Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


05/08/2001
MP 2.200-1: a ICP-Brasil reeditada

Os últimos dias de julho foram profícuos em novidades a respeito da criação pelo governo, através da Medida Provisório 2.200 de 28 de junho, da Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, que regularia a administração dos certificados de chave pública, usados para validar assinaturas digitais, entre outras coisas. Uma MP tem efeito imediato, e o governo começou a agir rapidamente para cimentar sua cria, tendo nomeado já a maioria dos membros do Comitê Gestor da ICP-Brasil, e publicado junto com a MP o regulamento provisório da ICP-Brasil, para Consulta Pública até 30 de julho. Entretanto, houve muita reação pública negativa à iniciativa, por diversas razões (v. as colunas de 9 de julho e 16 de julho), e as críticas continuam sendo externadas, por exemplo, em 19 de julho pela Sociedade Brasileira de Computação, organização profissional que melhor representa a comunidade de ensino e pesquisa em computação no país (www.sbc.org.br/novidades/cartaab.htm). Chegou-se, inclusive, ao ponto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contemplar ingressar no Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade da MP.

No dia 26 de julho, realizou-se na sua sede em São Paulo um debate sobre a MP 2.200, organizado pela seção paulista da OAB. Participaram neste debate várias entidades de classe, tanto profissional como comercial, além de dois membros do Comitê Gestor da ICP-Brasil, e o deputado federal Luís Piauhylino (PSDB-PE). A maioria dos oradores fez críticas da medida governamental, muitas das quais já haviam sido resumidas na nossa coluna de 16 de julho. No seu discurso de abertura o professor de direito Marco Aurélio Greco apresentou de forma sintética os problemas jurídicos e técnicos da ICP-Brasil, inclusive infringir o monopólio assegurado pela Constituição aos cartórios para o exercício de atividade notarial, e a sujeição do Poder Judiciário ao uso de entidades de certificação criadas pelo Poder Executivo.

Na ausência de representantes do governo federal, a MP 2.200 foi defendida principalmente por Hugo Dantas Pereira, diretor-geral da Federação Brasileira dos Bancos - Febraban (www.febraban.com.br), e antigo diretor executivo de varejo, serviços bancários, tecnologia e infra-estrutura do Banco do Brasil, que em julho foi nomeado um dos representantes da sociedade civil no Comitê Gestor da ICP-Brasil. Ele proferiu uma longa explicação das necessidades do Sistema Financeiro de legalizar o uso de documentos digitais, e deu a entender que os bancos haviam participado ativamente na transformação da proposta ICP-Gov em ICP-Brasil, porque estava "demorando muito o Congresso" em aprovar a legislação necessária para o setor. Só para lembrar, a ICP-Gov, a Infra-estrutura de Chaves Públicas do Governo, foi criada pelo Decreto 3.587, editado no ano passado, e se limitava apenas a cuidar de documentos digitais usados pelo próprio governo federal (v. nossa coluna de 20 de novembro de 2000). Apesar de dizer que não era tecnólogo (ele é engenheiro formado pela UFRJ), Hugo Dantas defendeu a adoção de uma ICP única, e defendeu a dependência da assessoria técnica do CEPESC (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações, da Agência Brasileira de Informações - ABIN), alegando serem ele e as agências militares os únicos centros de expertise em criptografia no país. Finalmente confessou que aos bancos não interessava admitir pequenas empresas como autoridades certificadoras.

É oportuno contestar aqui esta desinformação que só existe expertise em criptografia no meio governamental, e dentro deste nas agências militares e de informações. Não foi por isto que o país vem fomentando há 30 anos pesquisa em informática nas universidades, e hoje existem diversos centros de excelência no meio universitário, que suportam a realização de eventos tais como o Workshop de Segurança de Sistemas Computacionais (WSeg´2001), realizado em Florianópolis em março passado (www.sctf2001.lcmi.ufsc.br), e o Simpósio Segurança em Informática 2001, a ser realizado em São José dos Campos em outubro próximo (ssi.comp.ita.br). Se esta situação é desconhecida a um dos representantes da sociedade civil neste Comitê Gestor, então torna-se apropriado que uma das vagas ainda restantes do Comitê Gestor da ICP-Brasil seja preenchida por um representante desta comunidade acadêmica, que muito bem poderá ser indicado pela Sociedade Brasileira de Computação.

O outro membro do Comitê Gestor da ICP-Brasil presente, Paulo Toledo, presidente da BRISA -Sociedade para o Desenvolvimento da Tecnologia da Informação, com expressivo elenco de associados entre empresas de fabricação, comercialização e utilização de produtos de TI (www.brisa.org.br), explicou que o regulamento aberto para consulta pública não havia sido endossado pelo Comitê Gestor. A existência de múltiplos projetos no Congresso atrapalhava a conclusão dos trabalhos legislativos, e por isto seria legítimo o uso de uma medida provisória para acelerar o processo.

No dia seguinte, vários dos presentes no debate participaram numa reunião para responder à Consulta Pública sobre a MP 2.200 e seu regulamento, organizada pela BRISA, junto com o Comitê de Direito e Tecnologia da Câmara Americana de Comércio, a Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (Câmara e.net) e o Conselho de Comércio Eletrônico da Federação de Comércio do Estado de São Paulo. O documento resposta se dizia refletir, portanto, a opinião de parcela significativa da sociedade civil e da atividade empresarial brasileiras, e se encontra em www.vista3d.com.br/camara-e/_library/carta%20comit%EA%20gestor%20icp-brasil.doc As principais sugestões incluíam a restrição da ICP proposta na MP para seu objetivo original de atender às necessidades do governo (ICP-Gov), admitindo a existência paralela de outras ICPs, com suas próprias regras, e sugerindo que o Comitê Gestor se tornasse um órgão credenciador de autoridades certificadoras. Além disto, propunha paridade de representação no Comitê Gestor do governo e da sociedade civil, ao invés da maioria governamental prevista na MP, e ainda sugeria a futura realização de nova Consulta Pública, no evento de modificação da MP ou dos documentos complementares.

Outras sugestões foram recebidas em resposta à Consulta Pública: uma das mais extensas veio do prof. Ricardo Felipe Custódio, da Universidade Federal de Sta. Catarina, que analisou pormenorizadamente o texto da MP e do regulamento (v. www.inf.ufsc.br/~custodio/ICP-Brasil.html).

Antes de completar um mês, a MP 2.200 foi reeditada como MP 2.200-1, de 27 de julho (www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2200-1.htm). Na reedição foram realizadas diversas modificações substantivas na sua redação, certamente em função das críticas recebidas. Estas modificações incluíram: o acréscimo ao Comitê Gestor de mais um representante da sociedade civil, ficando assim 5 representantes contra 7 do governo; o reconhecimento de outras formas de autenticação, além do digital; a atribuição ao titular da geração da sua própria chave, e a afirmação que a chave privada de assinatura ficará sobe seu exclusivo controle, uso e conhecimento. Entretanto, devemos aqui sublinhar que a natureza sigilosa não foi explicitada de maneira igual para a chave privada de sigilo, usada para comunicação reservada, e sobre a qual explicitamos nossa própria crítica na coluna de 16 de julho.

A nova redação da MP da ICP-Brasil foi recebida com um avanço na postura do Governo pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (www.oab.org.br/noticia.asp?id=299), e espera-se que a OAB agora desista da iniciativa da ação direta de inconstitucionalidade da MP (www.computerworld.com.br/templ_textos/noticias.asp?id=13415). Por enquanto não houve muitas manifestações de crítica, talvez porque ainda não tenham sido nomeados todos os representantes da sociedade civil no Comitê Gestor, e este ainda não iniciou seus trabalhos, os quais deverão começar com a revisão do regulamento que foi o objetivo da Consulta Pública. Com o retorno do seu recesso do Congresso, ainda vai ser considerada a situação da MP, que está em conflito com três projetos de lei em discussão. A princípio, a MP deveria ser aprovada, ou não, pelo Congresso, e imagina-se que isto poderá ocorrer em breve, uma vez que o assunto em pauta já está bastante digerido pelas duas casas.

Independente da natureza desta legislação, ela serve como um exemplo de como os procedimentos formais do Congresso não sempre vêm conseguindo atender com a devida urgência aos assuntos de real interesse para a vida social e econômica do nosso país, e estão sendo substituídos por outros, mais informais, que consistem num diálogo direto entre o governo que propõe legislação em forma de medida provisória e setores da sociedade que a criticam. A própria plasticidade da redação desta MP ilustra a dinâmica desta dialética, onde tese mais antítese levam a uma nova síntese. Num momento quando o nosso parlamento quer cercear o uso de medidas provisórias pelo governo, os parlamentares muito bem poderiam refletir sobre alternativas ágeis para encaminhar a discussão de projetos de leis. No caso específico da legislação sobre ICPs, este processo ainda deverá sofrer algumas iterações adicionais antes de gerar uma síntese final, que possa ser homologada pelo Congresso.

Michael Stanton (michael@ic.uff.br), que é professor titular de redes do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense, escreve neste espaço todas as semanas desde junho de 2000 sobre a interação entre as tecnologias de informação e comunicação e a sociedade. Os textos das colunas anteriores também estão disponíveis para consulta .