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Fonte: Meio Bit
[26/03/14]
Marco Civil da Internet: conversamos com Flávia Lefèvre Guimarães, ex-integrante
do conselho consultivo da ANATEL - por Nick Ellis
Conversamos com sobre o Marco Civil da Internet com Flávia Lefèvre Guimarães,
ex-coordenadora jurídica do IDEC e ex-membro do conselho consultivo da ANATEL de
2006 a 2009. Flávia também é integrante da diretoria de infra-estrutura de
Telecom da FIESP, Mestre em processo civil pela PUC-SP e participa do Conselho
Consultivo da PROTESTE, onde está desde a sua fundação em 2001. Em sua página em
uma rede social, Flávia cita Pierre Lévy: “O Brasil está na vanguarda. O Marco
Civil da Internet é muito bom e o melhor é que ele foi feito de forma
colaborativa”.
MB:
Em primeiro lugar, por qual motivo a aprovação do Marco Civil da Internet era
tão importante? O que estava realmente em jogo?
Flávia:
O PL 2126/2010 pretende estabelecer princípios para a convivência dos mais
diversos interesses na internet. E estabelecer esses princípios e regras é
fundamental. Primeiro porque a internet é um ambiente com um enorme potencial
econômico, o que significa que grandes grupos tendem a se apoderar deste espaço
e se não tivermos regras, o caráter público e a finalidade social das redes pode
ser solapado de modo que a internet se transforme num negócio simplesmente.
Ocorre que a internet é um espaço público onde devem ser preservados os direitos
fundamentais das pessoas, tais como o direito de se comunicar, de se informar,
de se educar e buscar cultura e de exercer manifestações políticas. Além disso,
tem papel preponderante para os estados, na medida em que os Poderes Públicos
atuam em grande medida na internet como, por exemplo, na emissão de documentos,
na atividade tributária, no sistema financeiro, nos sistemas previdenciários, no
sistema eleitoral, entre outros.
Sem regras de convivência na internet estamos sujeitos aos interesses privados
daqueles com mais força para fazer prevalecer suas posições, deixando os
cidadãos em situação de extrema vulnerabilidade.
Costumo dar como exemplo a Floresta Amazônica, que é um patrimônio difuso. O que
restaria da floresta se não tivéssemos o Código Florestal?
O MCI é que vai garantir que governos e empresas não se apropriem de um espaço
público comprometendo a democracia e a inclusão digital. Estamos tratando de um
direito fundamental reconhecido como tal pela ONU e que está na pauta de
regulamentação tanto na Europa quanto nos EUA.
MB:
Por que as empresas telefônicas estavam posicionadas contra a neutralidade da
rede?
Flávia:
Porque é a neutralidade que as impede de fatiar a internet, de colocar pedágios
altos para acesso aberto e ilimitados como temos hoje, dando acesso para os mais
ricos e restringindo a inclusão digital. Querem, além de vender velocidades de
acesso diferenciadas, com o que podemos concordar, vender acesso limitado a
aplicativos específicos, transformando a internet numa tv à cabo, que
contratamos hoje por pacotes de canais. E, por trás disso, há uma questão de
fundo: para que todos tenham acesso aberto à internet são necessários grandes
investimentos que as empresas não podem e não querem fazer.
Por isso temos defendido que o governo cumpra a Constituição Federal e a Lei
Geral de Telecomunicações e assuma o papel principal que recebeu dessas leis
para promover a inclusão digital, realizando investimentos públicos em parceria
com a iniciativa privada, estabelecendo metas de universalização, viabilizando
que a infraestrutura que serve de suporte para o acesso à internet chegue para
todos os cidadãos, inclusive os mais pobres. Só que as teles prefeririam que se
estabelecesse um MCI com direitos chinfrins, do tamanho do compromisso delas com
o interesse público e com a pouca disposição de realizar investimentos. Porém,
na hora de definirem preços e tarifas os olhos crescem e a ANATEL faz vista
grossa.
MB:
Muita gente espalhou nas redes sociais a ideia de que a neutralidade da rede
seria algo imposto por decreto, uma forma de censura, quando é justamente o
contrário, trata-se na verdade de uma luta pelo simples direito de continuar
usando a Internet de forma livre. O que você diria para estas pessoas?
Flávia:
Diria para refletirem muito sobre essa afirmativa perigosa. Pensem em qual
realidade estaríamos hoje se não tivéssemos uma Constituição Federal limitando a
atuação de governos e de agentes públicos. O MCI vem muito mais para orientar as
práticas de agentes econômicos e entes públicos na formulação de políticas para
o uso da internet do que para cercear direitos. É justamente o oposto: o MCI
protege a liberdade e a privacidade.
O primeiro ponto a ser esclarecido nesta discussão é quem possui atribuição
legal para editar regulamentos para a aplicação das leis. E a resposta está nos
arts. 84, inc. IV e 87, §1º, da Constituição Federal, que atribuem este poder
privativamente ao Presidente da República e Ministros de Estado, que manifestam
seus atos normativos por meio de Decretos.
Além disso, a neutralidade diz respeito à direito de acesso à internet e impede
o tratamento discriminatório dos internautas por razões comerciais, políticas,
religiosas, etc, temas estes que estão alçados ao patamar de políticas públicas.
Ocorre que as Agências Reguladoras são meras implementadoras de políticas
pré-definidas por lei ou por decretos regulamentadores.
Portanto e considerando que a neutralidade implica em questões de ordem técnica
para a operação das redes, o art. 9º, do MCI necessariamente terá de ser objeto
de regulamentação, o que só poderá ocorrer por meio de Decreto expedido pelo
Presidente da República ou Ministro das Comunicações e, só posteriormente, de
atuação da ANATEL para fazer cumprir o que ficar estabelecido, editando atos por
meio dos quais exercita o poder de regulação e fiscalização e não
regulamentação.
Ou seja, o texto do MCI só repete o que já está na Constituição Federal e não
implica na autorização para que governos implantem o vigilantismo e o
cerceamento dos direitos à livre manifestação do pensamento e à informação.
O uso que os governantes fazem de suas atribuições legais são questões de outra
ordem e que não se confundem com os objetivos do MCI. Sendo assim, a Emenda
Aglutinativa apresentada pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), neste mês de
março, ao modificar o texto do art. 9º, para atribuir a ANATEL o papel de
regulamentar sobre a neutralidade, afronta as competências estabelecidas pela
Constituição Federal.
MB:
Você acredita que a ANATEL funciona de forma isenta hoje em dia?
Flávia:
Não. Integrei durante 3 anos o Conselho Consultivo da ANATEL representando os
consumidores e acompanho as telecomunicações bem de perto desde 1998 e posso
dizer que esta agência não cumpre o papel que a lei lhe atribuiu de garantir o
equilíbrio entre os agentes do setor, pois suas decisões pendem sempre para os
interesses dos grandes grupos econômicos deixando os consumidores brasileiros em
situação de enorme desvantagem: temos os piores serviços e as tarifas mais altas
do planeta.
MB:
Caso a Emenda que propõe que o órgão possa regulamentar a neutralidade passe no
plenário, quais são os riscos que o usuário comum está correndo?
Flávia:
Primeiro queria deixar claro que não podemos decidir quem vai regulamentar uma
matéria com base no critério de se o órgão está ou não cooptado e sim com base
no que determina a lei. Como já disse acima, o poder de regulamentar a lei é
privativa do Presidente da República e dos Ministros de Estado. A ANATEL regula
e fiscaliza.
Assim, no sentido de eliminar riscos acho a posição do DEM a respeito do tema a
mais coerente: a lei definiria exaustivamente o princípio da neutralidade, sem
deixar espaço para regulamentação seja pelo Poder Executivo seja pela ANATEL.
Mas na prática essa solução é inviável, pois sempre surgirão novas questões de
ordem técnica e prática ligadas à preservação da neutralidade passíveis de serem
regulamentadas, já que estamos falando de setor extremamente dinâmico.
MB:
Quem eram os verdadeiros inimigos do Marco Civil da Internet no Brasil, dentro e
fora do Congresso? Como eles usaram a contra-informação para tentar convencer o
público de que o MCI era a favor da censura ao defender a neutralidade?
Flávia:
As grandes empresas e aqueles que têm medo do poder da informação e liberdade de
expressão, ou seja, as forças políticas mais retrógradas do país, que associados
nesse lobby desleal usam da massa ignorante para promover a contra-informação. É
importante saber que o inimigo nº 1 do MCI — o Dep. Eduardo Cunha do PMDB-RJ —
foi presidente da TELERJ e é financiado pelas teles. Então, não se deixem
enganar por quem diz que defende a internet livre, mas está financiado por
empresas que querem fazer da internet uma versão moderna das capitanias
hereditárias.
MB:
Para concluir, você sente uma sensação de vitória pela aprovação do projeto como
está?
Flávia:
Podemos dizer que o texto com as modificações feitas ficou melhor ainda.
Especialmente o inc II do art. 9 mantendo a regulamentação por decreto, mas com
consulta ao CGI e ANATEL, o que dará maior garantia de participação social nas
definições sobre neutralidade. Quanto ao art. 15 e guarda obrigatória de dados é
importante lembrar que o acesso só pode ser disponibilizado mediante ordem
judicial, inclusive para autoridades policiais e Ministério Público.
MB:
Muito obrigado por responder nossas perguntas. Para quem quiser conferir o texto
do Marco Civil aprovado na íntegra, é só clicar aqui. Caso queira assinar o
abaixo assinado pela aprovação do MCI no Senado, clique aqui.