter e do YouTube, uma decisão administrativa do setor público, em regra, só
pode gerar efeitos depois de aparecer nas páginas do Diário Oficial, que, não
por acaso, é um jornal diário. Pensemos um pouco na figura cadavérica dos
Diários Oficiais. Há dois séculos eram efetivos órgãos de comunicação. Hoje são
cemitérios de palavras, que nada comunicam, servem apenas para protocolos
burocráticos.
Os processos decisórios do Estado são igualmente anacrônicos: seguem trâmites
que passam por taquígrafos, deslocam-se em caixotes de processos, carregados por
mãos humanas de uma repartição para outra. Quanto à formação da opinião e da
vontade de milhões de jovens insatisfeitos, esta se consolida em poucas horas,
ou mesmo em minutos. O divórcio é irreversível.
As manifestações de rua que eclodiram de dois ou três anos para cá em toda parte
do planeta (do mundo árabe à Europa, passando por Chile, Brasil e Estados
Unidos) têm tudo que ver com o desencontro dessas duas temporalidades. Os
protestos são um transbordamento da energia social que não encontrou vazão nos
canais regulares entre Estado e sociedade civil e, estancada, inundou as cidades
do mundo. Vistos por essa ótica, os protestos não são de esquerda ou de direita,
embora possam pender mais para a esquerda ou mais para a direita conforme a
conjuntura de cada país; acima disso, resultam do confronto aberto entre a
velocidade da formação da opinião pública (na instância da imagem ao vivo) e a
lentidão da máquina estatal (presa à instância da palavra impressa), que não
consegue dar respostas rápidas e eficazes. O estranhamento entre as duas
temporalidades contribuiu decisivamente para o acirramento dos protestos. Os
ativistas pacíficos e os desordeiros truculentos sublevaram-se contra um inimigo
só: a letargia administrativa e a opacidade do Estado, que, sendo lento e
impermeável, fica cego, surdo, mudo e paralisado, deixando, na prática, de ser
público.
Diante disso, as mudanças necessárias no Estado não são apenas as reformas
tópicas que modifiquem as fórmulas de representação política ou o financiamento
dos partidos. O momento pede uma reestruturação profunda dos canais de
comunicação entre a máquina pública e a sociedade. Não se trata meramente de
mudar o Estado brasileiro, ou o Estado sírio, ou o grego, um ou outro, mas de
atualizar o próprio conceito do Estado à luz dos novos padrões tecnológicos e
das novas dinâmicas sociais engendradas pelas novas dinâmicas da comunicação
social.