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Fonte: Nexo
[28/02/16]
Lobby 2.0 e o futuro do acesso à Internet na Índia, e no Brasil - por Luca
Belli e Luiz Fernando Moncau*
*Luca Belli é Doutor em Direito
Público pela Universidade Paris 2. Pesquisador no Centro de Tecnologia e
Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. Foi Especialista de
Neutralidade da Rede pelo Conselho da Europa e é autor do livro "Net Neutrality
Compendium"
Luiz Fernando Moncau é Gestor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV
DIREITO RIO
A Índia protagonizou um importante debate sobre o futuro do acesso à Internet.
Apesar da pressão, a autoridade indiana de telecomunicações afirmou a
neutralidade de rede
Um dos mais polêmicos debates no âmbito da governança da internet, referente à
neutralidade de rede, ganhou na Índia proporções inimagináveis, opondo a gigante
das redes sociais (Facebook) e defensores dos direitos digitais ao longo da
consulta organizada pela autoridade indiana de telecomunicações (TRAI). Decidido
no dia 08 de fevereiro em meio a muita polêmica, o debate possui consequências
notáveis para o futuro da internet.
Resumindo, o princípio de neutralidade da rede exige que as empresas que
oferecem acesso à internet tratem de maneira não discriminatória o tráfego que
passa por suas redes. Esse princípio desempenha um papel essencial a fim de
manter a internet uma plataforma aberta à inovação e à concorrência e garantir
os direitos fundamentais dos usuários, particularmente a liberdade de receber e
partilhar informações sem interferências. A neutralidade da rede não permite às
operadoras bloquear conteúdos, privilegiar aplicações dos seus parceiros ou
desfavorecer serviços concorrentes. Consagrado no Brasil pelo Marco Civil da
Internet, o princípio da neutralidade busca assegurar que a internet permaneça
aberta e não seja “fragmentada” pelos provedores de acesso.
A polêmica sobre a neutralidade de rede se exacerbou na Índia ao longo do último
ano, determinando a necessidade da intervenção regulatória da TRAI. No centro da
discórdia estava a compatibilidade do “acesso patrocinado” a aplicativos
específicos com o princípio da neutralidade da rede. O debate explodiu quando o
Facebook anunciou o programa “Internet.org” proclamando o objetivo de conectar
gratuitamente à internet milhões de usuários que ainda não têm acesso à rede.
Mas a conexão não era bem à internet, mas a uma seleção limitada de aplicativos
aprovados pelo Facebook (dentre os quais, o próprio Facebook) e, em seguida, a
todos os aplicativos que “atendessem certos requisitos técnicos” definidos pelo
Facebook. A iniciativa, hoje denominada “Free Basics” para esclarecer que não se
trata de conexão à internet, mas apenas a serviços considerados “básicos” (pelo
Facebook) criou as condições para um feroz confronto entre os defensores da
neutralidade e os adeptos da proposta de Mark Zuckerberg.
A disputa indiana atingiu seu clímax no último dia 08, quando a TRAI decidiu
sobre o tema, após meses de batalha midiática online e offline.
Conhecido também como zero rating, o acesso patrocinado consiste em uma
discriminação de preços para serviços diferentes, permitindo que um provedor de
aplicações (uma rede social, por exemplo) ou uma operadora patrocine o acesso do
usuário a sites/aplicativos específicos. Oferecendo acesso limitado a alguns
serviços ou isentando aplicativos específicos de tarifas ou do consumo da
franquia de dados, os patrocinadores buscam conseguir novos usuários ou orientar
os usuários existentes para os aplicativos patrocinados, ganhando sua atenção (e
dados pessoais), os recursos mais valiosos na chamada eyeball economy.
Quando o zero rating é implementado bloqueando serviços não patrocinados,
claramente fere a neutralidade de rede. A consulta indiana visou esclarecer,
entre outras coisas, se discriminação de preço (serviços isentos de tarifa
convivendo com serviços pagos) seria compatível com a neutralidade, ou seja, com
um tratamento geral não discriminatório.
Os opositores do zero rating criaram a coalizão www.Savetheinternet.in,
afirmando que a discriminação de preço viola a neutralidade da rede. Denunciaram
nas ações da empresa uma tentativa de colonização digital, definindo quais
informações poderiam ser recebidas pelos usuários e ofertando um conjunto
limitado de serviços a fim de consolidar sua dominância, excluindo competidores
locais cujos serviços seriam, de fato, taxados. Os defensores do acesso
patrocinado, capitaneados pelo Facebook, argumentaram que a prática permitiria
expandir o acesso à internet, mesmo que somente por meio de serviços “básicos”.
Asseguraram que a discriminação de preço seria somente um modelo de negócio que
incrementaria a escolha dos consumidores e reduziria a exclusão digital.
Foi neste contexto beligerante que a TRAI decidiu por proibir o zero rating,
levando à interrupção do programa Free Basics na Índia. A escolha seguiu
raciocínio simples: “o patrocínio de aplicativos pode tornar-se arriscado no
médio e longo prazo, porque a liberdade de conhecimento e de opinião dos
usuários com acesso patrocinado seriam formados apenas pelas informações
disponibilizadas pelos aplicativos selecionados pelos patrocinadores”.
Conhecido também como zero rating, o acesso patrocinado consiste em uma
discriminação de preços para serviços diferentes, permitindo que um provedor de
aplicações (uma rede social, por exemplo) ou uma operadora patrocine o acesso do
usuário a sites/aplicativos específicos
A resposta do regulador indiano foi firme e audaciosa. O governo de um país onde
a penetração da Internet é de somente 20% poderia facilmente ceder à tentação de
“serviços básicos” para todos, ainda que a decisão de quais seriam estes
serviços fosse feita por entidades cujo objetivo principal é – naturalmente – a
maximização do interesse privado.
Mas o debate indiano foi especialmente instrutivo pela conduta do Facebook. A
inovação que impressionou na estratégia da empresa foi a postura ativista de
mobilização dos seus usuários. Nesse sentido, a rede social desenvolveu uma
funcionalidade para incentivar os seus usuários indianos a defender o Free
Basics, enviando informações de propaganda em suporte do zero rating e
encorajando-os a pressionar a TRAI. Mimetizando o comportamento de outras
empresas de internet que conclamam seus usuários a defender seus serviços (como
o Uber, por exemplo), a empresa quis mostrar que sua proposta encontrava eco na
vontade dos cidadãos.
O resultado da tentativa pode ser visto como um grande erro estratégico. Nenhum
outro sujeito ou entidade interessada na consulta podia dispor de tal mecanismo
de influência no processo decisório da agência, dando evidente vantagem ao
Facebook. Qual exemplo seria melhor do que este para ilustrar os potenciais
riscos para a liberdade de opinião e de captura de processos de participação
devidos ao tratamento discriminatório da informação?
O embate de visões na Índia evidencia a necessidade de que os governos nacionais
considerem as diferentes opções de expansão do acesso à internet – não somente
no curto prazo – e alimentará o debate latino-americano e brasileiro, atualmente
em fase de consulta sobre a regulamentação do Marco Civil da Internet. O
Facebook revelará sua face ativista e mobilizadora dos consumidores na campanha
pelo “Free Basics” também no Brasil?
O caso indiano é mais um exemplo da relação indissolúvel entre politicas
digitais e políticas econômicas que cada Estado é chamado a compreender a fim de
ser o verdadeiro protagonista do seu desenvolvimento. Que política, afinal, o
Brasil vai querer?