WirelessBRASIL

WirelessBrasil  -->  Bloco Tecnologia  -->  Crimes Digitais, Marco Civil da Internet e Neutralidade da Rede  -->  Índice de artigos e notícias --> 2015

Obs: Os links originais das fontes, indicados nas transcrições, podem ter sido descontinuados ao longo do tempo


Leia na Fonte: Clube do Hardware
[22/12/15]  Traffic shaping: uma afronta à neutralidade da rede - por Sandro Furtado

Página 1 de 6

Introdução

O traffic shaping (modelagem de tráfego) é uma prática comum aplicada por diversas operadoras de Internet no mundo. Consiste basicamente em filtrar e modelar a largura de banda do assinante conforme várias definições que cada empresa desejar aplicar. Dessa forma, se você tem, por exemplo, uma conexão de 10 Mbps, pode ser que para vários sites e serviços sua conexão seja reduzida para qualquer valor abaixo ou muito abaixo disso sem que você saiba ou perceba..

exemplo de como o trafego de dados é limitado
Figura 1: exemplo de como o trafego de dados é limitado

Antes do Marco Civil da Internet, o traffic shaping não era explicitamente proibido, apesar de sempre ter sido visto pela comunidade técnica como uma prática desonesta. Afinal, se você está pagando por x de velocidade, espera que a operadora ao menos tente entregar essa velocidade. Contudo, a lei brasileira não é nada exigente para os assuntos relacionados a serviços de comunicação, sobretudo para com a Internet. Para se ter uma ideia, depois de anos de luta, discussões e processos jurídicos, a lei passou a obrigar que a velocidade média que as operadoras devem entregar no Brasil seja pelo menos de 80% do valor em contrato e a velocidade mínima não pode jamais ficar abaixo de 40%. Isso já pode ser considerado uma grande conquista, haja visto que antes de outubro de 2014 os valores permitidos eram ridiculamente baixos, de 20% e, muito antes, apenas 10%. Se aplicarmos essa lei a compras em geral, basicamente seria como se você fosse ao mercado e queira comprar um quilo de arroz, o mercado pode lhe entregar um pacote com 800 gramas e cobrar por um quilo. Isso sem contar com traffic shaping!

Dessa forma, tentar processar a operadora por não estar entregando o que foi vendido era sempre uma luta de Davi contra Golias.

Porém, depois do Marco Civil da Internet, o traffic shaping tornou-se oficialmente ilegal. Não por que a operadora entrega menos do que vende, mas por que classifica e prioriza dados, ferindo a neutralidade da rede que é um dos pilares do Marco.

Apesar do conhecimento público e das evidências, poucas operadoras admitem fazer ou já terem feito uso dessa prática. Nesse artigo, vamos tentar mostrar como funciona e como detectar se sua conexão está sendo afetada.

Página 2 de 6

O que é e como funciona o traffic shapping

O traffic shaping é uma forma de classificação e controle dos dados pela operadora no link que o usuário acessa de sua rede. Com base nessa classificação, a operadora pode limitar a banda de acesso a um determinado percentual da banda total do cliente para certos serviços ou sites, de tal forma que o acesso a estes sites e serviços não conseguirão usar a capacidade disponível de sua banda, mesmo esta estando totalmente livre..

A ideia é a seguinte. Em vez de investir na expansão de sua infraestrutura, aumentando o link que elas têm com o restante da Internet, algumas operadoras criam bloqueios artificiais para diminuir o uso da conexão da operadora com o resto da Internet. Diminuindo o tráfego, as operadoras podem postergar investimentos em sua infraestrutura.

O problema é que nós não temos uma maneira 100% eficaz de descobrir se a operadora está aplicando o traffic shaping na nossa rede por que existem muitas formas diferentes de aplicar esses filtros e nenhuma forma totalmente segura de testar e descobrir se o traffic shaping está em ação, a não ser acessando as regras e logs dos equipamentos da operadora – algo que só é possível conseguir de forma judicial.

O traffic shaping pode, por exemplo, ser aplicado apenas para alguns usuários da rede. Digamos que você e seu vizinho tenham cada um, um link de 10 Mbps da mesma operadora. A operadora pode estar aplicando o traffic shaping apenas no seu endereço IP e deixar o do vizinho livre. Ou ela pode ainda estar usando regras diferentes na conexão dele.

Como todo o tráfego de dados do usuário corre inicialmente na rede de sua operadora, ela pode literalmente filtrar qualquer coisa.

Um filtro muito comum no passado era para o acesso ao Youtube e ao falecido Orkut. Como esses dois sites eram responsáveis pela maioria esmagadora do fluxo de dados no país, aplicar filtros de velocidade para esses endereços tornava a rede das operadoras muito menos sobrecarregadas.

Outra forma muito comum de limitação aplicada é sobre protocolos específicos como o P2P. Isso se refletia nos clientes de torrent que nunca conseguiam chegar na velocidade máxima da sua conexão em vários casos.

E esses são só dois dos tipos de filtros mais básicos que podemos exemplificar. Podemos partir para filtros mais inteligentes e automatizados como regras e filtros dinâmicos usando gatilhos de ativação, tais como horários de pico, saturação do link core da operadora, análise de fluxo de maior consumo do usuário, etc. A lista de possibilidades que a operadora pode empregar de forma sutil e automatizada é imensa.

As operadoras têm em suas mãos tantas possibilidades de opções de tipos de filtro que a própria Anatel poderia ter traffic shaping na rede dela e não perceber.

Nós mesmos só desconfiamos quando vemos que algo em especifico está mais lento do que deveria ser. É quando aquele vídeo no Youtube passa mais tempo carregando do que tocando, enquanto que o mesmo vídeo no Vimeo carrega sem parar, ou quando vamos baixar um driver de vídeo novo e o download leva uma eternidade que ficamos com a pulga atrás da orelha.

Mas a pior parte disso é que não tem como termos certeza, pois aquele vídeo do Youtube pode estar lento por que as conexões do Youtube estão saturadas ou instáveis, por exemplo, ou o site da fabricante da sua placa de vídeo pode ter posto um limitador de velocidade na rede para permitir que mais pessoas façam download simultâneo (ao custo da diminuição da velocidade individual de cada usuário).

Página 3 de 6

Como descobrir se sua rede está tendo traffic shaping

Quando sua Internet parece ruim o que você faz? Testa. E é ai o traffic shaping dificulta nossa vida. Como na célebre frase de Charles Baudelaire: “A maior façanha do Diabo foi convencer a todos que ele não existe”. Este poderia ser o slogan do traffic shaping. Quando sua rede está recebendo filtragem, os filtros sempre são preparados de forma que sites e ferramentas de teste, ao menos as mais comuns e conhecidas, não sejam afetadas ou possam até mesmo ser beneficiadas..

Dessa forma, se você está vendo um vídeo no Youtube, sente que ele está travando mais do que o normal e corre para um site de teste como o SIMET, Minha Conexão, RjNet, Brasil Banda Larga, Speed Test etc., ao testar sua rede geralmente descobre que ela está com a velocidade excelente. Isso por que o traffic shaping é uma espécie de serviço de QoS do mal. Ao mesmo passo que ele pode reduzir a banda de um site ou serviço, pode melhorá-la para outros, como os sites de teste.

Assim, você fica com uma conexão ruim, mas se for reclamar junto à Anatel, não terá provas. Logo, a não ser a que operadora tenha cometido um erro e colocado um filtro que afete os sites de teste de forma negativa, verificar a velocidade da sua Internet através desses sites não vai indicar que sua rede está sendo afetada pelo traffic shaping. Uma alternativa seria tentar usar sites pouco conhecidos e do exterior e torcer para eles caiam nas regras de redução de velocidade, mas eles podem ser menos precisos, pois outros fatores podem interferir na medição de velocidade, como passar por redes de outras operadoras, quantidade de saltos muito alta, tipos variados de meio de transmissão, distancia física etc. Além disso, para abrir uma reclamação oficial, o teste precisa ser de um site homologado pela Anatel, como o Brasil Banda Larga ou o SIMET.

Ainda sim, existem ferramentas desenvolvidas para caçar o traffic shaping. Entre elas está o Measurement Lab (M-Lab).

O M-Lab é o resultado de um esforço conjunto de colabores do Google, faculdades e laboratórios de tecnologia com o intuito especifico de realizar testes de desempenho e confiabilidade das conexões de Internet.

Entre os testes que o M-Lab oferece, estão o Glasnost e o Neubot, que são ferramentas especificas para testar o traffic shaping e o desempenho geral da sua conexão.

Com o Glasnost é possível testar em tempo real se sua rede tem algum tipo de limitador ativado, já com o Neubot, um cliente é instalado e faz testes periódicos, verificando se existe casos de traffic shaping disparados por horários ou outros gatilhos.

É importante frisar que, apesar de essas ferramentas serem altamente desenvolvidas para esses testes, existe uma grande possibilidade de sua rede estar com traffic shaping e não ser capturada pelos testes.

Página 4 de 6

Usando o Glasnost e o Neubot

Para usar o Glasnost é preciso apenas acessar o site com um navegador compatível, escolher o tipo de teste que deseja, e rodá-lo. Os testes rodam com plugin Java e cada teste tem duração de 500 segundos. Obviamente, o ideal é que sua rede esteja totalmente ociosa no momento do teste para refletir os resultados mais acurados possíveis. Os resultados são exibidos ao final do teste..

Já no Neubot você deve baixar um pequeno programa que permite vários ajustes finos para ficar testando sua rede em segundo plano de forma automatizada.

Caso alguma das aplicações encontre anormalidades, você deve proceder primeiro com uma reclamação junto à operadora. Lembre-se sempre de anotar os protocolos de atendimento bem como a data da reclamação e o prazo para resolverem. Se a operadora não resolver o problema dentro do prazo, o próximo passo é abrir uma reclamação na Anatel. Para tal, será necessário informar o protocolo da reclamação que você fez anteriormente com a operadora.

Página 5 de 6

O mapa do traffic shaping no mundo

A iniciativa do M-Lab contém uma página muito interessante que concentra todos os testes feitos pelos usuários ao redor do mundo..

O mapa da neutralidade agrupa por país os testes e resultados indicando a quantidade de testes por operadora e quantos destes tiveram um resultado positivo para filtragem de dados. É possível ver que a maioria dos países possui casos confirmados de traffic shaping, que é um dado um tanto ou quanto alarmante.

mapa do traffic shapping no mundo
Figura 2: mapa do traffic shaping no mundo

Infelizmente o trabalho do M-Lab é pouco conhecido e divulgado no Brasil. Com isso, a quantidade de testes realizados é muito pequena para se ter uma ideia real de o quanto somos afetados, mas esperamos que através deste artigo mais técnicos e usuários avançados utilizem essa ferramenta para que tenhamos mais dados sobre a situação brasileira nessa ferramenta.

Na tabela abaixo apresentamos os dez provedores brasileiros mais testados e seus resultados (note que são listados usando suas razões sociais e não seus nomes comerciais):

Ver Tabela

Como podemos ver nove das dez operadoras com o maior numero de testes acusaram a existência de filtros. Uma das operadoras, contudo não teve seu nome divulgado. Porém, é importante frisar, a quantidade de testes executados ainda é relativamente baixa e precisamos de mais técnicos e usuários avançados participando.

A lista completa você pode ver acessando o site http://netneutralitymap.org e clicando sobre cada país.

Se você quiser contribuir, acesse o site do M-Lab e teste sua conexão pelo Glasnost. O resultado de seu teste será incluído automaticamente no mapa da neutralidade da rede e ajudará a tornar os dados mais precisos.

Página 6 de 6

Conclusão

Esperamos que você tenha gostado de nosso artigo sobre o traffic shaping e que tenha aprendido o que é e como funciona essa prática desonesta empregada secretamente por muitas operadoras no mundo inteiro. Infelizmente, identificar um filtro de traffic shaping em nossa rede com precisão é uma tarefa quase impossível, devido à enorme quantidade de variáveis que podem ter efeito similar nas nossas conexões..

Graças ao Marco Civil da Internet agora é possível denunciar essa pratica abusiva, mas provar sua existência continua sendo uma tarefa árdua.

Aconselhamos que o maior número de pessoas possível faça os testes pela plataforma Glasnost do M-Lab para assim além de poder verificar a própria conexão, ajudar a aumentar o volume de testes e fazer do mapa da neutralidade da rede uma ferramenta com dados mais confiáveis.