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Fonte: IDG Now! - Blog Digitalis
[01/04/14]
Marco Civil Flex? - por Patricia Peck Pinheiro
Patricia Peck Pinheiro é advogada especialista em cultura digital e inovação,
autora de 14 livros sobre “Direito Digital”
Finalmente, o Marco Civil é aprovado na Câmara! Mas o que isso impacta nas
nossas vidas?
Bem, se você é daqueles que não vive sem internet, que usa serviços na nuvem,
que gosta de expressar sua opinião, participa de redes sociais, contrata banda
larga e está preocupado com a sua privacidade, então o Marco Civil vai fazer
parte da sua vida.
Qual tem sido o maior desafio? Definir que valores proteger neste mundo mais
fluido, mais livre, sem fronteiras e em tempo real. Por certo a liberdade tem
sido tratada como direito fundamental neste “Marco Social-Tecnológico”. Mas a
liberdade sempre tem um preço.
O Marco Civil trouxe consigo a repetição do grito de guerra da Revolução
Francesa “Liberté, Égalité, Fraternité”. A liberdade é tratada em vários
artigos. A igualdade seria a discussão da neutralidade. E a fraternidade seria o
desafio educacional já que haverá muito mais exposição de pessoas vítimas de
conteúdos digitais ofensivos trazidos pelo excesso da própria liberdade sem
responsabilidade, que ficou sedimentada nos artigos 18, 19, 21.
Além disso, o Marco Civil da Internet Brasileira não afeta apenas o brasileiro,
já que prevê em seu artigo 11 que mesmo que o serviço esteja no exterior, que o
servidor esteja fora do país, a lei nacional deve ser aplicada sempre que houver
pelo menos uma das partes no Brasil.
Mas será que o texto aprovado pela Câmara está bom? Bem, podemos dizer que para
viabilizar foi gerada uma versão mais leve, ou melhor, um “Marco Civil Flex”.
Conforme o artigo 9, flexibilizamos a neutralidade, pois por um lado garantimos
a não diferenciação dos dados que trafegam (email, vídeo, etc), mas, por outro
lado, foi mantida a possibilidade da cobrança diferenciada de serviços de
conexão de internet e tráfego de dados.
Logo, o consumidor brasileiro continuará pagando diferente para ter mais
velocidade, o que no final implica na promoção de desigualdade social no tocante
a inclusão digital.
Na fila
Quanto mais rápida a conexão, maior o acesso a conteúdos diferenciados e maior a
qualidade. O mesmo se aplica às empresas, quem tem uma internet melhor tem mais
chances de competir no mercado global, plano e digital.
Então estar em um país com custos baixos ou irrisórios de internet super rápida
acessível para todos faz toda a diferença no arena internacional dos negócios.
Mas este não é o caso do Brasil. Pior, as Telcos chegaram a ameaçar aumentar o
custo da conexão para nivelar por cima se tivesse que ser igual para todos
(mesmo valor faria todos pagarem mais e não menos).
Flexibilizamos a questão da prioridade de passagem de dados, apesar de se tentar
por rédeas nisso. Logo, onde não deveria haver discriminação alguma nem
degradação de dados acabou trazendo uma espécie de “isonomia desigual”,
dependendo de critérios técnico-políticos.
O Poder Executivo passa a ter o controle do “sem parar” da infovia nacional, com
o único requisito de ter que ouvir a Anatel e o CGI. E se não ouvir, qual a
consequência prevista? Nenhuma.
Flexibilizamos a questão da proteção dos dados e privacidade no uso de serviços
na nuvem, impondo a aplicação de lei brasileira a empresa em território
estrangeiro. Não sei como isso será viável, vamos ter que pagar pra ver.
Quando um país desrespeita a lei de outro país há 3 caminhos de solução: o
primeiro envolve embargo econômico, o segundo envolve boicote popular em que o
povo deixa de consumir produtos daquele país em retaliação e, por último, temos
a declaração de Guerra.
No caso do Brasil, acredito que nenhum destes caminhos é viável. Só podemos
“ficar de mal” se os EUA não cumprirem com o Marco Civil, por exemplo.
Flexibilizamos a proteção constitucional da honra, imagem e reputação do
indivíduo, basta observar os artigos 7º., 9º., 22.
Agora só dá pra remover conteúdo de forma direta e imediata junto ao provedor da
página se o mesmo envolver nú, cena de sexo, infração de direito autoral ou
exposição de menor de idade. Fora isso, só com ordem judicial e sem nenhuma
garantia de remoção completa.
Ou seja, caberá a vítima dizer exatamente onde está o conteúdo que deseja
remover e o Juiz decidir com a mesma clareza e objetividade, senão não sai do
ar.
Quanto a descobrir quem foi o autor do dano, do ilícito, para coibir crimes e
punir infratores, vai ficar muito mais difícil agora, conforme artigos 10, 13,
14, 15 e 16.
Da forma como está no Marco Civil provedores de conexão e aplicação não podem
saber que dados estão no outro, logo, há grande chance de não conseguirmos
associar o fato, a conduta, a uma identidade real e válida. E estas provas só
são apresentadas pela via judicial.
Pelo texto atual, mesmo a autoridade pode no máximo pedir preservação de prova
por ofício ou via extrajudicial, a prova mesmo só vem com pedido do juiz, e
quando vem.
Para tentar acelerar o processo, há previsão de uso dos Juizados Especiais. Mas
imagine, vai parar tudo, os casos de consumidor ficarão na fila atrás dos de
difamação (que não são poucos). Lá vamos nós superlotar o judiciário, o que vai
gerar mais morosidade e mais danos sociais!
Fórum ampliado
Ao final, os artigos 26 e 27 do Marco Civil tratam do dever constitucional do
Estado na prestação de campanhas educativas sobre segurança digital e uso
responsável da internet.
Mas isso quer dizer que vai sair do nosso bolso, de imposto. Por que não ficou
sendo uma obrigação para os players deste mercado, para as Telcos, os provedores
de acesso, de aplicações, de conteúdos?
Como já foi dito, estes terminaram ficando isentos de qualquer responsabilidade
civil associada ao comportamento ou conteúdo de seus usuarios. Esta só ocorre se
cientes por ordem judicial (e não mais pela ferramenta de denúncia do serviço)
não agirem para atender a mesma, após a certeza de que é tecnicamente viável,
caso contrário, se não conseguirem atender também não respondem.
Então,quem perde e quem ganha se o Senado aprovar o Marco Civil como fez a
Câmara?
Bem, perde a vítima de ofensa digital, os anunciantes e as empresas de mídias
digitais, a autoridade policial que vai ter mais dificuldade de aplicar uma ação
rápida em resposta a um crime digital, perde a força de segurança da Copa do
Mundo e Grandes Eventos esportivos, pois o Marco Civil já entra em vigor em 60
dias e vai dificultar a resposta a ameaças terroristas digitais bem como a
identificação dos mesmos, perde o Judiciário pelo excesso de judicialização das
relações sociais digitais, perde o contribuinte que logo terá um imposto a mais
para pagar a conta da educação digital.
E quem ganha? Ganham os provedores de conexão, os provedores de aplicação, os
provedores de conteúdo de terceiros, os extremistas e radicais dos excessos da
liberdade na web tais como torcidas organizadas que vão deitar e rolar na
difamação, os criminosos, golpistas e terroristas digitais. O cidadão comum,
usuário de internet, no final, ganhou pouco.
É um início, claro, o Marco Civil não deixa de ser um grande passo, mas ao se
tirar do texto o que já tinha previsão na Constituição Federal, no Código de
Defesa do Consumidor, no Código Civil, no Código de Processo Civil, no Código
Penal, avançamos ainda de forma singela para dar um tratamento adequado à esta
nova realidade que independe de território e ordenamento jurídico.
A solução para temas tão relevantes como os tratados no Marco Civil só ocorrerá
de fato se for em um fórum internacional, com assinatura de convenção ou
tratado, pois o direito digital é global e extraterritorial. Até lá, ainda temos
um longo caminho.