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Fonte: Leia na Fonte: Observatório da Imprensa - Origem: Observatório do Direito
à Comunicação
[01/04/14]
Dia histórico para a liberdade de expressão - por Pedro Ekman e Bia Barbosa
Pedro Ekman e Bia Barbosa são integrantes da Coordenação Executiva do
Intervozes
Guardem o dia 25 de março de 2014 na memória. Este dia será lembrado como o dia
do Marco Civil da Internet em todo o mundo. Neste dia, a Câmara dos Deputados
aprovou um projeto de lei que tem todas as características de um projeto
impossível de ser aprovado numa Casa como essa. A principal delas: o fato de
contrariar interesses econômicos poderosos ao garantir direitos dos cidadãos e
cidadãs. O Marco Civil da Internet aprovado aponta claramente para o tratamento
da comunicação como um direito fundamental e não apenas como um negócio
comercial. Trata-se de algo inédito na história brasileira, que só foi possível
por um conjunto de fatores.
Em primeiro lugar, a intensa participação e mobilizações de organizações da
sociedade civil e ativistas da liberdade na internet, que estiveram envolvidos
com o Marco Civil desde sua primeira redação até a vitória obtida nesta
terça-feira na Câmara. O fato de ser um texto elaborado com ampla participação
popular garantiu ao Marco Civil uma legitimidade conferida a poucas matérias que
tramitam pelo Congresso Nacional.
Em segundo lugar, o relatório substitutivo do texto ficou a cargo do deputado
Alessandro Molon (PT/RJ), que se mostrou um persistente articulador e
negociador, ouvindo os mais diferentes interesses em jogo e buscando acomodá-los
sem comprometer os três pilares centrais do texto: a neutralidade de rede, a
liberdade de expressão e a privacidade dos usuários.
Em terceiro, o governo, que já se mostrava adepto do Marco Civil, comprou a
briga em sua defesa após as denúncias de espionagem da Presidenta Dilma feitas
por Eduard Snowden. Sem isso, talvez o Marco Civil da internet não tivesse sido
colocado em urgência constitucional na Câmara, e poderia estar ainda na longa
fila de projetos estratégicos para o país à espera de entrada na pauta do
plenário.
Mesmo assim, há duas semanas, ninguém – nem o governo, nem o relator, nem a
sociedade civil – seria capaz de prever uma votação como a deste dia 25 de
março, feita simbolicamente, porque apenas um partido, o PPS de Roberto Freire,
orientou voto contrário.
De lá pra cá, muitos se perguntam, o que precisou acontecer para o jogo virar a
favor dos direitos dos internautas? Em primeiro lugar, o governo conseguiu
reacomodar a maior parcela insatisfeita de sua base. Dilma fez uma reforma
ministerial, distribuiu cargos em autarquias, liberou emendas no Congresso.
Trazendo a base de volta, ficaram “do lado de lá” o PMDB e os partidos de
oposição de direita. Mas DEM e PSDB se mostraram inteligentes nesta jogada, e se
distanciaram de Eduardo Cunha, líder do PMDB e general do exército contra o
Marco Civil. Em sua briga contra o governo por poder no Congresso, Cunha,
apelidado pela revista IstoÉ de “sabotador da República”, esticou demais a corda
– e saiu queimado. Nem a direita clássica quis abraçá-lo na reta final.
Os sinais de derrota começaram a se avizinhar e ficou mais fácil para o governo
comprar o passe do PMDB. A conta ninguém conhece ao certo, mas certamente
envolve acordos em torno da MP 627/2013, sobre tributação do lucro de empresas
brasileiras no exterior, da qual Cunha é relator. Em paralelo, o governo abriu
mão da obrigatoriedade da manutenção de data-centers no Brasil – o que fez bem –
e incluiu uma consulta à Anatel e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)
na regulamentação das exceções à neutralidade de rede.
Neste contexto, a permanente pressão da sociedade civil nas redes, em defesa da
aprovação do texto, surtiu efeito pra lá de positivo. Cerca de 350 mil pessoas
assinaram a petição online puxada por Gilberto Gil; tuitaços com as hashtags #VaiTerMarcoCivil
e #EuQueroMarcoCivil atingiram os trend topics brasileiro e mundial por semanas
seguidas; artistas e o fundador da Web Tim Berners-Lee declararam apoio ao
texto; e defensores da liberdade de expressão marcaram presença nos corredores
da Câmara por semanas a fio. Nesta terça, o clima de “aprovou” era tal que o
presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves, chegou a anunciar, em tom de
brincadeira com os ativistas, uma cerveja de celebração para o fim da noite.
Que partido então escolheria não sair bem na foto e perder a oportunidade de
dizer que votou em favor de uma lei tão importante para o povo brasileiro?
Os avanços do Marco Civil
O ineditismo do Marco Civil da Internet está também em ser uma das raras
legislações do mundo no campo da internet que cria mecanismos de proteção do
usuário, e não o contrário. Será uma lei que servirá de modelo para todas as
democracias que buscam reforçar a liberdade nas redes e os direitos humanos.
Entre tantas garantias importantes trazidas pelo texto, as mais significativas
talvez estejam expressas nos artigos 9, 19 e 7 do projeto.
O artigo 9, visto como o coração do projeto, protege a neutralidade de rede. Ou
seja, o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados, sem distinção por
conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Isso significa que
quem controla a infraestrutura da rede tem que ser neutro em relação aos
conteúdos que passam em seus cabos. Isso impede, por exemplo, que acordos
econômicos entre corporações definam quais conteúdos têm prioridade em relação a
outros. A medida é a alma da manutenção da internet como um ambiente em que
todos se equivalem independentemente de seu poder econômico. Afinal, ninguém –
nem mesmo empresas como a Globo – quer que a operadora do cabo decida sozinha
que conteúdos terão forte presença e quais ficarão escondidos na rede. Isso
levaria a uma “concentração de conteúdo”, semelhante à que existe no mercado de
TV, também na internet. Só que a Globo não seria a monopolista da vez.
Já o artigo 19 delega ao sistema judicial a decisão da retirada de conteúdos na
internet, debelando boa parte da censura privada automática, preventiva,
existente hoje na rede. Atualmente, inúmeros provedores de conteúdo, a partir de
simples notificações, derrubam textos, imagens, vídeos etc de páginas que
hospedam. Ao desresponsabilizar os provedores por conteúdos postados por
terceiros, o Marco Civil da Internet cria uma segurança jurídica ao provedor e
deixa o caminho aberto para a livre expressão do usuário. Afinal, ao contrário
do que muitos pensam, não é a ausência de regras que torna a internet um
ambiente livre, mas sim a existência de normas que defendam a livre manifestação
de ataques arbitrários e autoritários.
Por fim, o artigo 7 assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e
o sigilo do fluxo e das comunicações privadas armazenadas na rede. Isso fará com
que as empresas desenvolvam mecanismos para permitir, por exemplo, que o que
escrevemos nos e-mails só será lido por nós e pelo destinatário da mensagem.
Assim, uma vantagem privativa das cartas de papel começa a ser estendida para os
correios eletrônicos. O mesmo artigo assegura o não fornecimento a terceiros de
nossos dados pessoais, registros de conexão e de aplicação sem o nosso
consentimento, colocando na ilegalidade a cooperação das empresas de internet
com departamentos de espionagem de Estado como a NSA.
Essas e outras medidas de proteção da privacidade são fragilizadas pelo único
problema significativo de todo o Marco Civil: o artigo 15, que compromete
seriamente nossa privacidade ao obrigar que empresas guardem por seis meses,
para fins de investigação, todos os dados de aplicação (frutos da navegação) que
gerarmos na rede. Isso inverte o princípio constitucional da presunção de
inocência ao aplicar um tipo de grampo em todos os internautas. A obrigação da
guarda de dados também gera a necessidade de manutenção de todos esses dados em
condições de segurança, sobrecarregando sites e provedores de encargos
econômicos. O alto custo poderá levar à comercialização desses dados, criando
uma corrida pelo uso da privacidade como mercadoria.
Infelizmente, as movimentações que destravaram o processo de votação do texto na
Câmara não foram capazes de desconstruir tal imposição feita pelas instituições
policiais ao projeto. Organizações da sociedade civil que se posicionaram contra
este aspecto do texto buscarão sua alteração no Senado ou, se necessário,
através do veto presidencial. Afinal, se Dilma Rousseff foi às Nações Unidas
exigir soberania e privacidade para suas comunicações, não pode repetir uma
brecha deste tamanho para a vigilância dos internautas brasileiros.
Por fim, os lobbies econômicos e pressões políticas que se movimentaram na
Câmara não estão mortos. Apesar da declaração do presidente do Senado, Renan
Calheiros, de que o Marco Civil será votado com rapidez na Casa revisora, nada
garante que o jogo será fácil. Há uma longa jornada pela frente até a sanção
presidencial. E, depois de sancionada a lei, caberá à sociedade civil defender
os direitos dos internautas nos termos de regulamentação do Marco Civil, assim
como em sua implementação. Não à toa, a entidade representativa das operadoras
de telecomunicações já se pronunciou publicamente, afirmando que o Marco Civil
“assegura a oferta de serviços diferenciados”. É a disputa pela interpretação do
texto entrando em campo.
Democracia não é um sistema em que as coisas se resolvem facilmente. A batalha
ganha em 25 de março não resolve toda a questão, mas cria condições para a
construção de um caminho no qual finalmente podemos seguir livres. E isso não é
pouca coisa.