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Leia na
Fonte: Blog de Fernando Rodrigues
[26/03/14]
Marco Civil acerta na neutralidade da rede, mas tem defeitos - por Fernando
Rodrigues
Fernando Rodrigues, jornalista,
nasceu em 1963. Fez mestrado em jornalismo internacional na City University, em
Londres, Reino Unido (1986).
Na Folha desde 1987, foi repórter, editor de Economia, correspondente em Nova
York (1988), Tóquio (1990) e Washington (1990-91). Na Sucursal de Brasília da
Folha desde 1996, assina a coluna "Brasília", na página 2 do jornal, às quartas
e sábados.
Mantém uma página de política no UOL desde o ano 2000 com informações
estatísticas e analíticas sobre eleições, pesquisas de opinião e partidos
políticos. Em 2007 recebeu uma fellowship da Fundação Nieman, na Universidade
Harvard (Cambridge, MA, nos Estados Unidos). [Leia
mais]
- Há imprecisões sobre armazenamento de informações privadas de usuários
- Texto facilita a censura judicial ao enfatizar como é o procedimento
= Conceito vago de “interesse da coletividade'' determinará retirada de algo da
web
O texto do projeto de Marco Civil da Internet (íntegra
no post abaixo) aprovado pela Câmara em 25.mar.2014 tem uma novidade
importante: define em lei o que é a “neutralidade de rede” no Brasil.
Se o Senado aprovar o projeto e se a presidente da República o sancionar tal
como está, as empresas brasileiras não poderão fazer aqui o que já está sendo
uma realidade nos EUA: um acerto entre um provedor e um site para que um
determinado conteúdo seja acessado mais rapidamente que o do concorrente.
Por exemplo, a Netflix (empresa que transmite vídeos em streaming)
acaba de fazer um acerto com a Comcast (uma gigante entre os provedores de
internet) para ter seu conteúdo acessado pelos consumidores numa velocidade
maior.
Quem desejar assistir a filmes na web nos EUA poderá escolher os da Netflix, com
alta velocidade, ou os de concorrentes que poderão travar no meio da exibição.
Ou seja, o mercado torna-se desigual e menos competitivo.
O Marco Civil da Internet impedirá no Brasil que tais acordos sejam firmados. Os
provedores de acesso não poderão vender velocidades diferentes de acesso com
base no tipo de conteúdo veiculado.
O que fica ainda permitido aos provedores brasileiros é vender diferentes
velocidades de acesso, sem discriminar o conteúdo. Assim, um consumidor que
pagar para ter 10Megas vai acessar qualquer site nessa velocidade. O que desejar
optar por 20Megas pagará um pouco mais para acessar também todos os sites nessa
velocidade. E assim por diante.
Nesse modelo a ser adotado pelo Brasil, preserva-se a possibilidade de
provedores de internet terem lucro quando oferecem um serviço melhor (mais
rápido). Ou seja, estimula-se investimentos. Mas fica proibida a discriminação
de conteúdo – as empresas entenderam tudo isso e
aprovaram essa abordagem.
Até aí, tudo bem. Mas o texto do Marco Civil da Internet é longo e contém vários
pontos obscuros. Eis alguns:
CENSURA MAIS ACESSÍVEL
O artigo 19 e seus parágrafos 3º e 4º permitem que juízes de juizados especiais,
motivados em “interesse da coletividade” (um conceito vago e impreciso),
determinem liminarmente a retirada de conteúdo de um site.
O que chama a atenção nesse dispositivo é a regra estar presente dentro de uma
legislação específica sobre a internet. A rigor, a legislação vigente no país
hoje já trata desse procedimento. Ao detalhá-lo no Marco Civil da Internet, o
Congresso faz uma promoção ativa das ações que visem a censurar conteúdo.
O deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) argumenta que esse artigo e seus
parágrafos referem-se apenas a conteúdo de terceiros que são publicados em
determinado site, portal ou blog. Por essa interpretação, esse artigo e esses
parágrafos estariam se referindo apenas a comentários que as pessoas possam
postar a respeito de algum conteúdo ou notícia. Esse argumento, entretanto, não
fica explícito no texto da lei que já passou pela Câmara e abre uma brecha para
que a regra se estenda a qualquer tipo de conteúdo, inclusive jornalístico, que
poderá ser censurado e retirado do ar.
Hoje já é possível retirar um determinado conteúdo da internet. Para conseguir
isso, é necessário entrar com uma ação contra o site e/ou o responsável pela
publicação. Ao explicar que esse tipo de medida pode ser feito por meio de ações
em juizados especiais, que dispensam a contratação de advogados, o Marco Civil
funciona praticamente como uma cartilha convidando os cidadãos a buscarem tal
tipo de censura. Fica pavimentado o caminho, então, para uma enxurrada de ações.
Há um debate hoje em democracias consolidadas sobre a inconveniência de retirar
conteúdo jornalístico de circulação. Em alguns países o que ocorre é uma multa
no caso de ficar comprovado o dolo contra a parte que se diz atingida. A censura
e eliminação total do conteúdo, entretanto, não é um procedimento considerado
alinhado aos princípios básicos da liberdade de expressão. No Brasil, como já é
possível proibir a circulação de determinados conteúdos, esse princípio não
existe. Agora, o Marco Civil reforça a possibilidade de censura e eliminação de
determinadas informações na web.
A gênese desse artigo teve alguns atores importantes. Um deles foram as
Organizações Globo, que defenderam durante o debate a prática “notice and take
down”, que significaria uma regra simples em que portais e sites seriam
notificados por alguém que se sentisse ofendido –e nessa hipótese os próprios
portais ou sites retirariam o conteúdo do ar. Esse tipo de regra foi muito
criticada por organizações da sociedade civil e de defesa da liberdade de
expressão por considerarem que provedores de internet, sites e blogs se
tornariam na prática censores de conteúdo. Prevaleceu então a necessidade de
haver algum procedimento judicial por parte de quem se sentisse ofendido.
Outro ator relevante nessa disputa foram os políticos, dentro e fora do
Congresso. Eles pressionaram para que o Marco Civil contivesse uma regra bem
clara sobre a censura e a retirada de conteúdo da web.
Eis os trechos da futura lei que tratam do tema (com as partes mais relevantes
em negrito):
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a
censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado,
tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as
disposições legais em contrário.
[...]
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos
disponibilizados na Internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de
personalidade bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por
provedores de aplicações de Internet poderão ser apresentadas perante os
juizados especiais.
§ 4º O Juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total
ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo
prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na
disponibilização do conteúdo na Internet, desde que presentes os requisitos de
verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou
de difícil reparação.
RESPONSABILIZAÇÃO DOS PROVEDORES
Esse é um trecho do Marco Civil que representa uma grande vitória dos que querem
responsabilizar os provedores por conteúdos de terceiros –ou arrumar uma
desculpa para que conteúdos sejam derrubados antes de ordem judicial.
O Marco Civil estipula que haverá no futuro uma lei sobre “infrações a direitos
de autor ou a diretos conexos”. Enquanto essa lei não existir, fica valendo a
“legislação autoral em vigor”.
Ou seja, um blog ou site que está hospedado num portal pode, eventualmente, ser
acusado de publicar material sem o devido direito autoral. É impossível um
grande portal identificar previamente quem está fazendo isso. Mas pelo que
determina o Marco Civil, um determinado provedor será “solidariamente
responsável” com aquele que infringir a lei.
Eis os trechos que tratam disso (com as partes mais relevantes em negrito):
Art. 19 (…)
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou
a diretos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a
liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição
Federal.
Art. 31. Até a entrada em vigor da lei específica prevista no § 2º do art. 19, a
responsabilidade do provedor de aplicações de Internet por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor
ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral em
vigor aplicável na data da entrada em vigor desta Lei.
E o que que diz a Lei autoral:
Art. 104: Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em
depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade
de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou
para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos
artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o
distribuidor, em caso de reprodução no exterior.
ARQUIVAMENTO DE INFORMAÇÃO PRIVADA
Aqui existe um grande risco de invasão de privacidade. O texto do Marco Civil
fala em guarda de conteúdo de comunicação privada por parte dos provedores, algo
que não pode ocorrer por princípio constitucional.
Nesse caso específico há um problema adicional pelo fato de o Brasil não dispor
de uma legislação que trate da coleta e armazenamento de dados pessoais dos
cidadãos. Nesse vácuo, o projeto de Marco Civil da Internet acaba entrando de
maneira incompleta e deixando vários buracos para que as pessoas possam ter seus
dados violados.
Eis as menções (com as partes mais relevantes em negrito):
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a
aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do
conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade,
vida privada, honra e imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
[...]
§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado
mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer,
respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º.
Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de
registros, dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de
aplicações de Internet em que pelo menos um desses atos ocorram em território
nacional, deverá ser obrigatoriamente respeitada a legislação brasileira, os
direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das
comunicações privadas e dos registros.
APLICATIVOS OBRIGADOS A GUARDAR DADOS
Outra inovação é a regra pela qual qualquer site ou aplicativo na internet com
finalidade de lucro ter de registrar os dados de seus usuários por, no mínimo, 6
meses. Isso passa a ser obrigatório. Por exemplo, quem usa Skype, WhatsApp ou
Twitter saiba que agora tudo o que fizer dentro desses aplicativos ficará
guardado por 6 meses.
Nesse caso, estipula o Marco Civil, não são os dados de acesso ao provedor de
internet (cuja retenção é prevista em artigo diverso), mas a sites ou
aplicativos no celular ou outros dispositivos móveis –as chamadas “aplicações de
internet”.
Ao consultar especialistas, o Blog concluiu que não há nada semelhante em
qualquer outra legislação no planeta.
Eis um comentário de uma pessoa que é estudiosa do assunto: “O armazenamento
obrigatório destes dados aumenta, por si só, o risco de mau uso e vazamento
dessas informações, terá um custo e, ainda, impedirá que um site legitimamente
apague uma informação que um cidadão, seu usuário, solicitou que apagasse, por
mais inocente que seja. Igualmente, veda a própria existência de determinados
serviços privacy-friendly”.
Perguntas a serem feitas: por que um provedor de serviços via um aplicativo de
celular ou tablet precisa guardar dados privados de um consumidor por 6 meses? E
o consumidor que desejar deletar imediatamente seus dados de uso? Não será
autorizado? E os aplicativos cujas mensagens desaparecem depois de lidas (como
Snapchat e Wickr)? Terão de mudar seu sistema de funcionamento no Brasil? Muitas
coisas que terão de ser consideradas pelos senadores na próxima fase de
tramitação do Marco Civil da Internet.
Eis o trecho sobre esse tema:
Art 15. O provedor de aplicações de Internet constituído na forma de pessoa
jurídica, que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com
fins econômicos, deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações
de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de
seis meses, nos termos do regulamento.