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Fonte: Correio da Cidadania
[12/07/11]
Banda larga e o abandono do regime público - por Gabriel Brito
"Grande problema da expansão da banda larga é o abandono definitivo do regime
público"
Após alguns meses de discussões nos altos escalões das telecomunicações, o
governo federal anunciou no último dia 30 de junho como se dará seu Plano
Nacional de Banda Larga. Com vistas a promover uma inédita inclusão digital dos
brasileiros, aumentando a qualidade de conexão oferecida ao consumidor e
atingindo 70% da população até 2015, o governo trouxe a público o acordo selado
com as grandes teles do setor, que exercerão, dentro de suas leis de mercado, a
expansão.
Para analisar um dos mais estratégicos assuntos nacionais, o Correio da
Cidadania entrevistou Marcos Dantas, professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Sempre envolvido nos debates do
setor, inclusive com acesso a membros do governo, Dantas acredita que o grande
ponto falho no PNBL foi “o abandono definitivo do princípio de regime público”.
Isso porque ele ressalta que, tal como foi concebido, o plano prevê apenas
expansão, e não a universalização do acesso à internet rápida, exigência de
movimentos e militantes da democratização das comunicações. Para explicar as
razões de tal opção, ele lembra que na hora da negociação “o capital fala mais
alto”, de modo que somente o governo e seus representantes podem explicar por
que se abdicou do regime público para banda larga.
Dessa forma, Dantas faz um paralelo com outras políticas sociais, concluindo que
o plano nada mais é do que a repetição da filosofia de outros programas do
governo, “na linha de políticas compensatórias”. Ao saber que o povo desconhece
completamente as atuais possibilidades de progresso e seus direitos, afirma que
o governo se aproveita para fazer concessões limitadas, suficientes, no entanto,
para contentar o público – e no final das contas, o mercado.
A entrevista completa com Marcos Dantas pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O que pensa do acordo do governo federal com as teles para
expansão da banda larga, anunciado na última semana, que visa levar o acesso a
uma internet mais rápida a pelo menos 70% da população nos próximos 4 anos?
Marcos Dantas: Acho que o governo perdeu uma boa oportunidade de remontar,
reestruturar, uma política de comunicações a longo prazo, porque estava no meio
de uma negociação contratual e, dessa forma, tinha um leque de possibilidades,
sobretudo de colocar ou redefinir a natureza do regime público das
telecomunicações. E não fez isso.
Correio da Cidadania: E o que comentar a respeito do termo de compromisso
assinado com as teles, que na verdade serve mais é para desobrigá-las de atender
aos compromissos do plano, e o acordo fechado para o cumprimento do Plano Geral
de Metas e Universalização (PGMU) III?
Marcos Dantas: É aquilo... Qualquer coisa é melhor que nada. A política do
governo é expandir o acesso à comunicação de alta velocidade no país, o que não
se confunde com universalizar. Nesse sentido, o governo parte de um princípio de
que hoje a grande maioria da população tem um acesso muito precário à alta
velocidade, ou simplesmente tem acesso à internet em baixa velocidade.
Portanto, passar de um patamar de baixa velocidade para um de alta, mesmo que
limitada a 1 Mbps (megabit por segundo), já é um avanço. Esse é o argumento do
governo. E penso que é um argumento que se confunde com a expansão do celular,
ao qual toda a população tem acesso, mas é o famoso ‘pai de santo’, pois só
atende chamada. O pessoal do movimento negro não gosta dessa expressão, porém,
ela é absolutamente popular. Tem-se o celular, mas só se usa pela metade. E isso
é melhor que nada.
Entretanto, não deixa de ser uma forma de restrição, de apartação, uma maneira
de aceitar as disparidades do país. E a rigor nada é feito contra isso, até
porque seria preciso mudar o próprio conceito, passando as telecomunicações do
regime privado para um conceito de regime público, com as obrigações de regime
público nos termos da lei.
Correio da Cidadania: Esse foi o único grande problema do acordo em sua opinião?
Marcos Dantas: Sim, foi o grande problema.
Correio da Cidadania: E por que o governo perdeu essa chance de estabelecer o
regime público no acesso à banda larga?
Marcos Dantas: Aí só perguntando para o governo...
Correio da Cidadania: Como analisa o espaço oferecido à sociedade para
participar dessas discussões, levando-se em conta os recentes movimentos de
reivindicação por democratização das comunicações, entre outras coisas?
Marcos Dantas: Vamos começar anotando que no atual governo Dilma está havendo
mais diálogo com a sociedade. Temos que reconhecer isso, e sou testemunha. Coisa
que não havia no governo Lula no Ministério das Comunicações (MiniCom). Nesse
período, não houve nenhum diálogo com a sociedade não empresarial, somente com
os empresários e ninguém mais. Já nos sete meses de governo Dilma já houve
vários encontros em Brasília com representantes da classe não empresarial. O
governo escutou mais de uma vez quais são as reivindicações e inclusive acena
com a possibilidade de construção de uma mesa de diálogo na Secretaria Geral da
Presidência da República. Esses são fatos positivos.
No entanto, o concreto é que na hora da negociação objetiva fala mais alto o
peso do capital. Isso, evidentemente, tem a ver com a realidade
político-econômica brasileira, mesmo que não gostemos dela. Voltando ao exemplo
do celular, ainda que o cara tenha o aparelho pela metade, ele fica satisfeito.
O conjunto da população tem um nível político tão baixo que não percebe esses
problemas todos. Fala “ótimo, consegui isso, melhor que nada”. O nível de
carência é tal que o mínimo já é capaz de gerar uma grande satisfação. O cara
tem uma internet de 56k e passa a ter 1 mega e acha fantástico! E quem está na
política pragmática, direta, tendo que gerenciar todos esses aspectos, acaba
achando que está promovendo uma grande realização.
É mais uma política compensatória. Na mesma linha das políticas compensatórias
postas em práticas nos últimos oito, nove anos. Eu diria que é uma solução
absolutamente coerente com tudo que foi a política do governo nesses anos. Com
um detalhe, nesse caso interessante: ao contrário de outras políticas
compensatórias, nas quais os atores envolvidos, beneficiados, costumam bater
palmas, nas comunicações está ocorrendo uma interessante unidade de todos os
envolvidos – do ponto de vista da sociedade civil não empresarial – em torno do
regime público. Como todos compraram o discurso da defesa, da manutenção, do
fortalecimento do regime público, há uma unidade crítica ao governo, que não
consegue o apoio a esse projeto em tal campo da sociedade, como tinha conseguido
em outros projetos, como o Bolsa-família, o Prouni etc.
Correio da Cidadania: A advogada Flávia Lefèvre, da Associação de Defesa do
Consumidor, Proteste, considera o PGMU (Plano Geral de Metas e Universalização)
III o símbolo do sepultamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Ao invés
de diminuir as tarifas da telefonia e expandir os orelhões e infraestrutura na
área rural, a resolução aprovada pelo Palácio abre brechas para utilizar
recursos públicos no serviço privado da banda larga. Você concorda com essa
afirmação?
Marcos Dantas: Não. Não concordo com essa afirmação porque eu diria que esse
plano, na verdade, é um aperfeiçoamento do Plano Nacional de Banda Larga
conforme ele já estava sendo anteriormente formulado. Na minha avaliação inicial
já tinha críticas à formulação original. Creio que a filosofia básica do plano,
que como falei é de política compensatória, já estava na formulação original do
governo Lula, e agora fica mantida.
Na verdade, com aquela história de Telebrás o governo Lula colocou o bode na
sala. E a Dilma tirou, fazendo as teles assumirem um conjunto de compromissos
que num primeiro momento elas não estavam predispostas. Fizeram as teles se
mexer, é preciso ressaltar isso. Num primeiro momento, elas estavam numa posição
muito cômoda, e depois tiveram de fazer uma proposta de massificação – que não
se confunde com universalização. Elas fizeram a proposta e o governo aceitou,
argumentando que ele, governo, tem os instrumentos e a disposição para
fiscalizar o cumprimento do compromisso. É isso que ficou posto. As teles
assumiram o compromisso e o governo vai tomar as medidas necessárias para que se
cumpra. E a verdade é que o plano era isso: botar o bode na sala e fazer as
teles se mexerem.
Desde o início, início mesmo, não podemos esquecer que havia um conflito dentro
do governo entre duas posições: uma achava que a Telebrás deveria ser uma
empresa reguladora de mercado; já a outra queria a Telebrás dentro do mercado,
disputando-o. A segunda posição foi derrotada. A Telebrás ficou como espada de
Dâmocles na cabeça das teles, mas quem executará os planos serão as teles.
Portanto, não há nenhuma mudança de filosofia. Por isso discordo do discurso da
Flavia e outros, um tanto quanto terrorista. Não vejo assim. Não houve mudança
de filosofia, apenas um arredondamento da proposta, dentro da mesma filosofia.
Eu já tinha tido a oportunidade de falar com Rogério Santana, o Cezar Alvarez,
dizendo que via problemas na proposta, que continuo vendo agora. E o grande
problema é: o abandono definitivo do princípio de regime público.
Correio da Cidadania: Dessa forma, você discorda bastante do papel que ficou
reservado a Telebrás?
Marcos Dantas: A rigor, o mais importante seria manter o princípio do regime
público. Eu não me sinto viúva da Telebrás.
Correio da Cidadania: Mas ela não tinha condições de protagonizar essa expansão,
até pelos seus milhares de quilômetros de cabos de fibra ótica?
Marcos Dantas: Acho que não. Particularmente, penso que não. Tem setores que
discordam de mim, mas pelo jeito que estão hoje as telecomunicações no Brasil e
no mundo uma empresa estatal não tem condições competitivas, tal como está o
mercado. Deixariam pra Telebrás o mesmo papel das escolas públicas do Brasil: o
de atender a pobreza. E quando você tem um serviço só para atender a pobreza,
atende pobremente, como a escola pública, a saúde pública, o transporte
coletivo... Quem tem renda continuaria usando as redes privadas, e quem não tem
usaria a rede meia-bomba. Como em todos os setores essenciais. É um fator muito
perverso. Desde o início manifestei esse tipo de posição.
A Telebrás inclusive não teria muita condição de obter receitas. Ninguém jamais
mostrou qual era o plano de viabilidade da Telebrás. Apenas o Santana falava que
tinha um plano e que em cinco anos ela estaria viável. Mas ninguém nunca viu
esse plano, pois ele efetivamente dependia de receitas do governo sobre fatores
em que nem sempre o governo tem total controle. O governo jamais teria controle
se, por exemplo, a justiça, o STF, fosse usar a rede da Telebrás para suas
comunicações. Ou a Petrobras. Não tem controle disso. Assim, só poderíamos ter
uma solução realmente pobre para pobres. E continuará assim, é verdade...
As duas únicas finalidades que poderiam existir na Telebrás – o que passaria por
um projeto estratégico, sempre em falta – seriam: se tornar uma grande intranet
do Estado, com a rede da Eletronet, com todas as comunicações relativas ao
Estado numa rede fechada. Do ponto de vista da segurança do Estado brasileiro,
isso seria excepcional. Ela poderia cumprir tal função. Não sei se tem alguém
pensando nisso.
Correio da Cidadania: Até porque falta compreensão do quão estratégico é o setor
das telecomunicações para qualquer país e aparato de governo.
Marcos Dantas: Exatamente. Assim, teríamos toda a comunicação do poder público,
e-mails entre ministros etc., dentro de uma rede fechada do Estado brasileiro.
Correio da Cidadania: Dificultaria a vida dos hackers, que tem conseguido
invadir essas comunicações governamentais...
Marcos Dantas: Isso mesmo. Dos hackers que a imprensa publica e dos outros
também, que não ficamos sabendo, mas existem... Aqueles do império... Sabem tudo
que se passa nas redes do governo. Esse seria um ponto.
O outro ponto que a Telebrás poderia cumprir seria o de se pensar num projeto de
expansão da banda larga parecido com o da Austrália. Tem-se uma infra-estrutura
pública estatal para todo mundo. A infra-estrutura, a estrada de rodagem, a
estrutura física seria uma só, do Estado, da melhor qualidade, em cima da qual
rodariam todas as empresas privadas. Seria uma hipótese e seria preciso colocar
todas as empresas privadas sobre essa estrutura, com iguais condições de
qualidade para todo mundo.
Mas aí se esbarra exatamente no projeto estratégico, pois se criaria outro
projeto e mudaria a estrutura do setor. Por outro lado, colocar a Telebrás pra
concorrer com empresa privada e concorrer nos grotões é algo em que não vejo
lógica nenhuma.
Correio da Cidadania: O modelo de inclusão digital que o Brasil adota é comum
mundo afora, especialmente nos países que já atingiram um alto grau de
universalização de internet rápida?
Marcos Dantas: Não. Tem um problema que diferencia o Brasil: é um país de grande
território e população. Tirando, mais ou menos, a região da Amazônia, que vem
sendo povoada hoje em dia, todas as demais regiões são povoadas no mínimo de
forma razoável. Isso não é o caso dos EUA, que é um país de grande território,
população e renda. Não é o caso de Austrália e Canadá, com grandes territórios,
mas população concentrada. E muito menos é como Finlândia, Coréia do Sul, casos
sempre citados, que são países mínimos, onde puxando um cabo de um metro já se
cobre o país inteiro. Tem opções interessantes na Finlândia, mas o país é
pequeno, com população menor que a cidade de São Paulo. Assim é fácil.
Dessa forma, deve-se encontrar para o Brasil soluções que contemplem nossas
peculiaridades: a grande população, território, a disparidade de renda, tudo
isso. Quando se fala em mercado no Brasil estamos falando de 400 municípios, que
concentram 70% do PIB. Tais fatores têm de ser considerados. Uma solução
estratégica para o Brasil, portanto, realmente passaria por uma reciclagem, uma
nova etapa, do projeto de regime público. E teríamos o fim do STFC (Serviço de
Telefonia Fixa Comutada), que vai acabar de morte morrida. Ano a ano diminui o
número de telefones fixos no país. Isso acontece no mundo inteiro, não só no
Brasil. Quando terminarem os contratos de concessão, lá pra 2025, é muito
provável ou ao menos não será surpresa se já não existir telefone fixo e os
contratos durarem mais que o próprio serviço. Isso não será surpresa.
Portanto, era o momento de relançar, reconstruir e redefinir o regime público em
cima da banda larga, mesmo que com as atuais concessionárias, ou ainda fazendo
uma remodelagem geral e uma nova rodada de licitações. Poderíamos discutir, mas
a filosofia tem de ser a reconstrução do regime público para a nova etapa das
comunicações.
Correio da Cidadania: Isso incluiria mais investimentos também no parque
tecnológico do país?
Marcos Dantas: Poderia incluir também, considerando que nessa nova etapa de
expansão as empresas tivessem de investir em tecnologia própria, obrigatoriedade
de comprar da indústria nacional... Realmente é outro detalhe a ser lembrado. E
o governo perdeu a oportunidade de pensar estrategicamente. Já tive a
oportunidade de dizer isso a autoridades do governo. É início de governo, a
presidente tem um tremendo cacife político e também era um momento de
renegociação de contratos, quando tudo fica muito aberto e se renegociava o PGMU.
Era um bom momento para o governo chegar e dizer “vamos repactuar essa coisa”.
Mas não quis fazer, por razões que só perguntando ao governo pra saber.
Correio da Cidadania: Como analisa o atual papel da Anatel? Está faltando uma
melhor separação de funções entre ela e o Ministério das Comunicações? Não
caberia à Anatel somente fiscalizar o setor e reservar ao Ministério o papel de
elaborar políticas públicas para a área?
Marcos Dantas: Acho que não está faltando separar melhor as funções, mas é outro
ponto importante. Pelo que tenho percebido, o Ministério das Comunicações está
cumprindo seu papel de formulação política. Vamos dar esse crédito, pois é o
caminho certo. Ele está cumprindo seu papel nesse sentido. Ao que me parece, a
Anatel está um pouco à margem da discussão, ou no máximo subsidiando elementos
da discussão. Mas quem tem feito a formulação é o MiniCom, tal como era de se
esperar com a nomeação do Paulo Bernardo, que não é um quadro secundário, bem
pelo contrário. Tal como se podia esperar com sua nomeação para o Ministério,
ele está no comando do processo político. E a Anatel colocada no seu devido
lugar.
Correio da Cidadania: Falando em Paulo Bernardo, você considera um avanço sua
entrada no Ministério em relação ao ocupante anterior da pasta, Helio Costa?
Marcos Dantas: Sob o aspecto da importância que o Ministério das Comunicações
passa a ter no governo Dilma, sem dúvida é positivo. Saber que no MiniCom está
um dos principais quadros do governo Dilma é algo claramente positivo para o
setor.de comunicações. Mas depende também de qual é o projeto do governo para o
setor. E agora estamos começando a ver quais são os planos. De toda forma, sem
dúvida alguma esse governo lhe deu uma dimensão que jamais foi dada no governo
Lula.
Correio da Cidadania: Isso aumentaria a margem de manobra do governo para
promover alguns avanços em favor do consumidor futuramente?
Marcos Dantas: Eu gostaria, porém, o problema é que depois de assinar contrato
fica mais complicado. Por isso que o momento era agora. Mas agora essa margem
diminuiu.