Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2000 Página Inicial (Índice)
13/11/2000
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A importância da recontagem de votos
A notícia da última semana foi,
sem dúvida, o resultado ainda indefinido da eleição presidencial dos EUA, e a
recontagem de votos no estado de Florida.
Parece que ainda vai demorar para ser conhecido o resultado final desta eleição,
e isto já foi motivo para diversos editorialistas e jornalistas da nossa
imprensa proporem aos vizinhos do norte a adoção da tecnologia de "urnas
eletrônicas" usada na eleição municipal no País no mês de outubro, e ainda única
no mundo para uma eleição desta escala.
Sucumbiram a esta tentação, entre outros, Teresa Cruvinel de O Globo, e Clovis
Rossi, Eliane Cantanhede e Luis Nassif da Folha de São Paulo.
Segundo estes, tal adoção teria definido o resultado em questão de horas,
poupando o mundo do espetáculo do adiamento por prazo ainda indefinido dos ritos
de celebração da vitória de Gore ou Bush.
Dos principais comentaristas políticos que abordaram a questão, apenas Jânio de
Freitas (Folha de São Paulo, dia 12) discordou desta receita fácil.
A tecnologia de urnas eletrônicas foi introduzida em
eleições nacionais pela Tribunal Superior Eleitoral, a partir da eleição
municipal de 1996, quando foi usada apenas em cidades maiores.
Seu uso foi expandido em 1998 e 2000, alcançando neste ano a totalidade dos
municípios.
Sua característica mais marcante é a totalização de votos de uma seção eleitoral
realizada pela própria urna eletrônica, que, no final da sessão de votação,
emite um relatório (digital e impresso) informando o número de votos dados a
cada candidato.
Pela sua lógica, a recontagem destes votos não seria necessária, vez que o
resultado sairia igual.
Portanto, a aplicação da urna eletrônica nacional no estado de Florida sem
dúvida simplificaria o processo.
Quais então poderiam ser os motivos para não ser usada tal tecnologia em outros
países?
Será que alguém imagina que apenas os brasileiros são capazes de inventá-la, ou
pode ser que tenha sido esquecida alguma coisa essencial nesta solução?
Na verdade, a questão do uso de meios eletrônicos
(computadores) na realização de eleições vem sendo estudado em outros países há
bastante tempo, sem resultar em sua adoção.
Nos EUA, após um processo de avaliação que se estendeu durante 8 anos, a cidade
de Nova Iorque resolveu abandonar o projeto de substituir as velhas máquinas de
votar mecânicas por novas eletrônicas, pela impossibilidade de atender
adequadamente aos requisitos impostos, especialmente na área de segurança (www.seas.upenn.edu:8080/~mercuri/Papers/voteauto.html).
Uma lista de requisitos de segurança para votação eletrônica foi publicada em
1993 por Peter G. Neuman, cientista da SRI (www.csl.sri.com/neumann/ncs93.html).
Suas conclusões são preocupantes, pois apontam na direção da extrema dificuldade
da construção de um sistema puramente eletrônico, que ao mesmo tempo seja
confiável e livre de adulteração, sem comprometer o sigilo do voto do eleitor.
No fundo, o problema reside na confiabilidade do software instalado nas urnas
eletrônicas, que tem que ser livre de erros de implementação, e também livre de
subversão por especialistas mal-intencionados que tenham acesso a ele.
A princípio, achava-se que o software poderia ser validado apenas por inspeção
do seu projeto (seu "código fonte") por auditores externos, mas, num célebre
artigo publicado em 1984, Ken Thompson, famoso como um dos criadores do sistema
operacional Unix, explica como pode ser introduzido um "cavalo de Tróia" num
software, subvertendo sua segurança, sem sequer precisar modificar seu código
fonte (www.acm.org/classics/sep95).
No País também existem estudiosos e críticos do processo
de votação eletrônica.
O sítio www.votoseguro.org,
coordenado por Amílcar Brunazo Filho, tem um conteúdo rico em informações e
opiniões sobre a automação das eleições nacionais, e sobre os problemas que
ainda precisam ser resolvidos.
O sítio contém um ponteiro ao Fórum do Voto Eletrônica, um grupo de discussão
sobre este assunto.
Um ensaio interessante sobre a introdução de votação eletrônica no País, de
autoria de Osvaldo Maneschy, um dos membros deste fórum, pode ser encontrado em
www.jus.com.br/doutrina/urnael14.html.
As críticas ventiladas neste fórum são uma aplicação dos
critérios supracitados do Neuman, acompanhados de propostas práticas para seu
saneamento, e são muito bem expostas em artigo do próprio Brunazo, disponível em
www.senado.gov.br/web/senador/requiao/aseguran.htm.
Neste artigo, vai-se ao cerne do problema de confiança no processo eleitoral.
É necessário não apenas ter um sistema seguro, como também poder demonstrar sua
segurança.
Como Neuman já mostrou que votação puramente eletrônica é intrinsecamente
insegura, é necessário complementá-la por procedimentos adicionais para reforçar
a confiança.
Brunazo identifica quatro fases no processo de votação:
a identificação do eleitor, a votação secreta, a apuração de cada urna, e a
totalização dos votos.
Na votação tradicional, cada fase é realizada separadamente, e sujeito a
controles externos: o eleitor é identificado adequadamente; depois ele verifica
que a cédula entregue está em branco, e não pode identificá-lo, mantendo-se
assim o anonimato do voto; a apuração da urna é realizada perante os fiscais dos
candidatos; e os boletins das urnas são publicados, permitindo a totalização
independente dos votos.
No atual modelo de urna eletrônica, foram juntadas numa só fase as três
primeiras fases do processo manual substituído.
Agora o número do título do eleitor é usado como senha para habilitar o uso da
urna, ameaçando, potencialmente, o sigilo do voto do eleitor.
Em seguida, o eleitor escolhe seus candidatos e confirma esta escolha; e
finalmente seu voto é somado aos demais da mesma urna, sendo gerados apenas
totais de votos no final da sessão.
O problema fundamental é a correção do software da urna,
pois não há nenhuma redundância no sistema que permita validar esta correção
experimentalmente.
Por exemplo, se tivesse sido introduzido um "cavalo de Tróia" no software da
urna para desviar sistematicamente votos de um candidato para outro, não
restaria provas que esta falcatrua houvesse ocorrido.
A urna poderia dar ao eleitor a confirmação da sua opção, e então dar o voto
para outro candidato.
A causa deste desvio poderia também ser decorrência de um erro do software.
Simplesmente não saberíamos.
E o pior disto tudo é que o TSE está nos dizendo, "O sistema é seguro. Confiem
em nossa palavra."
Esta posição é tecnicamente indefensável, pois depende de uma série de fatores
imponderáveis, inclusive a boa fé de pessoas que não sejam juizes nem
funcionários desse tribunal.
E, infelizmente, há razões de sobra de eleições passadas para ter desconfiança
de processos eleitorais.
É essencial termos um sistema transparente, onde os processos podem ser
sujeitados a uma auditoria satisfatória a eleitores e candidatos.
A proposta do Brunazo para restaurar a confiança nas
urnas eletrônicas envolve duas modificações do seu projeto.
Primeiro, a identificação do eleitor deveria ser feita da maneira tradicional,
de conferência dos documentos contra a listagem dos eleitores, como sempre era
feita.
A urna deveria ser habilitada para uso sem identificar o votante, e, ao final da
escolha do seu voto, a urna deveria imprimir uma cédula com os detalhes deste
voto.
Após o eleitor ter confirmado que a cédula corresponde à sua escolha, ela seria
depositada numa urna tradicional. Em caso de conflito entre o voto impresso e o
eletrônico, ambos poderiam ser cancelados e a votação repetida. Note que agora
teríamos dois registros independentes da votação nesta seção eleitoral.
Em caso de dúvidas sobre o total dos votos eletrônicos, as cédulas impressas
poderiam ser recontadas manualmente, ou com o auxílio de leitoras óticas
apropriadas.
Esta proposta foi incluída pelo senador Roberto Requião no seu projeto de lei
PLS 194/99, atualmente em discussão no Senado.
O projeto do senador Requião prevê que sejam recontadas manualmente os votos de
3% das urnas, escolhidos ao acaso, para validar os totais eletrônicos.
As demais urnas "manuais" teriam a função da caixa preta nos aviões, apenas
acionadas em evento de um desastre. Este procedimento deveria reforçar a
confiança que as novas urnas não estejam sendo usadas para subverter a
democracia.
Para voltar aos problemas de Florida, e especialmente de
Palm Beach County, onde foram usadas máquinas de votar mecânicas, que não
funcionaram como pretendiam mais de 20.000 eleitores, não há nada que desvirtue
mais a inovação tecnológica como dar aos seus usuários um sentimento de
impotência e perda de controle sobre sua vida. Isto aconteceu ali, e talvez
ainda seja consertado após uma auditoria do que realmente aconteceu.
Se tivesse sido usado o modelo atual de urna eletrônica brasileira, não haveria
nem como reclamar do resultado. Recontagem de votos não é atraso de vida, é uma
parte fundamental do processo democrático.