Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2001 Página Inicial (Índice)
20/8/2001
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A força das indústrias de
entretenimento
A história da proteção legal de propriedade intelectual tem sido marcada pela tensão entre o interesse do seu dono, para quem ela constitui um bem como qualquer outro, e o interesse público no seu usufruto. Tipicamente têm sido reconhecidos dois tipos de proteção: patente e direitos autorais. Com o registro de um patente, geralmente usado para um processo ou equipamento, o poder público protege o monopólio do seu usufruto pelo dono, por um período fixo de tempo. Durante este período, o dono poderá licenciar seu uso por outros, em troca de pagamento (de "royalties"), ou simplesmente proibir este uso. Findo o período do patente, a propriedade se torna pública.
O regime de direito autoral é bastante diferente, pelo menos na maioria dos países. Nele, o direito é afirmado apenas pela publicação, e para a sua reprodução é necessária a permissão do dono deste direito. O direito geralmente caduca depois de um período (longo) de tempo, sendo este período contado a parte do morte do dono, no caso de ser ele o autor intelectual da propriedade. Este regime é usado tradicionalmente para obras escritas, e vem sendo estendido para outros meios: imagens, vídeo, música gravada, e, mais recentemente, software. Na proteção dos direitos autorais, têm sido considerados aspectos distintos o acesso a uma obra e a sua reprodução, e embora não seja permitida a reprodução de uma obra sem a devida permissão, uma cópia legalmente adquirida poderá ser emprestada para outra pessoa. Na verdade, depende disto o funcionamento tradicional das bibliotecas. Adicionalmente, é permitida a reprodução parcial de obras em certas circunstâncias, tais como para fins de estudo, para permitir citações incluídas e comentadas numa outra obra, e assim em diante. Maiores detalhes sobre as leis de proteção dos direitos autorais, especialmente sua aplicação a sítios WWW, podem ser encontrados nos sítios de R. Delgado-Martinez (whatiscopyright.org) e Brad Templeton (www.templetons.com/brad/copymyths.html).
A proteção de direitos autorais inicialmente era uma preocupação interna em cada país isoladamente, e normalmente era dada apenas a seus cidadãos. Por exemplo, no século 19 os EUA não reconheciam os direitos de autores britânicos, e existia uma grande indústria em Nova Iorque para a produção pirata de livros editados originalmente na Grã Bretanha. Com o tempo, percebeu-se as conveniências de estender a proteção para autores de outros países, e foi adotada em 1886 a primeira Convenção de Berna, um tratado internacional subscrito por 14 países. A versão mais recente é de 1971 (www.law.cornell.edu/treaties/berne), e, nos anos 1970, a organização que cuida desta convenção adotou o nome WIPO - World Intellectual Property Organisation (www.wipo.org), e se tornou agência da ONU.
Somente a partir dos anos 1960 tornou-se prático realizar cópias baratas de obras impressas, usando copiadoras da tecnologia criada pela empresa Xerox. Com o passar do tempo, facilitou-se a reprodução de outros meios de divulgação de obras intelectuais, especialmente as fitas de música e de vídeo, e iniciou-se em grande escala a pirataria destas obras. Por enquanto, todas as reproduções eram analógicas, geralmente com certa perda de qualidade, e teriam melhor qualidade as reproduções produzidas legalmente.
Esta situação mudou-se radicalmente com a introdução de tecnologia digital na distribuição primeiro de música (CDs), depois de software (CD-ROM), filmes (DVDs) e de livros (eBooks), a partir do final dos anos 1980, além do conteúdo inteiro da World Wide Web. A essência da mudança se deve aos fatos que as cópias digitais são indistinguíveis dos originais, e elas podem ser feitas a zero custo marginal. Com isto escancararam-se as portas de controle da reprodução não autorizada, possível agora em milhões de computadores baratos. (Deve-se notar que estes fatos também levaram algumas pessoas a advogar o fim do esquema mercantil de proteção de direitos sobre propriedade intelectual, notadamente Richard Stallman da Free Software Foundation (www.fsf.org), e o fenômeno que levou ao compartilhamento de música através do Napster.)
As indústrias afetadas, de música, cinema e software, foram à luta, adotando tecnologias de proteção contra reprodução não autorizada, e pressionaram os governos dos seus países para dar-lhes meios de combater este ataque direto a seus interesses. O primeiro resultado foi a adoção numa conferência internacional em 1996 de dois tratados sobre direitos autorais: o WIPO Copyright Treaty (WCT) e o WIPO Performances and Phonograms Treaty (WPPT). Segundo ambos estes tratados, deveria ser providos proteção legal e remédios eficazes contra a burla de medidas tecnológicas usadas para restringir atos não autorizados pelos detentores dos direitos autorais ou permitidos por lei (v., por exemplo, www.wipo.org/eng/diplconf/distrib/treaty01.htm).
Para que tenha eficácia num país signatário, um tratado internacional precisa gerar legislação correspondente, válida para aquele país. No caso dos tratados de 1996 da WIPO, os EUA aprovou em 1998 o DMCA - Digital Millennium Copyright Act (www.eff.org/ip/DMCA/hr2281_dmca_law_19981020_pl105-304.html), com eficácia a partir de 2000. A seção 1201 desta lei proíbe explicitamente a burla de sistemas de proteção de direitos autorais, ou o desenvolvimento, importação ou distribuição de meios de realizar tal burla, exceto em certas circunstâncias. Estas incluem: a possibilidade de bibliotecas e instituições de ensino fazer avaliação da conveniência de comprar uma obra; o uso de engenharia reversa para prover interoperabilidade com outros sistemas; a pesquisa em criptografia para identificar e analisar falhas em tecnologia criptográfica usada para proteger obras, sujeito ao uso de meios considerados apropriados para a divulgação dos resultados; a verificação da segurança do computador usado. Adicionalmente é proibido a comercialização de gravadores (analógicos) de videocassete que não incluam recursos de marcar claramente como cópias as fitas que são por eles gravados.
A lei DMCA já está se tornando notória, pela maneira que está sendo usada. Já foram registrados três casos notáveis. Em abril, o prof. Edward Felten da Universidade de Princeton, que é pesquisador em criptografia, foi notificado por advogados da indústria fonográfica (RIAA - Recording Industry Association of America - www.riaa.org), que um artigo científico que iria apresentar numa conferência poderia levar a um processo criminal sob a lei DMCA. O tema do seu artigo foi a vulnerabilidade de um esquema de proteção criptográfica usado em gravações musicais. Por causa da ameaça Felten suspendeu a apresentação em abril, mas acabou fazendo-a na semana passada na conferência da USENIX (grupo de usuários de UNIX). No meio tempo, entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a DMCA, por infringir a liberdade de expressão, e tem como co-autores da ação a Electronic Frontier Foundation e a USENIX Association. A ACM - Association for Computing Machinery, principal associação profissional de cientistas de computação nos EUA, também se manifestou em favor dos autores da ação (www.acm.org/felten), citando o efeito inibidor sobre pesquisa na área de segurança provocado pelo DMCA.
Este efeito foi mostrado de forma dramática pela prisão em julho de Dmitri Sklyarov, um programador russo, que visitava os EUA para assistir a uma conferência sobre segurança em Las Vegas. Sklyarov trabalha em Moscou, onde desenvolveu software para visualizar livros eletrônicos, do formato eBook. Em particular, seu software desabilita algumas restrições que poderiam ser acionadas pela editora de um eBook, por exemplo a função de "ler" o texto em voz alta, por exemplo para uma pessoa com deficiência visual. Desenvolver este software na Rússia não é crime. Porém, poderia ser nos EUA, e a empresa que criou a tecnologia dos eBooks, a Adobe (www.adobe.com/epaper/ebooks/main.html), se comunicou com o FBI (polícia federal dos EUA) sobre a vinda do Sklyarov, e o russo foi preso em seguido. Depois de passar algumas semanas presas, foi liberado após pagar fiança e entregar seu passaporte, e aguarda ser julgado.
O caso mais recente é de Niels Ferguson, um criptógrafo que trabalha na Holanda, que acaba de descobrir uma falha fatal no esquema HDCP, criado pela Intel para proteger vídeos usando criptografia (www.digital-cp.com). Ferguson acaba de dizer publicamente que ele não pretende publicar os detalhes da sua descoberta, por medo de represálias vindo da Intel ou das autoridades norte-americanas, baseadas na lei DMCA (www.macfergus.com/niels/dmca/index.html). Ele também mandou uma declaração ao corte que examina a ação de Felten.
Enfim, esta lei que foi criada para atender os interesses das indústrias fonográfica e de filmes já está demonstrando seu lado negro, em inibir a investigação científica e a livre troca de idéias, e de estender o alcance das leis domésticas norte-americanas para outros países. Por enquanto, as pessoas consideradas transgressoras somente estão vulneráveis se estiverem fisicamente nos EUA. Mas a agenda do governo norte-americano inclui estender os conceitos do DMCA para outros países, inicialmente através da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas (www.ftaa-alca.org). Segundo um aviso publicado semana passada pela EFF - Electronic Frontier Foundation, está sendo defendida pelo governo dos EUA a adoção de um tratado internacional sobre propriedade intelectual que inclua as propostas da lei DMCA, com número menor de exceções (www.eff.org/alerts/20010816_eff_ftaa_alert.en.html). Até 4a feira, dia 22/8, a proposta deste tratado está aberta para consulta pública, e a EFF urge os interessados a manifestarem sua inconformidade com esta situação, apontando as conseqüências negativas da lei DMCA no país de sua origem. Através do sítio da EFF, podem ser encontradas, por exemplo, as agências do governo brasileiro que tratam destes assuntos.
Urnas eletrônicas
No dia 15/8 foi realizada, a portas fechadas, a reunião entre o ministro Nelson Jobim do TSE e membros dos partidos políticos sobre a "inconveniência" de modificar os procedimentos da eleição de 2002. Os políticos saíram da reunião dizendo que o ministro Jobim havia concordado com suas propostas de reforma, porém isto não transpareceu na imprensa e nem no sítio do TSE. Observadores céticos já prevêem que o TSE continuará a empurrar esta questão com a barriga, até que seja tarde demais para modificar qualquer coisa para 2002.
Em tempo, para quem estiver interessado em maiores detalhes do equipamento
SELA, que faz auditoria do funcionamento da urna eletrônica, que descrevemos
semana passada, um artigo científico escrito pelos autores pode ser encontrado
em
www.ic.uff.br/~michael/sela.pdf.