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[21/02/14]  Para entender o polêmico Marco Civil da Internet - por Ethevaldo Siqueira

21/02/2014 - A Câmara dos Deputados deve votar o Marco Civil da Internet nos próximos dias. É um momento oportuno para uma avaliação do projeto. Antes de mais nada, faço minha previsão. Acho que vamos ter outro monstrinho sob a forma de lei. Em primeiro lugar porque regular a internet por lei é algo totalmente desnecessário, sem sentido e inócuo. A internet é a maior expressão de liberdade já criada pela tecnologia.

Muitos perguntariam, mas como iremos, então, garantir os direitos do cidadão e do usuário em geral? É muito simples: para isso temos leis específicas, como o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Código de Defesa da Criança e do Adolescente (no combate à pedofilia), a lei que garante a privacidade, a propriedade intelectual e outras mais. Se essa legislação não estiver atualizada, é só complementar cada uma dessas leis, com os pontos específicos.

A rigor, o Brasil não precisa de nenhum Marco Civil da Internet. É algo tão absurdo como querer domar um touro selvagem. O que deve ser punido são os abusos – pois o uso normal, cotidiano, da internet não precisa de regras. O fato determinante, aqui, é que existe um projeto de lei que vai ser votado na Câmara e depois no Senado. Temos que saber o que significa e quais serão suas consequências. Gostemos ou não, vamos ter um Marco Civil da Internet.

Como eu, muita gente acha que o Brasil não precisa de uma lei "para regular a internet". Entre essas pessoas, estão os deputados deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) e Roberto Freire (PPS-SP), aliás, como acontece com a Lei de Imprensa, arquivada para a história há alguns anos.

O Marco Civil da Internet é mais um exemplo da velha mania brasileira de criar leis para tudo. O País tem excesso de leis, muitas delas redundantes, com proposições utópicas e simplistas, e coisas idiotas como o bordão "Saúde, um direito de todos. Um dever do Estado". A maioria dessas leis e disposições constitucionais, contudo, não prevê os recursos para sua aplicação prática.

Sugiro que, no futuro, revoguemos o monstrinho do Marco Civil da Internet resultante do projeto atual para que seus malefícios não se perpetuem. E o assunto tem sido complexo para a cabeça de nossos congressistas – despreparados e desinteressados dos grandes problemas nacional em sua maioria esmagadora. Além disso, o assunto é complexo, pois o texto final do projeto resultou da fusão de 44 outros projetos sobre o tema, alguns de 10 anos atrás, num trabalho imenso de um deputado muito competente do PT do Estado do Rio de Janeiro, Alessandro Molon.

Para simplificar nossa discussão, vamos tratar dos grandes aspectos do Marco Civil que são:

1. O conceito de neutralidade da rede;

2. A liberdade na internet;

3. A privacidade na web.

4. A propriedade intelectual.

Comecemos pelo conceito de Neutralidade da Rede. Segundo o projeto, esse conceito é definido ou exemplificado da seguinte forma: "O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação".

Na prática isso significa que "todos os usuários têm o direito de serem tratados sem discriminação". Mas aí começa a discussão. O relator Alessandro Molon (PT-RJ) e alguns deputados de esquerda não admitem que eu pague um provedor ou uma operadora de telecomunicações para ter transmissões com maior velocidade, maior confiabilidade, maior disponibilidade de serviço e o maior nível de segurança. Uma proposta sem lógica.

E pior: na prática ninguém está sendo discriminado. A rede é neutra em todo o mundo, como regra geral. Se houver algum abuso não precisamos de uma lei para definir o que é a suposta "falta de neutralidade".

Neste ponto, alguns perguntariam: "Mas você não acha que todos os conteúdos devem encaminhados com a mesma velocidade? Isso não é um exemplo de neutralidade?"

Esse é outro equívoco. Podemos ter conteúdos encaminhados com velocidades diferentes ou com maior prioridade do que outros, contrariamente à opinião do deputado Alessandro Molon e alguns outros, para os quais, o e-mail, o vídeo, as transmissões da bolsa de valores ou uma tomografia de telemedicina devem trafegar na mesma velocidade.

Eu acho que isso está errado. Um serviço de urgência pode passar na frente dos meus e-mails, em função de sua importância social. A mesma coisa com as transmissões da bolsa ou com o vídeo de uma matéria de telejornalismo de uma emissora de TV.

O que vai acontecer na prática? Mesmo com a nova lei, nada vai mudar, porque o problema não existe. Os casos isolados devem ser tratados isoladamente. A coisa mais difícil do mundo será aplicar e fiscalizar uma lei como essa.

Data centers no Brasil, para quê?

O Brasil surpreende o mundo ao exigir por decreto complementar à lei, com o propósito de obrigar as grandes empresas de internet que instalem data centers no País, sempre que contenham dados ou informações sobre cidadãos brasileiros.

Imaginem a obrigação sem lógica para que as maiores redes sociais, como Google, o Facebook, o LinkedIn e mais inocente delas, que é a Wikipedia, sejam obrigadas a instalar data centers no Brasil. Um data center de porte médio exige investimentos da ordem de alguns milhões de dólares.

Pior ainda. A medida é inócua. Os mesmos dados de brasileiros que constam de data centers instalados no País poderão estar disponíveis em qualquer outro ponto do planeta. Isso é ridículo, caro, irracional e economicamente inviável. Nenhum país civilizado e democrático faz isso.

Liberdade e privacidade

O relator do projeto, deputado Alessandro Molon, diz que liberdade na internet significa a possibilidade de você escolher o que você quer baixar, o que você quer ler ou assistir. É também liberdade de expressão, de manifestar livremente sua opinião."

Muitos me perguntam: Você não concorda com tudo isso? É claro que concordo, mas não há nenhuma prova ou evidência de que existam hoje riscos ou ameaças à liberdade na internet. Estamos comprando guarda-chuva para um dia ensolarado, sem previsão de nenhuma garoa. Estamos tomando um analgésico sem ter ou sentir qualquer tipo de dor.

Nesse caso, temos uma lei de privacidade, a 9296. Por que não atualizá-la? A grande ilusão é pensar que uma nova lei vai impedir que nossos dados, nossos e-mails, nossas informações pessoais e nossas comunicações, sejam bisbilhotadas, espionadas e classificadas, armazenadas e usadas por empresas e governos, aqui e no Exterior.

Como proteger os cidadãos?

Muito mais do que decretos e leis, o cidadão e as empresas precisam de tecnologias avançadas e de educação para se defenderem dos crimes cibernéticos.

Uma figura especial nesse debate é o relator do projeto, Alessandro Molon. Bem preparado, estudioso, combativo e eloquente, ele adota, entretanto, um discurso populista e às vezes demagógico na interpretação dos conceitos principais da lei. Em diversas entrevistas, ele faz a defesa mais apaixonada da aprovação da lei, como "condição essencial para garantir a existência de uma internet livre a todos os brasileiros":

Diz Molon: "O Marco Civil visa garantir a liberdade na internet. Sem ele, a internet vai ficar mais cara e pior. Quem hoje acessa de graça o YouTube vai ter que pagar mais para assistir a vídeos". E mais: "Quem baixa música, vai ter que pagar para baixar mais, se o Marco Civil não for aprovado."

Nada disso é verdade incontestável, mas meras suposições, como recurso retórico na defesa do projeto. São apenas hipóteses catastróficas, frases de campanha de Molon. Em nenhum país civilizado, isso acontece. Nem existem propostas desse tipo em debate. Ninguém vai pagar por músicas nem por vídeos baixados – mesmo diante do oceano de conteúdos pirateados na web, aqui e em todo o mundo – e que continuarão a sê-lo.

E, curiosamente, Molon não toca na questão da pirataria, embora enfatize coisas óbvias e genéricas como o fato de que "todos os brasileiros precisam da internet para garantir seu direito à cultura e à informação".

Como fazem quase todos os políticos, Molon utiliza a estratégia da polarização máxima, das hipóteses extremas em defesa de uma posição, como se as teses contrárias significassem prejuízos e verdadeiras catástrofes para a sociedade e cada cidadão: "O Marco Civil ou o dilúvio." Vejam, por exemplo, como Alessandro Molon defende a neutralidade da rede:

"Sem ela, o internauta perde a liberdade de escolha. Não será ele que vai escolher o que quer ver, acessar ou baixar. Alguém que é que vai lhe dizer o que ele pode e o que ele não pode. Se a neutralidade da rede não estiver garantida, você, internauta, não vai poder acessar o que quiser, por exemplo, além de usar e-mail usar ou ter também um perfil numa rede social, vai ter que pagar que pagar um preço extra. Se quiser baixar uma música, um pouco mais. Se quiser ver um desses filmes do YouTube, terá que pagar. Se quiser usar um desses programas que permitem fazer ligação gratuita na internet (Skype, por ex.), você terá que pagar muito mais."

Mais uma vez, o deputado levanta hipóteses assustadoras para reforçar seus argumentos e sua retórica política. Acena com a possibilidade de consequências extremas, caso seu projeto não seja aprovado. Na verdade, os riscos de a rede deixar de ser neutra são mínimos, a não ser em consequência de deliberada ação criminosa – que as leis existentes poderão coibir imediatamente.

Privacidade

E quanto à privacidade? Molon explica, didaticamente:"Sem o marco civil, todas as informações sobre a navegação feita pelo internauta acabam sendo gravadas, analisadas e vendidas para marketing dirigido, sem que sequer ele saiba disso. E isto estava sendo feito no Brasil. Mas agora o marco civil vai proibir."

Tudo isso continuará acontecendo, por mais críticas que temos hoje. Os hábitos de navegação do internauta são mapeados pelo Google e outras redes sociais, aqui e em todo o mundo. Teoricamente, é bom que o Brasil proíba. Mas é iludir a opinião pública afirmar que esse mapeamento vai acabar em decorrência da proibição prevista no marco civil. Até porque, na prática, será quase impossível de ser cumprida. O Google faz isso de forma automática com sistemas robotizados de indexação para quase 2 bilhões de internautas que acessam seus arquivos.

Molon não explora o sentido mais amplo e completo de proteção da privacidade. O mais triste é que a maioria da população ainda não tem a menor consciência de seu direito à privacidade e, muitas vezes, oferece suas informações pessoais em troca de supostas vantagens que lhe são propostas na rede.

Pior do que isso: o deputado omite a estratégia mais importante na defesa da privacidade que é educar o internauta, para que ele saiba defender-se de todas as armadilhas que lhe podem lançar na internet, que não exponha seus dados pessoais e confidenciais.

Para o deputado, liberdade na internet significa a possibilidade de escolher o que você quer baixar, o que você quer ler ou assistir. "É também liberdade de expressão, de manifestar livremente sua opinião. Por isso – reitera o deputado – a aprovação do marco civil é fundamental para garantir que internet no Brasil continue sendo livre e protegida contra qualquer forma de censura."

Tudo isso é a maior obviedade política. No entanto, não há nenhuma prova ou evidência de que existam hoje riscos ou ameaças a essa liberdade, na internet. Mais difícil ainda é acreditar que essa liberdade necessite de alguma lei para ser preservada.

Direitos autorais

Embora o Marco Civil não contemple a questão dos direitos autorais, o substitutivo toca de passagem no assunto em seu artigo 20, ao sugerir sempre a via judicial para retirada de conteúdos contestados, inadequados ou ilícitos. O projeto prevê, entretanto, em suas Disposições Transitórias a retirada desses conteúdos, mediante simples notificação judicial e direta ao provedor, no critério chamado de "notice and take down", jargão internacional, que significa "cientifique-se e retire".

Com isso, o projeto ganhou também o apoio da Rede Globo, que manifestava sua preocupação com o uso indevido de seus conteúdos de forma inadequada e ilegal (vídeos de seus programas, dos gols da rodada, de novelas etc.) e defende o critério do "notice and take down", mediante simples notificação, exatamente como ocorre hoje no Brasil, nos Estados Unidos e muitos outros países.

Essas regras transitórias deverão prevalecer até que o Brasil conte com uma lei de direitos autorais que exija a via judicial para retirada de conteúdos, sugerida pelo artigo 20 do substitutivo.

Essa flexibilização irritou as entidades "libertárias" que defendem o uso gratuito e irrestrito de todo o conteúdo da internet, ainda que violem direitos autorais. Essas entidades não aceitam a solução do "notice and take down", e insistem que a exclusão de conteúdos inadequados, ilícitos ou criminosos, só seja atendida mediante decisão judicial. O grande problema é a lentidão da Justiça no Brasil, que poderia dar solução para esse problema só após alguns anos.

O deputado Alessandro Molon acatou critério defendido pela Rede Globo, no que foi criticado por integrantes do Comitê Gestor da Internet e de outras entidades. Mas, segundo os representantes desse grupo, em reunião com a presidente da República, Dilma Rousseff teria concordado com a permanência do "notice and take down" nas Disposições Gerais do projeto.

Molon esclarece que "o debate sobre a responsabilidade de provedores de conteúdo ou de aplicações será travado na reforma da Lei de Direitos Autorias, já que o momento de discussão do Marco Civil da internet não é o mais adequado para essa discussão. Por isso, vamos focar os debates nas questões da neutralidade da rede, na privacidade do usuário e a liberdade de expressão."

Quanto à posição das redes sociais – como Google, Yahoo e Facebook – diante do Marco Civil, o deputado Molon garante que não há problema: "Essas instituições apoiam o projeto em sua essência, sobretudo, na questão da neutralidade da rede – que é fundamental para que haja livre concorrência na rede. A neutralidade permite que o usuário seja livre para decidir o que ele vai usar, acessar, baixar e clicar. Mas, por outro lado, existe uma série de regras de privacidade que vão obrigar tais provedores e aplicações a respeitar a privacidade dos brasileiros de forma muito mais forte do que vinham fazendo até então. Por isso, o Marco Civil vai obrigar mudanças no comportamento dessas empresas no Brasil."

Os lobbies no Congresso

Como no processo de discussão e elaboração de leis, há grupos interessados, independentemente da legitimidade de seus interesses. O essencial no caso do Marco Civil é que os maiores interessados na liberdade da internet somo nós, 200 milhões de cidadãos. De outro lado, estão os grupos políticos que querem engessar a web. Ou as emissoras de TV que não se conforme com a pirataria de seus conteúdos. Ou as operadoras de telecomunicações, para as quais o conceito de neutralidade da rede se choca com seus modelos de negócios.

1. O lobby petista, que tem a participação da base de apoio do governo Dilma Rousseff no Congresso, embora sem muita unidade sobre as linhas do projeto, diante dos problemas políticos decorrentes de uma eventual aprovação do Marco Civil, que viria destrancar a pauta. Com isso, o Congresso passaria a votar já uma dúzia de projetos considerados inoportunos pelo governo federal, a começar pelo fim do "fator previdenciário", com grande impacto no orçamento de 2014.

2. O lobby do PMDB, que reúne deputados contrários ao texto do substitutivo atual, tendo à frente o Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e parlamentares de outros partidos, considerados favoráveis aos interesses de grandes corporações de telecomunicações.

3. O lobby das teles, que reúne as operadoras de telecomunicações (teles), defensoras do princípio de que "quem usa mais deve pagar mais". Liderado pela ABRINT (Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações, esse lobby conta ainda com a participação ativa de entidades como a TelComp (associação de operadoras competitivas) e o SindiTelebrasil, sindicato empresarial representativo de um espectro mais amplo, que reúne tanto operadoras de serviço de telecomunicações, concessionárias dominantes (como Vivo, Oi e Embratel), quanto fabricantes e operadoras menores e provedores de acesso e/ou de conteúdo.
Um ponto central para as teles é o direito de desenvolver "novos modelos de negócios, com ênfase na segmentação da oferta". Em sua visão, se esses modelos forem prejudicados, como teme a entidade, os prejuízos serão grandes e desestimulantes para todos, visto que a segmentação permite a manutenção da capacidade de investimento, o uso eficiente das redes e evitaria subsídios cruzados. A empresas operadoras reivindicam também isonomia de direitos e obrigações entre provedores de acesso e de aplicações.

4. O último lobby é chamado de "salada de frutas" e reúne um conjunto heterogêneo de entidades e grupos, desde a Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio), o MST (Trabalhadores Sem Terra), o Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), a FNDC (Frente Nacional para a Democratização da Comunicação) a ABERT (associação das emissoras de rádio e TV), os órgãos de defesa do consumidor (IDEC, Proteste), o grupo defensor dos interesses políticos do Ministério das Comunicações e da Anatel, o grupo do CGI (Comitê Gestor da Internet), até o Instituto dos Advogados do Brasil. Esses grupos lobistas pleiteiam os pontos mais diversificados possíveis, desde a participação em órgãos reguladores, a imposição de restrições a questões específicas, a abertura total da rede para acesso gratuito a todos os seus conteúdos, quase sempre sem qualquer proteção a direitos autorais.

Ao falar sobre os que estão a favor e o que estão contra o projeto, Molon revela a mesma dicotomia dos extremos, do tudo ou nada. Para ele, quem está a favor do marco civil são "todos aqueles que defendem a liberdade de expressão na rede, a liberdade de acesso à informação, o direito à cultura, enfim, ativistas, pesquisadores acadêmicos, empresários conscientes, toda a imprensa que defende a liberdade de expressão".

E quem está contra? "Quem gostaria de ganhar muito mais com internet às custas do internauta, coisa que o marco civil não vai permitir. Ou seja, quem está contra são apenas os provedores de conexão, aqueles que vendem essa conexão para nós e gostariam de cobrar a preços extras o que o Marco Civil, em nossa defesa, proíbe." E termina: "Viva a internet livre. Viva o marco civil da internet."