Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


29/01/2001
Bases de dados pessoais - o habeas-data

A adoção pelos países da União Européia (UE) de legislação uniforme sobre as bases de dados pessoais vem gerando seqüelas por causa do dispositivo que proíbe a exportação de dados pessoais da UE para outros países que não possuam um tratamento "adequado" da privacidade destes dados. As leis européias criam órgãos governamentais e procedimentos específicos para lidar com a privacidade dos dados, o que difere da tradição de países como os EUA, onde o governo não vem atuando nestes assuntos, sendo preferida a auto-regulamentação das empresas, sem envolver o governo e leis específicas. Como vimos na colunas de 22 de janeiro, a exigência européia de "adequação" do tratamento norte-americano de privacidade resultou em iniciativas do governo nos EUA, com a criação do conceito de "Porto Seguro" para empresas que adotam voluntariamente medidas compatíveis com as novas práticas européias. Por causa da polêmica entre a UE e os EUA, outras soluções para a privacidade dos dados pessoais ficaram em segundo plano. O objetivo desta coluna é examinar uma terceira tradição legislativa, que vem sendo adotada em países da América Latina - o "habeas-data".

Um dos mais antigos dos direitos constitucionais do indivíduo é o habeas-corpus, que limita a detenção arbitrária de uma pessoa pelo poder público. Este direito primeiro apareceu no direito inglês na Idade Média, e, segundo o dicionário do Auréio, uma tradução aproximada do latim de "habeas corpus" seria "que tenhas teu corpo". Em caso de detenção de uma pessoa, um pedido de habeas-corpus é uma ordem judicial para que esta pessoa seja apresentada perante um juiz para examinar a legalidade da ordem de sua prisão. O habeas-data, literalmente "que tenhas teus dados", é outro direito constitucional do indivíduo, que apareceu primeiro na Constituição brasileira de 1988, como uma das suas cláusulas pétreas. No artigo 5o desta constituição temos, o item LXXII permite conceder o "habeas-data" nas seguintes situações (www.planalto.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Constituição.htm):

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

O direito de habeas-data foi regulamentado em 1997 pela lei 9.507 (www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L9507.htm), que define o rito processual e as instâncias onde ele deve ser iniciado. Além da retificação de dados prevista na Constituição, esta lei permite também que seja anotada numa base de dados uma contestação pelo interessado da inexatidão dos dados pessoais mantidos (art. 4o, item 2o).

A novidade principal do conceito de habeas-data, comparado com a legislação européia, é que ele aproveita a infra-estrutura legal existente, evitando a criação de novas entidades governamentais e processos. Como elemento constitucional, o habeas-data vem sendo incorporado às constituições de outros países da América Latina: Paraguai (1992), Peru (1993) e Argentina (1994). Um estudo apresentado pelo advogado costarriquenho, Andres Guadamuz, mostra a evolução nos detalhes da proteção efetivamente dada, com a inclusão, por exemplo, do direito de suprimir dados considerados incorretos ou que afetam ilegitimamente os direitos do indivíduo, ou de classificar certas informações como confidenciais (elj.warwick.ac.uk/jilt/00-2/guadamuz.html).

Uma conseqüência imprevista do habeas-data, destacada no artigo de Guadamuz, é sua utilização para obter acesso a informações governamentais sobre o passado recente, quando os governos dos países envolvidos eram ditaduras militares. Na Argentina, por exemplo, o direito de acesso aos dados pessoais foi estendido pela justiça às famílias de desaparecidos da época da repressão militar, possibilitando desvendar informações oficiais sobre o destino dessas pessoas.

A adequação de habeas-data para efetivamente proteger dados pessoais mantidos em computadores dependerá da agilidade dos processos contra abusos. Embora seja potencialmente eficiente a utilização da infra-estrutura existente da justiça para ações de habeas-data, sabe-se que estão sobrecarregadas as cortes, ocasionando atrasos na resolução de processos. Com o crescimento do uso de bases de dados pessoais no comércio eletrônico, é possível que o habeas-data não tenha a agilidade necessária para acompanhar as necessidades. Outro problema previsível é sua aplicação em casos onde os dados em questão estão armazenados fora do país, e, portanto, da jurisdição nacional. Uma solução possível seria a existência de acordos regionais, como dos países da UE, para uniformizar a aplicação do conceito legal.

Em suma, com o seu aprimoramento e difusão, o habeas-data oferece uma terceira via para a proteção das bases de dados pessoais, diferente da legislação específica da Europa e da auto-regulamentação dos EUA. É provável que o conceito seja considerada "adequado" para permitir a exportação de dados por países da UE, embora isto ainda não tenha sido posto à prova. Finalmente, o habeas-data pode oferecer uma solução geral para o problema de privacidade de informações pessoais, podendo ser exportado ainda mais amplamente.