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Fonte: Estadão/ Link
[18/03/14]
Neutralidade de rede e inclusão social - por Pedro Henrique Soares Ramos
Pedro Henrique Soares Ramos é advogado formado pela USP, mestrando pela FGV-SP e
pesquisador colaborador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP.
O impacto da Internet no campo do desenvolvimento é inestimável. O acesso à
informação e a quebra de barreiras geográficas para comunicação trouxe
importantes benefícios para que as pessoas possam ampliar o seu campo de
conhecimento e conectar-se com diferentes culturas e opiniões. Todavia, a rede
está longe de ser uma realidade para todos, e a exclusão social e digital são
dois fenômenos que têm se reforçado mutuamente.
No Brasil, pesquisas conduzidas pelo CETIC.br mostram claramente esse quadro.
Enquanto 97% da classe A possui acesso à Internet em seus domicílios, essa
proporção é de 36% na classe C e de apenas 6% nas classes DE, enquanto somente
22% da classe C e 10% das classes DE têm Internet no celular. A situação é
também grave quando analisamos estabelecimentos públicos de ensino: somente 7%
das escolas públicas possuem computador em sala de aula, e 36% dessas escolas
não possuem qualquer computador em todo o estabelecimento.
Vários fatores contribuem para que essa barreira não seja tão facilmente
superada no curto prazo. Ainda que se pratiquem altos preços no país, o acesso à
Internet cresce em ritmo muito maior do que a expansão da infraestrutura de
comunicações. Para gerenciar o consumo de banda e financiar o desenvolvimento da
infraestrutura, o mercado possui hoje, além dos mecanismos de incentivo do
governo, três ferramentas principais: preço, velocidade de acesso e quantidade
de banda disponível por usuário. Respeitadas as resoluções da ANATEL e as
disposições da legislação consumerista, há hoje razoável liberdade para que
operadoras possam utilizar preços e limites de banda e velocidade como mecanismo
de controle do uso de suas redes.
No entanto, propostas como a apresentada pelo deputado Eduardo Cunha no último
dia 13 de março defendem que operadoras possam ter mais um instrumento à
disposição: a discriminação de velocidade e acesso de acordo com o tipo de
aplicação e conteúdo oferecido, o que teria um impacto enorme no modelo de
arquitetura de rede. Argumenta-se que, nesse modelo, é possível oferecer planos
básicos muito mais em conta para usuários de baixa renda, compensando esses
preços com planos mais sofisticados e caros e oferecendo assim uma maior
democratização do acesso. Na prática, provedores de acesso tornarão a rede mais
centralizada, podendo definir, por exemplo, quais aplicações e conteúdos serão
“mais caros” e quais empresas serão parceiros comerciais das operadoras,
possuindo benefícios na oferta a usuários finais. Esse cenário pode levar a
situações similares ao exemplo abaixo:
Esse é uma discussão muito comum no debate da neutralidade da rede. Quanto mais
centralizada uma arquitetura de comunicação, menor será a autonomia dos atores
localizados nas pontas da rede – os usuários. Em um modelo extremo, o
fortalecimento do núcleo central da arquitetura pode levar a modelos de
comunicação similares ao que ocorre na televisão, em que decisões sobre conteúdo
são restritas aos interesses daqueles que gerenciam a programação.
Uma arquitetura descentralizada é bastante diferente desse cenário no que se
refere à autonomia dos usuários. Podemos falar que o sistema mais primitivo de
comunicação descentralizada é a praça de uma cidade: qualquer cidadão pode ir
até a praça, conversar com outros e fazer o que quiser e quando quiser,
observadas as regras gerais estabelecidas na comunidade (ex. não ofender, não
roubar).
A Internet assemelha-se mais a uma praça do que um sistema de televisão. Essa
autonomia, somada às ferramentas tecnológicas disponibilizadas, é o principal
fator para que a rede seja considerada um dos principais instrumentos para o
exercício de liberdades e expansão de capacidades individuais. Sem uma rede
aberta, a Wikipedia não teria surgido, as manifestações de junho de 2013 não
teriam tanta repercussão e produtos culturais que desafiam padrões de mercado –
como o canal Porta dos Fundos – jamais existiriam.
O problema central da proposta do deputado Eduardo Cunha é exatamente essa
diferenciação de preços e acesso a serviços, e que podem criar uma divisão entre
a “Internet dos ricos” e a “Internet dos pobres”.
Esta última seria a periferia do sistema, com acesso limitado a recursos e que,
a longo prazo, tenderia a aumentar barreiras de exclusão social, na medida em
que os mais pobres seriam cada vez mais diferentes dos ricos no que se refere a
acesso a informação, ferramentas de comunicação e interação social. Com a
cobrança diferenciada, seria reproduzida a mesma separação social que ocorre nas
cidades brasileiras hoje: periferias com acesso limitado a equipamentos
culturais e serviços de qualidade, e anéis de riqueza em que seriam construídas
barreiras de estratificação social com o objetivo de afastar a presença e
entrada da periferia nessas praças.
E como fica a questão da expansão da infraestrutura? Ainda que mais pessoas
possam ter acesso à Internet, isso não significa que essas contribuições serão
suficientes para financiar a infraestrutura e que, com o estabelecimento de uma
rede ampla e de qualidade, preços e barreiras irão cair a ponto de permitir o
acesso de todos aos planos mais caros. No fim, os mesmos problemas de escassez
de recursos poderiam ser enfrentados em uma rede centralizada ou
descentralizada, já que os principais consumidores de banda do mundo (Google,
Facebook e Netflix) continuarão a manter sua posição hegemônica em qualquer dos
cenários.
Ou seja, a ineficiência de modelos de incentivo à expansão da infraestrutura da
rede não pode ser imputada à sua arquitetura descentralizada. A Internet é tão
somente um meio de comunicação, e o acesso pelo acesso não significa que seus
benefícios serão imediatamente percebidos no momento da conexão – inclusão
digital só é um benefício quando há também inclusão social. Destarte, a criação
de um modelo de Internet similar ao que ocorre na TV a cabo não resolverá
problemas de infraestrutura e poderá, ainda, ter como consequência adversa a
reprodução e potencialização dos efeitos negativos da exclusão social que já se
operam no mundo offline.
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O artigo acima reflete as opiniões do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da
USP e não necessariamente a posição editorial do Estado de S. Paulo, e foi
cedido para publicação ao jornal pelo próprio Núcleo, sendo uma versão curta de
estudo publicado pela entidade nesta semana.