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Fonte: Veja
[28/09/13]
Tiro do governo vai sair pela culatra, prevê idealizador do Marco Civil -
por Renata Honorato (Entrevista: Ronaldo Lemos)
Para advogado, incluir no projeto de lei mecanismo que obrigue empresas como
Google e Facebook a criar data centers no Brasil afugentará companhias e
provocará enxurrada de ações judiciais requerendo acesso a dados pessoais
Diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, o
advogado Ronaldo Lemos, de 37 anos, é um dos idealizadores do Marco Civil da
internet, em gestão desde 2009. O projeto de lei pretende estabelecer regras
para a web brasileira, prevendo direitos e deveres de cidadãos, provedores
acesso e de serviços e também do governo em relação às atividades realizadas na
rede. Às vésperas da votação do projeto na Câmara, contudo, Lemos se insurge
contra uma ideia que o governo tenta, aos 45 minutos do segundo tempo, incluir
no texto. Trata-se da proposta de obrigar empresas como Google e Facebook a
implantar data centers (servidores de grande porte, na prática) em território
nacional para armazenar aqui dados de usuários brasileiros. É uma resposta do
Planalto à suspeita de que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados
Unidos espionou autoridades e empresas locais — incluindo a presidente Dilma
Rousseff e a Petrobras. "Essa localização forçada fará com que as empresas de
internet fujam do Brasil e com que os brasileiros se tornem clandestinos,
cidadãos de segunda classe, nos serviços americanos ou europeus. Os sites terão
receio de oferecer serviços a usuários brasileiros com medo de, no futuro, ter
que montar um data center local", diz Lemos. O advogado prevê ainda que o tiro
do governo sairá pela culatra no tocante à defesa da privacidade: a presença dos
data centers no Brasil vai provocar uma enxurrada de ordens judiciais exigindo
acesso a informações pessoais, além da retirada de conteúdos do ar — com
prejuízo óbvio à liberdade de expressão. "Teremos filas de oficiais de Justiça
com ordens para acessar dados nos data centers. Com as atuais leis brasileiras,
o usuário estaria mais seguro se seus dados estivessem na Europa do que em solo
nacional." Confira a seguir a entrevista que Lemos concedeu a VEJA.com por
telefone, de Londres.
Algum país do mundo exige a hospedagem em data centers locais?
Não. Essa é uma medida que o Brasil está inventando agora.
Qual sua posição sobre a proposta do governo?
Sou contra a obrigatoriedade. Há outras maneiras de trazer esses servidores para
o país.
Quais são as alternativas?
Precisamos aprimorar tecnicamente a rede no Brasil. Em vez de obrigar a
hospedagem, o governo poderia investir na criação de internet exchange points,
os chamados pontos de troca de tráfego (PTT). Eles funcionam como entroncamentos
rodoviários ou ferroviários: quando se tem um monte deles em um país, faz todo
sentido instalar um data center ali. Essa infraestrutura faria com que a
internet brasileira ficasse mais conectada, competitiva e barata e atrairia os
data centers de forma natural.
Em vez de obrigatoriedade, deveria então haver investimento em infraestrutura.
Exatamente. Os data centers são montados em locais onde existem entroncamentos
da rede de internet, porque isso permite que os dados circulem em melhores
condições e que o serviço funcione da melhor maneira possível. As empresas de
internet que mantêm data centers gigantes se pautam pela mesma lógica, para
fazer uma analogia, de uma grande empresa atacadista, que vende produtos para o
Brasil inteiro: faz sentido montar centros de distribuição onde há acesso a
rodovias e ferrovias, mas não num lugar ermo, de onde os seus produtos têm
dificuldade para sair.
Quais problemas a hospedagem forçada pode acarretar?
Essa localização forçada fará com que as empresas de internet fujam do Brasil e
com que os brasileiros se tornem clandestinos, cidadãos de segunda classe, nos
serviços americanos ou europeus. Os sites terão receio de oferecer serviços a
usuários brasileiros com medo de, no futuro, ter que montar um data center
local. Teremos também um terrível problema jurídico. Uma vez que os data centers
das empresas estrangeiras estejam instalados aqui, armazenando informações como
trocas de e-mail, teremos uma fila de oficiais da Justiça com ordens para
acessar os dados.
Por quê?
Porque esse é o espírito da nossa legislação. Tomemos o caso das eleições. A lei
eleitoral brasileira é, do ponto de vista comparativo, muito problemática. Ela
permite que centenas de pedidos de remoção de conteúdo sejam feitos todos os
dias durante as eleições. Isso é péssimo. Você afeta a liberdade de expressão
quando ela é mais importante: durante o debate eleitoral. Se os dados estiverem
armazenados fisicamente no Brasil, a situação ficará ainda mais precária nesse
aspecto em particular. Mas o fato é que a lei brasileira não protege o
ecossistema da internet. O Marco Civil vai contribuir parcialmente para a
proteção dos dados pessoais. Mas não há salvaguarda para os operadores de data
centers. E essa questão jurídica, ao lado da questão técnica, também pesa muito
na decisão de construir um data center. Ninguém quer se arriscar onde as leis
não são boas e não colaboram com a inovação.
Um dos argumentos do governo para justificar a obrigatoriedade dos data centers
é que isso impediria que dados de cidadãos brasileiros fossem alvo de
espionagem. Esse argumento procede? Especialistas afirmam que, do ponto de vista
técnico, manter informações de usuários em data centers locais não impede a
espionagem, já que a eventual interceptação é feita enquanto os dados trafegam
na rede. Mas não é só isso.
Com as atuais leis brasileiras, o usuário estaria mais seguro se seus dados
estivessem na Europa do que em solo nacional. Isso porque a lei europeia é muito
mais severa em relação à privacidade do que a lei brasileira. Lá, a quebra de
sigilo de um e-mail é uma tarefa muito difícil. Se a preocupação do governo é
com a privacidade dos cidadãos, deveria se voltar para o aprimoramento da lei
brasileira, que ainda tem de mudar muito.
Outro argumento do governo é que é difícil ter acesso aos dados de usuários
brasileiros armazenados no exterior por empresas estrangeiras, quando o acesso a
esses dados se faz necessário e está amparado na lei. Nesses casos, os juízes
brasileiros têm recorrido à Justiça americana através do Tratado de Cooperação
entre Brasil e Estados Unidos (MLAT). Esses acordos internacionais são eficazes?
De fato, há situações em que o acesso às informações de usuários é legítimo.
Nesses casos, o armazenamento local de dados de fato torna as coisas mais
rápidas. Mas a preocupação do governo poderia ser resolvida com uma melhoria no
MLAT. Por que o Brasil não cria um novo diálogo para aperfeiçoar o tratado em
solicitações digitais? O governo poderia, por exemplo, sugerir um canal
expresso, que em direito chamamos de fast track, para a obtenção dessas
informações rapidamente.
Então melhorar o MLAT seria uma alternativa mais acertada?
O tratado internacional é o melhor caminho para resolver esse impasse. Algumas
vezes, a Justiça brasileira pede informações, mas a lei americana proíbe que a
sede da empresa de internet envie os dados. Cria-se, dessa forma, um paradoxo
legal, pois se você atende a lei do Brasil, viola a lei dos Estados Unidos, e
vice-versa. Já aconteceram situações inversas, nas quais empresas americanas
pediram informações bancárias de cidadãos americanos com conta no Brasil, e a
Justiça brasileira negou o acesso aos dados. Trata-se de um caminho de mão dupla
e o governo tem de entender isso.
O relator do projeto do Marco Civil, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), afirma
que obrigar as empresas de internet a manter data centers no Brasil é uma forma
de atingi-las financeiramente e, por tabela, os Estados Unidos, em resposta ao
episódio de espionagem. O que o senhor acha disso?
A ideia da sanção financeira é péssima. Da mesma forma que os Estados Unidos
ganham dinheiro com o Brasil, o Brasil ganha dinheiro com os Estados Unidos.
Essa queda-de-braço retórica pode ter um custo econômico muito grande para o
país. É muito melhor resolver essa questão da tutela de dados do ponto de vista
de um tratado internacional negociado do que resolver o problema no grito.
Imagine uma regra de retaliação em que as empresas brasileiras que tenham dados
de estrangeiros sejam obrigadas a localizar data centers em outros países. Isso
causaria um problema sério para o Brasil e as empresas nacionais.
O senhor acha que o Marco Civil é uma boa resposta do Brasil aos recentes casos
de espionagem da NSA?
O Marco Civil é a melhor resposta inicial que o governo pode dar para a
espionagem. Ele estabelece um posicionamento político do governo brasileiro
pró-privacidade, pró-neutralidade, pró-usuário, pró-defesa da rede. Essa é uma
bandeira imediata que o governo conquista ao aprovar o Marco Civil. Para
continuar respondendo à NSA, o governo teria de tomar outras medidas, como
construir conexões de internet diretas entre o Brasil e outros países da América
Latina sem que essas conexões passem pelos Estados Unidos. Construindo pontos de
troca de tráfego regionais com outros países do BRIC, o Brasil se protegeria da
mira americana. Atualmente, o Brasil depende muito da infraestrutura dos Estados
Unidos. Grande parte do nosso tráfego de internet passa por Miami. Enquanto
existir essa dependência, o Brasil continuará sujeito à espionagem. A melhor
resposta do país aos recentes escândalos é técnica. O país precisa reforçar a
sua autonomia na rede, mas sem soluções fantasiosas como a dos data centers,
cuja implantação é consequência da existência de uma infraestrutura robusta.
Caso contrário, o tiro vai sair pela culatra.
Por que uma legislação que disciplina a internet é importante para o Brasil?
O país está atrasado em relação a outras nações. Os Estados Unidos regularam
questões que estão no Marco Civil em 1998. Esse alicerce legal permitiu que o
mercado de inovação americano conquistasse a liderança global, com empresas como
Google e Facebook. O objetivo do Marco Civil é garantir segurança jurídica aos
brasileiros, já que hoje ela não existe, e criar um alicerce legal que permita
ao país se tornar mais competitivo no mercado de inovação. Ele assegura também
direitos aos usuários. O país sofre com uma grande incerteza jurídica, já que
muitos direitos fundamentais não estão sendo protegidos na internet. Há muitas
dúvidas sobre como são guardados os dados dos usuários, quais são os limites a
serem respeitados, quando um juiz pode ou não solicitar acesso a essas
informações. Nada nesse sentido foi regulado no Brasil e isso abre caminho para
abusos.
O Marco Civil é uma espécie de carta de princípios. Não seria mais correto
incluir a tutela de dados no projeto de lei de Proteção dos Dados Pessoais, que
circula pelo Ministério da Justiça e na Casa Civil?
O Marco Civil trata de princípios, mas também de questões normativas. A Lei de
Dados Pessoais virá para complementá-lo. São duas legislações fundamentais. Se
no Marco Civil estamos atrasados 15 anos, na Lei de Proteção de Dados Pessoais o
atraso chega a 30 anos. Essas leis já existem em outros países, inclusive na
América Latina, como Argentina, Chile e Colômbia.
O que mudará na vida das pessoas após a aprovação do projeto?
Muitas coisas vão mudar. A neutralidade de rede, que impede que a internet se
transforme em uma TV a cabo, com pacotes personalizados com base no acesso do
usuário, permitirá que o mercado seja mais competitivo. As pessoas ganharão
novos serviços de vídeo e música sob demanda e terão acesso a diferentes
conteúdos on-line, como vídeos 3D e games. O direito à privacidade também ficará
protegido e os usuários se sentirão menos vulneráveis a monitoramentos privados
ou públicos. O Marco garante ainda o acesso a dados governamentais abertos e
trata a internet como um direito essencial no exercício da cidadania. Muitas
pessoas perguntam por que no Brasil não existem redes Wi-Fi abertas, como nos
Estados Unidos. A resposta é simples: se alguém abrir a sua rede e uma pessoa
utilizá-la de forma incorreta, o responsável pelo delito será o dono do hotspot.
Os Estados Unidos, ao contrário, responsabilizam o criminoso. O Marco acaba com
isso e, consequentemente, com a censura prévia, já que os sites não serão mais
responsáveis por conteúdos de terceiros.
[Quadro no final do artigo na página da Veja]
Sobre a obrigatoriedade de data centers no Brasil
Leio a seguir o texto que o governo enviou à Comissão do Marco Civil na Câmara
“Art. 10-A. O armazenamento dos dados de pessoas físicas ou jurídicas
brasileiras por parte dos provedores de aplicações de Internet que exercem essa
atividade de forma organizada, profissional e com finalidades econômicas no país
deve ocorrer no território nacional, ressalvados os casos previstos na
regulamentação.
§1º Incluem-se na hipótese do caput os registros de acesso a aplicações de
Internet, assim como o conteúdo de comunicações em que pelo menos um dos
partícipes esteja em território brasileiro. ”