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Fonte: Fazendo Média
[26/02/06]  
Rádio Digital: Democratização ou "cala boca tecnológico"? - por Bruno Zornitta e Raquel Junia

Sem debate, governo impõe padrão estadunidense (Iboc) e atinge duramente as rádios livres

A maneira como está sendo conduzido o processo de digitalização do rádio no Brasil aponta para um possível "cala-boca tecnológico" das rádios livres e comunitárias. Esse foi o alerta dos movimentos sociais na Audiência Pública sobre rádio digital, realizada na última quarta-feira, dia 22, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Os movimentos receiam que os testes que têm sido realizados com o padrão de rádio digital estadunidense Iboc (In-Band-On-Channel) façam parte de uma estratégia para tornar sua implantação no país um "fato consumado". A preocupação deve-se ao fato de que o Iboc reduz a capacidade de democratização do espectro de radiodifusão, dificultando o surgimento de novas emissoras.
 
Até o momento, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) concedeu 12 autorizações de testes com rádios digitais, 11 dos quais com o padrão Iboc. A única autorização de testes com o sistema Digital Radio Mondiale (DRM) foi publicada no Diário Oficial no último dia 17. As autorizações vêm sendo expedidas desde setembro de 2005. "Algumas emissoras de rádio - a título de estarem testando o sistema e com o apoio do Ministério das Comunicações - compraram equipamentos do sistema de rádio digital Iboc, dos Estados Unidos. Elas ficaram isentas da taxa de licenciamento da IBiquity Digital Corporation, empresa responsável pelo sistema Iboc. As demais, que não participaram deste processo, não terão este privilégio ao adotar o sistema posteriormente", denuncia o manifesto aprovado na audiência. O DRM e o Iboc são os dois sistemas aprovados pela União Internacional de Telecomunicações (UIT).
 
Movimentos pressionam
A audiência reuniu cerca de 100 pessoas, dentre jornalistas, estudantes, representantes de rádios e TVs comunitárias, sindicatos e entidades do terceiro setor. O deputado Carlos Minc, presidente da audiência, abriu a discussão e chamou ao microfone Cláudia de Abreu, representante do grupo ComunicAtivistas. Cláudia disse que as emissoras comerciais querem a adoção do Iboc porque temem a distribuição de novas concessões de rádio. "O Estado tem obrigação de dar a melhor utilização possível ao espectro de radiodifusão, que é público", afirmou a jornalista.
 
Mário Augusto Jakobskind, membro da Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e colunista deste fazendomedia.com, questionou a pressa na escolha dos padrões de rádio e TV digitais a serem adotados no país. Ele ressaltou o caráter político da questão, que é muitas vezes tratada como meramente técnica, e destacou a importância da participação da sociedade. "Estamos diante de uma encruzilhada. É preciso que haja mobilização popular em torno deste tema", disse.
 
Antes da intervenção do secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Joanilson Ferreira, outros representantes da sociedade civil organizada foram ouvidos. Tião Santos (Rede Brasil de Comunicação), Geraldo Pereira (Conselho de Comunicação Social) e Marcos Araújo (diretor de Comunicação do MST) reivindicaram que o governo chame a sociedade para o debate sobre a digitalização do rádio para que se possa desenvolver uma solução democrática para o país.
 
Os participantes propuseram alternativas durante o encontro
 
Com a palavra, o MiniCom
"Essa é a minha décima reunião com movimentos pela democratização da comunicação e destaca-se pela participação popular", impressionou-se o representante do Ministério das Comunicações. Joanílson tratou de jogar a batata quente no colo da Anatel. Ele disse que a realização de testes com rádio digital é responsabilidade da Agência. O secretário também livrou a barra do MiniCom quando o assunto foi a repressão às rádios comunitárias: "Rádio não outorgada não é problema do Ministério, mas da Anatel", afirmou.
 
Joanílson disse que o MiniCom precisa agir dentro do marco legal e a lei não é boa. "Os problemas precisam ser resolvidos com uma nova Lei Geral, pois a atual é de 1962", justificou. Para o secretário, outro grande problema é a quantidade de processos relativos à radiodifusão comunitária sob avaliação do Ministério. Segundo ele, são cerca de 10 mil processos para serem apreciados por apenas 13 analistas.
 
O representante do Ministério das Comunicações garantiu, no entanto, que nenhuma decisão sobre o padrão de rádio digital a ser adotado será tomada em menos de um ano. Questionado pelo professor da Universidade Federal Fluminense Adilson Cabral, coordenador do boletim "Sete Pontos", sobre a viabilidade de um Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD), Joanílson disse que o MiniCom está aberto a propostas. Ele recomendou que a sociedade civil encaminhasse um documento nesse sentido ao Ministério. Após a recomendação, os participantes da audiência entregaram ao representante do MiniCom um manifesto redigido pelos ComunicAtivistas e assinado por mais de 30 entidades que menciona o SBRD dentre outras reivindicações. Além disso, Joanílson disse que, de acordo com a demanda, o MiniCom poderá dar isenção de impostos para testes com DRM ou outro modelo.
 
Mito desfeito
Para surpresa dos presentes, Joanílson disse que o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre rádios comunitárias atestou serem as rádios comerciais as verdadeiras responsáveis pela interferência causada na comunicação com aviões e helicópteros em São Paulo. Segundo o secretário, essas rádios transmitem em até 200% acima da potência permitida, extrapolando os limites do dial.
 
Por muito tempo, o argumento da interferência em serviços essenciais de radiodifusão foi utilizado para criminalizar as rádios comunitárias. Notícia veiculada na página da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) sob o título "Denuncie a radiodifusão ilegal" emprega esse argumento contra as rádios de baixa potência: "Por transmitirem na freqüência que bem entendem, essas emissoras interferem não apenas no sinal das rádios e televisões comerciais, mas também em serviços essenciais, como a comunicação aeronáutica e a comunicação entre viaturas da polícia, ambulâncias e corpo de bombeiros", diz o texto.
 
Apoio do Ministério Público
Na segunda rodada de intervenções, o jornalista e professor Marcos Dantas, ex-Subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério das Comunicações no governo Lula, fez duras críticas ao processo de digitalização do rádio e da TV. Segundo ele, as decisões são políticas. Dantas afirmou que, na época em que o país decidia entre as faixas VHF e o UHF para transmissão da televisão aberta, o UHF foi boicotado por permitir maior democratização do espectro. "O VHF foi imposto pelos atores sociais que quiseram o oligopólio", disse.
 
O Subprocurador Geral de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual do Rio, Leonardo Chaves, solidarizou-se com os movimentos sociais. Ele se comprometeu a ajudar no caso e orientou os movimentos a procurarem também o Ministério Público Federal. A assessoria do deputado Carlos Minc distribuiu cópias dos projetos referentes à radiodifusão comunitária nos quais seu gabinete está trabalhando. Um deles cria a Frente Parlamentar em Defesa das Rádios Comunitárias (Projeto de Resolução Nº 1200/2005).
 
Bloco do improviso
Após a audiência, alguns participantes realizaram uma manifestação na Praça XV para alertar a população sobre a questão política envolvida na digitalização do rádio e da TV no Brasil. Alguns problemas técnicos quase frustraram a mobilização. O Bloco dos Seqüelados não pôde comparecer e o compositor Darcy da Mangueira (co-autor e "puxador" da música feita para o ato) teve que ir embora antes do início da manifestação, que atrasou em uma hora. Mesmo assim, os ativistas improvisaram.
 
Ao som da marcha "Tire o Dedo do Meu Digital" e da batucada promovida pela juventude do PAN (Partido dos Aposentados da Nação), os manifestantes estenderam faixas e distribuíram panfletos informativos às pessoas que passavam no local. "Radio e TV digital: nada de escolher padrão sem debate com a população", dizia a faixa carregada pelos estudantes da Universidade Federal Fluminense. A mobilização, assim como a Audiência Pública, foram filmadas por membros da ABD&C (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas). A TV Alerj também registrou a audiência.
 
Manifesto em defesa da participação da sociedade na implantação do rádio digital no Brasil
 
O processo de implantação da tv digital em nosso país teve início em novembro de 2003, com o decreto da Presidência de República que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital. Recentemente a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão de São Paulo instaurou procedimentos para garantir o acompanhamento da discussão por parte da sociedade civil. O objetivo é garantir a inclusão digital prevista no decreto do governo.
 
O espectro eletromagnético é ocupado através de concessões públicas. Como tal, não pode ser de propriedade de quem quer que seja, apenas administrado, ainda que para fins comerciais. É inadmissível que o processo de digitalização do rádio possa estar sendo realizado sem qualquer tipo de participação da sociedade. Não há proposta oficial do governo.
 
Algumas emissoras de rádio - a título de estarem testando o sistema e com o apoio do Ministério das Comunicações - compraram equipamentos do sistema de rádio digital IBOC, dos Estados Unidos. Elas ficaram isentas da taxa de licenciamento da IBiquity, empresa responsável pelo sistema Iboc. As demais, que não participaram deste processo, não terão este privilégio ao adotar o sistema posteriormente.
 
Segundo especialistas do setor, o sinal digital no Iboc é transmitido no canal adjacente e gera sérias interferências, ainda não totalmente estudadas. Ao ocupar os canais adjacentes aumenta a largura do canal ocupado por uma estação, reduzindo-se a possibilidade de aumento do espectro eletromagnético, o que seria viável pela tecnologia digital. Ou seja, uma das possibilidades mais revolucionárias no sistema digital, que é a de incorporar novos atores à radiodifusão, é prejudicada por este sistema.
 
Estes e outros pontos precisam ser discutidos por toda a sociedade. Não há motivos para uma decisão apressada que poderá trazer sérias conseqüências no futuro. Queremos a participação da sociedade brasileira no processo de decisão sobre o novo sistema de rádio digital. É necessária a criação de um Sistema Brasileiro de Rádio Digital, que garanta uma decisão democrática.