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Fonte: Estadão
[18/09/16]
Hoje tramitam dezenas de projetos que visam a mudar o Marco Civil da Internet
- por Demi Getschko
No caminho para Ilhéus, na Bahia, notei o mesmo que em muitos outros lugares:
qualquer bodega despretensiosa anuncia Wi-Fi aberto. E isso é muito bom para
nós. Em 2009, dois anos após o caso Cicarelli, que gerou um primeiro bloqueio a
uma aplicação, o Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou um decálogo cujo
objetivo básico era arrolar e defender conceitos fundamentais da Internet livre
e aberta. Foram quase dois anos de discussão, dentro de um comitê multissetorial,
com representantes de todas as áreas, de governo ao terceiro setor, até se
lograr consenso.
À época prosperava a discussão sobre que legislação seria adequada para a rede,
esse mundo ainda novo. Vimos prevalecer a sensatez. Ao invés de uma lei punitiva
optou-se por legislação principiológica, de balizamento de direitos e deveres: o
Marco Civil da Internet no Brasil. A lei n.° 12.965/14 foi sancionada em 2014,
após anos de debates públicos. Ela inauguraria uma instigante forma da
comunidade discutir abertamente projetos de lei e foi saudada internacionalmente
como a mais moderna legislação a tratar da rede.
Tudo parecia bem, mas – e é aí que a porca torce o rabo – há sempre aquelas
“boas intenções”, das que abundam no reino do Tentador. Hoje tramitam dezenas de
projetos que visam a modificar o Marco Civil, alguns de forma sutil, outros
expressamente. Há, por exemplo, uns que pretendem redefinir conceitos da rede,
outros propõem exceções ou adições que descaracterizariam seu ânimo original. Há
os que propõem, por exemplo, que para usar o Wi-Fi num restaurante tenhamos que
preencher um cadastro! Voltando ao caso de Ilhéus, imagine-se ter que preencher
uma ficha de cadastro com nossos dados pessoais completos, CPF, endereço etc.
Estaria o Brasil no caminho da “inovação retrógrada”?
Lembrei-me da Revolução dos Bichos, de Orwell. Lá, após a reunião dos animais em
prol de seus interesses e coordenados por porco velho, o Major, a comunidade
estabeleceu um conjunto de sete regras a ser seguido por todos e para o bem
geral. Entre as regras estavam: os animais não dormirão em camas, nem beberão
álcool, nem matarão outros animais. Em resumo, os animais serão todos iguais
entre si.
Claro que o consenso e os princípios iniciais foram sendo desvirtuados pelos que
tiveram mais condições e poder. Na alegoria de Orwell, em pouco tempo outro
porco, o jovem Napoleão, passa a liderar a comunidade e instala-se com seus
apaniguados na casa dos humanos. Adota o calor e o conforto da cama, o gosto
pelo uísque e a embriaguez do poder. Inconspicuamente as regras mudam. Primeiro
pequenas adições: os animais não dormirão em camas “com lençóis”, não beberão
álcool “em excesso”.
Depois mudanças mais radicais: os animais não matarão outros animais “sem
motivo”, para finalmente chegar a rever o próprio princípio fundamental daquela
comunidade: “os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais que
outros”. E o final óbvio foi a diluição dos bons propósitos, o desmantelamento
da comunidade e sua dispersão no ambiente vizinho hostil. Cuidemos do nosso
Marco Civil da forma em que foi definido pela contribuição aberta de todos e o
defendamos de ideias que o levariam ao Capiroto. Arreda!