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Fonte: Metropoles
[29/05/16]
Quais os limites do direito ao esquecimento? - por Flávia Guth
Quantos de nós se lembram da triste ocorrência da Chacina da Candelária? E
quantos de nós lembramos do caso de Aída Curi? E o que esses dois casos têm a
ver com o direito ao esquecimento? Aliás, o que significa o direito ao
esquecimento? De início é importante dizer que o direito ao esquecimento se
apresenta no sentido oposto ao direito amplo e praticamente irrestrito a toda e
qualquer informação disponível em alguma fonte, especialmente quando temos
poderosas ferramentas de pesquisa na rede mundial de computadores.
O direito ao esquecimento encontra sua conformidade na dignidade da pessoa
humana, mais especificamente nas dimensões da proteção da vida privada, da
honra, da imagem e do nome. Trata-se, portanto, do direito de ser esquecido
mediante a restrição ou limitação do acesso as informações que dizem respeito a
determinados fatos relacionados a um indivíduo. Em outras palavras, as pessoas
têm o direito de ser esquecidas pela opinião pública e pela imprensa.
Pode parecer uma contradição com o que já tratamos aqui na coluna sobre
liberdade de expressão e direito à informação, mas não é e explico. No Direito
brasileiro, a única norma que trabalha um aspecto do assim chamado direito ao
esquecimento, encontra-se no artigo 7º, X, da Lei do Marco Civil da Internet:
Art. 7º – O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário
são assegurados os seguintes direitos:
X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada
aplicação da internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as
partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstos
nesta lei.
Muito embora não haja nada além dessas abrangentes expressões contidas no Marco
Civil da Internet, o direito ao esquecimento é direito fundamental e encontra
sua conformidade não apenas na lei, mas também e principalmente na Constituição
Federal, devendo receber proteção nesse sentido e em suas mais diversas
dimensões.
O Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de julgar, em duas
oportunidades, casos que versavam sobre o direito ao esquecimento. No primeiro
deles, a 4ª turma do STJ reconheceu o direito ao esquecimento para um homem
inocentado da acusação de envolvimento na Chacina da Candelária, que anos depois
de absolvido foi retratado pelo programa Linha Direta, da TV Globo. No recurso,
o homem sustentou que recusou pedido de entrevista feito pela TV Globo, mas
mesmo assim o programa o citou como um dos envolvidos na chacina, mesmo tendo
sido absolvido pela Justiça.
Ele ingressou na Justiça com pedido de indenização e argumentou que sua citação
no programa levou a público, em rede nacional, situação que já havia superado,
reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio social,
ferindo seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal. Alegou, ainda, que
foi obrigado a abandonar a comunidade para preservar sua segurança e a de seus
familiares.
Ao analisar a ação, a 4ª turma entendeu que o réu condenado ou absolvido pela
prática de um crime tem o direito de ser esquecido, pois se os condenados que já
cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes e à exclusão dos
registros da condenação no instituto de identificação, por maiores e melhores
razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma,
conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos. O Superior Tribunal
de Justiça concluiu, ainda, que a ocultação do nome e da fisionomia do autor da
ação não afeta a liberdade de imprensa. A sentença, então, foi mantida e a
emissora condenada a pagar R$ 50 mil de indenização.
O segundo caso refere-se à história do assassinato da Aída Curi, estudante de 18
anos morta após ser atirada de um prédio no Rio de Janeiro. O caso desse crime
foi apresentado no programa Linha Direta com a divulgação do nome da vítima e de
fotos reais, o que, segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo
sofrimento que o envolve.
A TV Globo foi acionada judicialmente pelos irmãos da vítima pretendendo a
condenação da emissora por danos morais, materiais e à imagem. Por maioria de
votos, o STJ entendeu que, nesse caso, o crime era indissociável do nome da
vítima, não sendo possível que a emissora retratasse o caso omitindo o nome da
estudante.
Em sua defesa, a TV Globo afirmou que a reportagem limitou-se a reproduzir
imagens originais de Aída uma única vez, usando de dramatizações ao longo do
episódio e que o foco da reportagem foi no crime e não na vítima. O STJ
entendeu, nesse contexto, que a divulgação da foto da vítima, mesmo sem
consentimento da família, não configurou abalo moral indenizável.
Mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe de volta antigos sentimentos de
angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás, a
turma entendeu que o tempo, que se encarregou de tirar o caso da memória do
povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade
dos familiares.
Fundamentalmente, o direito ao esquecimento tem sido abordado na defesa dos
cidadãos diante de invasões de privacidade pelas mídias sociais, blogs,
provedores de conteúdo ou buscadores de informações. O instituto tem se
fortalecido em razão da facilidade e velocidade de circulação e de manutenção de
informação pela rede mundial de computadores, capaz de hiperbolizar boatos,
fatos e notícias a qualquer momento, mesmo que decorrido muito tempo desde os
atos que lhes deram origem.
O direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos
passados ou reescrever a própria história. Não será qualquer informação negativa
a um indivíduo que será definitivamente eliminada ou sofrerá restrições de
acesso no mundo virtual.
Será preciso que o magistrado, orientado pela ponderação entre os valores
envolvidos, de modo razoável e proporcional, entre a proteção do direito à
intimidade e imagem de um lado, e as regras constitucionais de vedação à censura
e da garantia à livre manifestação do pensamento, bem como à liberdade de
imprensa.
Ao julgar o recurso, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, assim como os
condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em
processo-crime, as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao
esquecimento – se assim desejarem -, direito esse consistente em não se
submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por
si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana
solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua
ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos, permitindo que os canais de
informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas
pelas quais passaram.
Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do ofensor – condenado e
já penalizado – deve ser ponderado pela questão da historicidade do fato
narrado, assim também o direito dos ofendidos deve observar esse mesmo
parâmetro. Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por torpeza do
destino – frequentemente se torna elemento indissociável do delito,
circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime
caso se pretenda omitir a figura do ofendido.
O que se pretende com o direito ao esquecimento, portanto, não é a restrição às
informações de forma absoluta e desarrazoada. Ao revés, o que está em controle é
a exacerbada exploração midiática e abusiva do sofrimento alheio, que deve ser
efetivamente reprimida não apenas pelo Poder Judiciário, mas também pela
sociedade.