Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2001 Página Inicial (Índice)
02/04/2001
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Telefonia IP: pirataria ou competição
legítima?
Na semana passada fomos brindados com a notícia que a Embratel e Intelig, nominalmente concorrentes para atender ao mercado nacional de telefonemas interurbanas (entre áreas de operadoras diferentes) e internacionais, haviam entrado juntos na justiça com ações contra "empresas irregulares que fazem ligações internacionais por preços bem mais baixos", segundo reportagem do Estado de São Paulo (www.estado.estadao.com.br/editorias/2001/03/29/eco980.html). A justificativa da ação da Embratel e Intelig é que elas teriam comprado as concessões para operar nesse mercado, em regime de duopólio, e estariam apenas defendendo seus direitos.
Os estudantes da história devem se recordar que acusações de pirataria não são muito originais, e foram muito dirigidas durante o período colonial à competição, especialmente dos ingleses, aos empreendimentos estatais da Espanha, depois desse país ter se apoderado de boa extensão territorial do mundo, e querer explorá-la em regime de monopólio. Este monopólio acabou cedendo aos poucos, mas levou vários séculos para ser totalmente extinto, para a infelicidade dos seus antigos explorados.
No caso dos serviços de telefonia, a acusação de "pirataria", feita originalmente pela Embratel, foi mencionada na nossa coluna "A telefonia IP e suas conseqüências" de 3 de julho de 2000 , quando foi explicado como pode ser oferecido o serviço de telefonia via rede de dados, a chamada telefonia IP, a um preço bem inferior, entre um terço e a metade daquele cobrado para a telefonia convencional. Um dos diretores da Embratel ainda teria feito a alegação de que as empresas ditas irregulares não vinham recolhendo devidamente os impostos, especialmente o ICMS (25% no RJ), incidentes sobre os serviços convencionais de telefonia.
Os serviços de telefonia IP estão mexendo com as estruturas tradicionais de telefonia em muitos países. Por causa da sua tecnologia ser substancialmente mais barata, e permitir a operação do serviço por empresas relativamente pequenas, comparadas com as gigantes que dominam os serviços convencionais, houve uma invasão extensa por novas operadoras no mercado destes gigantes em muitos países do mundo, com benefícios diretos para o consumidor. Em países de economia aberta, com os EUA e Grã Bretanha, pode-se comprar cartões de telefonia IP pré-pagos (semelhantes aos dos celulares aqui no País) no pequeno comércio, ou até de máquinas. Normalmente estes cartões vêm com um ou mais números de telefones de acesso e uma senha. Em alguns países, por exemplo a China, a própria abertura à competição do mercado interno de telefonia foi uma conseqüência histórica do aparecimento de operadoras de telefonia IP, que cresceram rapidamente às custas da empresa estatal até então monopolista. Ainda em outros países, o aparecimento e crescimento destas empresas têm sido combatidos pelas empresas monopolistas ou oligopolistas já estabelecidas, exatamente como estamos observando acontecer no Brasil atualmente. O sítio na Internet do Fórum Político Mundial das Telecomunicações (WTPF) da União Internacional de Telecomunicações (ITU) divulga uma série de estudos de caso de telefonia IP, na URL www.itu.int/wtpf/casestudies/index.html, sendo bastante sucinto e abrangente o sumário citado nesse sítio.
É muito claro que o fim do monopólio estatal de telecomunicações e a liberalização das regras deste mercado em quase todo o mundo fizeram evaporar muitas das certezas que antes nortearam o mundo das telecomunicações, quando não havia como questionar a atuação das empresas operadoras estatais. O surgimento de competição, consentida ou não, está mudando rapidamente o comportamento das empresas de telecomunicações, e sua sensibilidade às queixas dos seus clientes. Tipicamente, monopólio vem sendo substituído por regulação pelo estado, realizada no Brasil pela Anatel (www.anatel.gov.br). E cabe agora à agência reguladora lidar com as novas incertezas do setor. O próprio WTPF da ITU (www.itu.int/wtpf) foi criado justamente para permitir a discussão em âmbito mundial dos impactos sobre as telecomunicações e sua legislação das novas tecnologias de comunicação.
No início de março, foi realizado em Genebra o terceiro encontro do WTPF, esta vez para discutir a questão da telefonia IP. A posição brasileira neste encontro foi apresentada pelo presidente da Anatel, que argumentou que "não se deve confundir os Serviços Internet, enquanto serviços de Informação e, portanto, de Valor Adicionado, com o Serviço Multimídia, que é um serviço de telecomunicações e que precisa, na medida certa, ter uma regulação formulada pelas Administrações dos países". Por outro lado, "a tecnologia IP não pode ser classificada como um novo tipo de serviço - Telefonia IP - que deva merecer uma regulação diferente da telefonia tradicional". Ainda sustentou que "a regulação de um setor deve se pautar, fundamentalmente, pelos interesses dos usuários e não de prestadores de serviços, fabricantes ou de governos, que não sejam as de servir à sociedade" (www.anatel.gov.br/biblioteca/releases/2001/release_06_03_2001.pdf).
Parece, portanto, que a Anatel quer tratar a telefonia IP no País da mesma forma como é tratada a telefonia tradicional. Resta ver se isto significa que ela vai interferir na disputa entre Embratel e Intelig e as novas empresas de telefonia IP. Se o critério a ser usado for o serviço à sociedade, poderá ser defendido que é interessante promover a competição da telefonia IP com os serviços tradicionais, para forçar uma baixa de preços ao consumidor.
É bom lembrar que a antiga empresa estatal de telefonia interurbana e internacional, a Embratel, teve uma longa tradição de atuação monopolista nos seus mercados. Durante anos isto se traduziu na manutenção de tarifas altas, apesar de constante redução dos seus custos, devido à evolução tecnológica das telecomunicações. Pode-se datar a primeira redução significativa dos preços cobradas pela Embratel pelas chamadas internacionais a partir do surgimento de competição por empresas sediadas no exterior que utilizam o chamado "call-back". Neste sistema o usuário liga para um número de uma operadora no exterior, deixa tocar uma vez e desliga. Em seguida, essa operadora no exterior, usando a "identificação de chamada", inicia uma ligação para o telefone do usuário daqui, oferecendo-lhe a possibilidade de completar sua chamada até o número da sua escolha. O usuário terá que pagar o custo das duas ligações usadas para completar sua chamada, ambas a partir do país da operadora no exterior.
Durante muito tempo, as tarifas cobradas pelas empresas usuárias de "call-back" eram muito inferiores às da Embratel, e, em função da perda de clientes para esse serviço, a Embratel acabou reduzindo suas tarifas. A segunda rodada de redução das tarifas da Embratel ocorreu no ano passado, em função da entrada em operação da Intelig, empresa "espelho", que tentou seduzir os clientes da concorrente através de uma guerra de preços. Os preços poderão cair ainda mais, em conseqüência da concorrência das empresas de telefonia IP, cujas tarifas são ainda mais baixas do que das empresas de "call-back", e estão alinhadas com aquelas praticadas por empresas semelhantes no exterior.
Mas isto dependerá da operação de um mercado competitivo. A Anatel nada pode
fazer para impedir o funcionamento do "call-back". Mas ela poderá bloquear a
competição feita pelas empresas de telefonia IP sediadas no país, se assim
escolher. Será que deve ser função da Anatel defender da competição da telefonia
IP, potencialmente operada por empresas de capital nacional, as principais
operadoras de telefonia convencional do país, quase todas nas mãos do capital
estrangeiro?