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Fonte: Conjur
[02/09/16]
STJ relativiza artigo do Marco Civil da Internet em decisão - por Marcelo
Frullani Lopes
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) trouxe uma inovação quanto à
responsabilidade civil de provedores em relação a conteúdos postados por
terceiros. Se, antes de sua entrada em vigor, a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça vinha se consolidando no sentido de que o provedor seria
responsabilizado solidariamente caso descumprisse mera notificação extrajudicial
que requeresse a retirada do conteúdo, a nova lei foi por outro caminho,
estabelecendo em seu artigo 19 que essa responsabilidade surgiria apenas com o
descumprimento de ordem judicial específica determinando a retirada do conteúdo.
Em decisão recente, proferida no Recurso Especial 1.352.053-AL[1], o STJ
relativizou a aplicação desse dispositivo. Trata-se de um processo em que se
discutiu a responsabilidade de um portal de notícias quanto aos comentários
postados por usuários em suas matérias. De acordo com o entendimento do ministro
relator Paulo de Tarso Sanseverino, que foi seguido pelos demais integrantes da
3ª Turma do tribunal, os portais de notícias possuem responsabilidade objetiva
(ou seja, independentemente de culpa) quanto aos danos causados às vítimas das
ofensas, caso a empresa jornalística seja uma “fornecedora” no sentido
estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
Isso significa que foi atribuída aos portais informativos a responsabilidade de
fazer um “controle editorial” sobre todos os comentários feitos por usuários,
impedindo previamente que ofensas sejam publicadas. Para chegar a esse
entendimento, o ministro se baseou em classificação de provedores apresentada
pela ministra Nancy Andrighi em outro julgado (Recurso Especial
1.381.610/RS[2]), diferenciando-os de acordo com a função de cada um deles:
“(i) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz
de processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela
conectividade da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que
repassam aos usuários finais acesso à rede;
(ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores backbone
e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes conexão com a Internet;
(iii) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros,
conferindo-lhes acesso remoto;
(iv) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na
Internet e
(v) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede as informações criadas ou
desenvolvidas pelos provedores de informação”.
O ministro reconhece que a empresa jornalística poderia ser enquadrada, em tese,
na classificação de provedora de informação, quanto às matérias jornalísticas
publicadas no site, e provedora de conteúdo, em relação aos comentários postados
pelos usuários. Além disso, constata que, em regra, o STJ entende que o
responsável pelo conteúdo postado pelo usuário deve ser de quem “fixa” a
mensagem. Isto é, se o usuário puder postá-la sem filtragem prévia, apenas ele
deve ser responsabilizado; se houver controle editorial dos comentários por
parte do provedor, este deve ser responsabilizado.
No entanto, mesmo declarando que, no caso em discussão, as mensagens foram
postadas diretamente pelos usuários, o ministro entendeu que as circunstâncias
deveriam levar à responsabilização do provedor. Isso porque se trata de um
portal de notícias, diferentemente dos casos anteriores julgados pelo STJ, em
que normalmente se discutia a responsabilidade de empresas de informática, como
Google e Microsoft. Assim, o julgador entendeu que o controle do potencial
ofensivo dos comentários deveria ter sido feito previamente à publicação, por se
tratar de atividade inerente ao objeto da empresa.
A decisão merece críticas, mas antes disso devem ser destacados alguns pontos.
Como o próprio ministro explica em seu voto, os fatos discutidos ocorreram antes
da entrada em vigor do Marco Civil. Portanto, não será discutido o acerto da
decisão do STJ em relação a esse caso específico. Mas, além do aspecto temporal,
o ministro disse que o Marco Civil não se aplicaria a um caso desse tipo por
“não se tratar da responsabilidade dos provedores de conteúdo”. Ou seja, segundo
ele, o mesmo entendimento poderia ser aplicado ainda que o Marco Civil
incidisse.
Trata-se de um entendimento equivocado. De fato, a lei de 2014 não abrange todas
as definições de provedor apresentadas pela ministra Nancy Andrighi. O conceito
de provedor de informação dificilmente poderia ser enquadrado em “aplicações de
internet”, que recebe o seguinte conceito no artigo 5°, inciso VII, da lei: “o
conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal
conectado à internet”.
Ao abrir espaço para comentários de usuários, porém, o portal não atua como um
provedor de informação, e sim como provedor de conteúdo, conforme a
classificação apresentada pela ministra. Ou seja, se sua função principal
corresponde a informar, ao abrir espaço para comentários, o portal se torna
também um provedor de conteúdo. E um provedor de conteúdo, nesse caso, pode ser
claramente enquadrado na definição “provedor de aplicações”, devendo-se aplicar
o artigo 19 do Marco Civil.
Pelo que se infere de seu voto, o ministro entende que a empresa jornalística,
ao atuar como fornecedora no mercado de consumo, adquire o dever de analisar
previamente todos os comentários postados por terceiros. Em outras palavras, o
portal de notícias seria caracterizado apenas como portal informativo, não como
portal de conteúdo, mesmo em relação aos comentários gerados por terceiros,
porque constitui dever da empresa fazer um controle prévio antes de publicá-los.
Se não faz esse controle, haveria o descumprimento de um dever por parte do
fornecedor, o que levaria à sua responsabilização por omissão caso esse conteúdo
seja ofensivo[3]. Haveria, portanto, uma exceção em relação à regra geral citada
acima, que prevê a possibilidade de um mesmo provedor ser informativo de uma
parte e provedor de conteúdo de outra.
O ministro invoca em sua decisão o artigo 14, parágrafo 1°, do Código de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/90) e o artigo 927 do Código Civil para defender a
responsabilidade objetiva dos portais de notícias. No entanto, o artigo 19 do
Marco Civil é norma especial, voltada especificamente para disciplinar a questão
da responsabilidade civil dos provedores de aplicações por conteúdo postado por
terceiros, devendo ser efetivada mesmo em meio a relações de consumo. O Direito
brasileiro acolhe o entendimento de que a lei especial deve ser aplicada no
lugar da geral. Sendo assim, a responsabilidade civil do provedor surge apenas a
partir do descumprimento de ordem judicial específica determinando a retirada do
conteúdo. Não há ressalvas quanto a empresas jornalísticas.
O artigo 19 do Marco Civil deve ser aplicado aos portais de notícias para fatos
que tenham ocorrido posteriormente à sua entrada em vigor, não havendo obrigação
de controlar previamente o conteúdo postado por usuários em seção de
comentários. A ausência desse controle prévio não caracteriza falha no serviço
prestado. O portal de notícias que possibilita aos usuários a postagem de
comentários deve ser considerado um provedor tanto informativo quanto de
conteúdo, e não apenas informativo. Por isso, a responsabilidade por conteúdo
gerado por terceiros deve incidir apenas se houver descumprimento de ordem
judicial. Deve-se ressaltar, porém, que, caso o provedor opte por fazer o
controle editorial prévio dessas postagens, selecionando quais comentários serão
postados, passa a ser responsável solidário em relação a eventuais ofensas
cometidas pelos usuários. Isso porque deixa de haver, nesse caso, meramente
“conteúdo gerado por terceiros”, pois o provedor seleciona e edita as mensagens
antes de publicá-las, tornando-se solidariamente responsável por eventuais danos
causados.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.352.053-AL.
Recorrente: Pajucara Editora, Internet e Eventos Ltda. Recorrido: Orlando
Monteiro Cavalcanti Manso. Relator: ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Brasília, 24 de março de 2015.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.381.610-RS.
Recorrente: Paulo Henrique dos Santos Amorim. Recorrido: Lasier Costa Martins.
Relatora: ministra Nancy Andrighi. Brasília, 3 de setembro de 2013.
[3] Nas palavras do relator, “o ponto nodal não é apenas a efetiva existência de
controle editorial, mas a viabilidade de ele ser exercido”.