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Leia na Fonte: Band / Colunas
[25/02/14]
O produto é você - por Mariana Mazza
Não é novidade o temor que as empresas de telecomunicações sentem do novo mundo
dos aplicativos. A web produziu futuros concorrentes importantes, que já roubam
clientes da velha indústria e não dão sinal de cansaço. O discurso das
companhias telefônicas mudou muito pouco ao longo dos anos apesar de toda a
revolução provocada pela Internet. Mas, vez ou outra, mesmo com o velho plano de
manter tudo como está, aparece algo interessante no contra-ataque das teles.
Foi o que aconteceu na apresentação feita pelo CEO da Deutsche Telekom, a maior
companhia telefônica da Alemanha, durante o Mobile World Congress (MWC) 2014,
que começou nessa segunda-feira em Barcelona, na Espanha. Timotheus Höttges fez
um alerta sobre o modelo de negócios das novas mídias gratuitas que soou quase
como uma confissão. "Para cidadãos europeus está se tornando cada vez mais
relevante quem coleta os dados e o que fazem com eles, mas as pessoas devem ter
em mente que não há nada grátis na vida: quando uma aplicação é grátis, você não
é mais o cliente, você é o produto", afirmou o executivo, segundo o portal
Teletime.
A declaração repercutiu em vários jornais mundo afora, invariavelmente frisando
a postura reativa das companhias telefônicas com a revolução digital. Mas a
pensata de Höttges é extremamente verdadeira, mesmo que por trás disso esteja
(como sempre) apenas o medo de os aplicativos se tornarem um real competidor
para os operadores de telefonia.
Nestes tempos de denúncias sobre espionagem e da transformação da web em uma
ferramenta - ainda precária, é verdade - de mobilização civil, a sociedade nem
sempre dá a atenção necessária aos riscos que estas plataformas criam para a
preservação da privacidade e dos direitos individuais. Höttges tem razão. Não é
possível imaginar que aplicativos como o celebrado WhatsApp - comprado
recentemente por nada menos que US$ 16 bilhões pelo Facebook - tenham surgido de
um espírito apenas diletante e que não buscasse um retorno financeiro dessa
jornada.
Mesmo que inicialmente o sucesso desses aplicativos seja equiparável a ganhar na
loteria, existe um aspecto nessa nova indústria que torna cada um deles uma
potencial mina de ouro: o acesso a uma montanha de dados de milhares de
usuários. Este é o negócio básico do Facebook, por exemplo. A rede social pode
não ser paga, mas há muitas formas de ganhar dinheiro com os usuários desta rede
sem fazê-los abrir a carteira diretamente. O slogan do Facebook permanece
intacto em sua página inicial: "É gratuito e sempre será". Mas quem usa o
sistema viu pouco a pouco aumentar a publicidade nas páginas. E não qualquer
publicidade. Trata-se de uma propaganda direcionada, escolhida para você com
base nas informações colocadas em seu perfil. Ou seja, no exemplo famoso do
Facebook, você não é o cliente. Você é o produto, negociado com outras empresas
que querem vender para você.
Dia desses uma colega me contou a estranha experiência que teve durante um
debate público. No evento, o representante de uma empresa do setor de gás soltou
uma pérola ao ser questionado sobre o sigilo das informações da clientela da
concessionária. "Vamos falar sério...", disse a autoridade. "Não existe mais
esse negócio de privacidade. O que existe hoje é reputação." Pode até ser assim
na prática, graças a milhões de incautos que liberam cada detalhe de sua vida
pessoal nas redes sociais mundo afora. Mas isso não torna menos importante a
criação de mecanismos de proteção dos dados dos cidadãos, pelo contrário.
O desdém de uma autoridade pública sobre o valor dos dados de cada um de seus
clientes é chocante. Só para esclarecer, o foco do debate era o pedido das
concessionárias de água e gás de São Paulo para comercializar outros produtos,
como seguros e venda de espaço publicitário, na faturas. E, é óbvio, que essas
empresas só são interessantes como revendedoras de outros serviços e produtos
graças a enorme lista de clientes (e seus dados de consumo) que possuem.
Cito esse exemplo, de um debate com uma concessionária pública, para mostrar que
o negócio de transformar clientes em produtos é bem mais antigo do que a nova
onda de aplicativos. No início deste texto disse que a declaração do executivo
da Deutsche Telekom soava quase como uma confissão. Explico: as empresas de
telecomunicações conhecem muito bem essa filosofia e sempre souberam do valor
dos dados neste mercado paralelo. Não só elas, aliás. A indústria tradicional
sempre soube que essas informações eram muito valiosas. Mas mecanismos de
controle a impedem de usar esses dados de forma mais audaciosa. Controle que, em
princípio, não acontece no novo mercado de aplicativos.
Quem nunca recebeu uma ligação de uma empresa concorrente da que você contratou
sugerindo um plano mais vantajoso e mostrando uma estranha familiaridade com o
seu perfil de consumo? Eu já e não apenas no setor de telecomunicações. Ou seja,
em algum momento, essas informações, que deveriam ser sigilosas, foram
negociadas nesse mercado cinza onde o cliente é um produto. A avalanche de spams
que invadiram os e-mails do mundo durante anos é outra prova de que suas
informações pessoais nunca foram totalmente protegidas dessa comercialização
paralela.
Em sua apresentação no MWC 2014, Timotheus Höttges, pediu uma regulação menos
"intervencionista" e mais padronizada globalmente como forma de estimular o
mercado de redes de dados. E preciso mesmo garantir que as redes continuem se
expandido para dar conta desse novo mundo de aplicativos. Mas baixar a guarda na
regulação pode não ser o caminho. O alerta feito na mesma palestra mostra porque
a regulação é tão importante. A não ser que o real desejo das empresas de
telecomunicações não seja impedir que o consumidor se torne um produto, o que
fragiliza seus direitos, mas sim permitir que todos entrem nessa nova era. E ai,
diremos adeus à nossa privacidade de uma vez por todas.