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Fonte: Revista Consultor Jurídico
[23/04/14]
Primeiras considerações sobre o Marco Civil da Internet
- por Otavio Luiz Rodrigues Junior
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na
Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em
sua página.
Hoje foi sancionada a lei que “estabelece princípios, garantias, direitos e
deveres para uso da internet no Brasil”, que já se tornou conhecida como Marco
Civil da Internet. Trata-se de uma lei de enorme repercussão social, que se
dilata por diferentes áreas do Direito, ao exemplo do Direito Constitucional, do
Direito Civil, do Direito da Comunicação e do Direito Penal. Em muitos aspectos,
o Marco Civil da Internet tangencia a experiência legislativa estrangeira e
comparada, o que torna esse tema muito interessante para esta coluna, que, em
outras edições, analisou vários problemas relacionados ao uso da internet, à
privacidade de dados e ao controle das publicações na rede.
O Marco Civil da Internet compõe-se de 32 artigos, muitos dos quais de grande
complexidade, o que não permitirá seu exame em apenas uma coluna.
Esta semana, far-se-á a análise crítica de seu primeiro capítulo.
No artigo 1o, têm-se dois pontos de relevância: (a) a definição do objeto da lei
— regular o uso da internet no Brasil; (b) o reconhecimento de que a lei terá
caráter nacional, ao estabelecer as “diretrizes para atuação da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios em relação à matéria” (artigo 1o,
parte final). Quanto a esses dois pontos, é importante fazer duas observações:
(1) A lei usou de maneira ambígua as expressões princípios, garantias, direitos
e deveres, que figuram em sua ementa e no início do artigo 1o, o que se revela
de modo mais explícito quando se observa que a lei menciona os fundamentos
(artigo 2o), os princípios reitores (artigo 3o) e os objetivos (artigo 4o) da
disciplina do uso da internet no Brasil. Não houve uma preocupação maior com as
distinções terminológicas entre fundamentos, princípios e objetivos. Os direitos
e garantias vêm agrupados no capítulo segundo da lei, ao passo que os deveres
não se agruparam em uma seção específica.
(2) Quanto à fixação de “diretrizes para atuação” dos entes federados, tal como
se lê do artigo 1o, primeira parte, a lei perdeu a oportunidade de qualificar
juridicamente a internet e estabelecer um diálogo com a Lei Geral de
Telecomunicações (Lei 9.472, 16 de julho de 1997), que trata do “serviço de
valor adicionado” e define-o “como atividade que acrescenta, a um serviço de
telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas
utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou
recuperação de informações” (artigo 61, caput), sendo certo que o “serviço de
valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu
provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os
direitos e deveres inerentes a essa condição” (artigo 61, parágrafo 1°).
Essa preocupação é menos formal do que se imagina, pois envolve uma séria
possibilidade de discussões sobre a constitucionalidade, por reserva de
competência, de normas baixadas pelos entes federados sobre as chamadas
“diretrizes para atuação”. Nem se diga sobre a vacuidade do que seriam essas
“diretrizes para atuação”. Observada a titularidade ampla das pessoas jurídicas
referidas no artigo 1o da lei do Marco Civil, é de se considerar relevante essa
preocupação quando todos eles começarem a legislar sobre a internet. Quais os
limites materiais dessa competência normativa?
Os fundamentos para o uso da internet no Brasil estão assinalados no artigo 2o e
compreendem: o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o
desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a
pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a
livre concorrência e a defesa do consumidor e a finalidade social da rede.
Alguns desses fundamentos podem ser reconduzidos à Constituição Federal de 1988,
como os direitos humanos (artigo 5o e seu parágrafo terceiro, CF/1988), a defesa
do consumidor (artigo 5o, inciso XXXII, CF/1988), a livre iniciativa (artigo 1o,
inciso IV, CF/1988) e, de modo indireto, a livre concorrência (artigo 173,
parágrafo 4°, CF/1988). Outros, no entanto, como a “finalidade social” poderão
ser confundidos com a “função social”, também presente na Constituição, em face
do direito de propriedade (artigo 5o, inciso XXIII, CF/1988). Se há ou não
coincidência entre esses dois conteúdos, a lei não permite que se ofereça uma
resposta imediata, embora seja mais adequado supor que esse é um novo conceito,
cuja originalidade desafiará a doutrina a revelar seu alcance.
O “desenvolvimento da personalidade”, ao menos sob a óptica legislativa, é
também um conceito novo e cuja genealogia pode ser identificada nas teorias
psicológicas da personalidade, especialmente no campo da estabilidade da
personalidade. Seria também possível identificar esse novo fundamento com o
conceito alemão do “livre desenvolvimento da personalidade” (artigo 2o, inciso
I, Lei Fundamental de 1949), segundo o qual “todos têm o direito ao livre
desenvolvimento de sua personalidade, desde que não violem direitos de outrem e
não se choquem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. Em princípio, o
fundamento contido no Marco Civil conecta-se com a concepção psicológica e não
com aquela extraída da experiência constitucional alemã.
Na próxima coluna, dar-se-á sequência ao exame dessa nova e importante
legislação, com seu posterior cotejo com os direitos comparado e estrangeiro.