Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


06/05/2001
Software aberto, software livre e propriedade intelectual

Nas últimas duas colunas, ao discutir a segurança das urnas eletrônicas, mencionei a recomendação do uso de software aberto ("open source"), o que permitiria a revisão pelos pares ("peer review") do software usado, aumentando a confiança pela comunidade na sua qualidade. Para quem não sabe já, a questão do software aberto é um divisor das águas na comunidade de computação, colocando em franca oposição poderosos interesses comerciais (leia-se Microsoft) e um espírito comunitário que sempre caracterizou boa parte dos programadores de software.

A pessoa que mais que ninguém personifica este espírito é Richard Stallman (www.stallman.org), que depois de trabalhar em projetos de software no MIT saiu em 1984 para criar o projeto GNU ("GNU is Not Unix") (www.gnu.org/gnu/thegnuproject.html), com o objetivo de desenvolver um sistema operacional compatível com o Unix. Stallman justifica o projeto GNU como uma opção deliberada de rejeitar a noção de software como segredo industrial. Tradicionalmente, o software, especialmente o software básico, como sistema operacional, compiladores e outras utilitários, havia sido desenvolvido, estendido e mantido por uma comunidade ampla de programadores. Nos anos 80 isto começou a mudar. O sistema Unix era propriedade da AT&T, empresa gigante das telecomunicações, que havia financiado seu desenvolvimento. Nessa época nem era possível ter o Unix legalmente no Brasil, pois a AT&T não emitia licenças para seu uso no Brasil, conforme explicado em resposta negativa escrita que recebi a um pedido meu.

O projeto GNU foi criado para manter acesa a chama de software livre, que poderia ser compartilhado com outros, e modificado de acordo com as necessidades do usuário. Para reforçar estas características foi criada a Licença Pública Geral de GNU (GPL/GNU) (www.geocities.com/CollegePark/Union/3590/licenca_gnu.html), que são os termos para que um software possa ser considerado como parte do projeto GNU. O ponto chave é que seja franqueado o acesso a ele por terceiros para futura modificação, ou seja, o criador do software abre mão dos direitos de propriedade intelectual. Logo, não seria possível "privatizar" software GNU, usando-o para gerar um software proprietário. Num trocadilho em inglês, o conceito assim criado passou a ser chamado de "copyleft", para indicar uma reversão das expectativas do "copyright", tradução de "direitos autorais", e normalmente usado para limitar o uso de cópias de uma obra intelectual. Com "copyleft", não há restrição de cópia, exceto para usar a cópia para criar um software não copiável.

O projeto GNU desenvolveu ou internou muito software, sob a inspiração de Stallman e seus colegas, mas a honra de criar o núcleo de um sistema operacional coube primeiro a Linus Torvalds da Finlândia, que desenvolveu enquanto aluno de graduação, e ainda desenvolve, o Linux. Na verdade, o desenvolvimento de Linux era e é feito por uma equipe de voluntários, coordenada por Linus Torvalds, que gerencia esta atividade. Foi adotada para o Linux os termos da Licença Geral Pública do GNU, para chancelá-lo firmemente como software livre. Normalmente, o Linux é distribuído acompanhado de software do projeto GNU, e este conjunto todo é livre de licenças restritivas, podendo ser reproduzido e modificado à vontade.

Nos últimos anos, além do Linux e o software GNU, diversos outros itens de software foram tornados abertos por seus autores. Entre estes podem ser incluídos o servidor WWW Apache, o servidor de correio Sendmail, o gerenciador de arquivos Windows SAMBA, e o ambiente de janelas KDE. Talvez o passo mais significativo tenha sido a abertura em 1998 pela Netscape Corporation do seu navegador WWW Mozilla. Isto inspirou a criação no mesmo ano da Open Source Initiative (OSI) (www.opensource.org), amplamente apoiada pela comunidade de criadores de software independentes, com a exceção principal de Stallman, que critica o uso do termo "software aberto" (www.gnu.org/philosophy/free-software-for-freedom.html). A posição da OSI é que a defesa de software aberto se justifica com argumentos econômicos, mais do que os argumentos fundamentalmente morais do Stallman a favor da liberdade do software. Para a OSI, a abertura do software permite a colaboração de outros usuários para detectar e consertar rapidamente falhas do seu projeto. Em conseqüência, aumenta a confiabilidade e reduz o custo do software, o que é bom para todos. Para um ensaio sobre os benefícios deste tipo de desenvolvimento comparado com a alternativa tradicional, refere-se ao "A catedral e o bazar", de autoria de Eric Raymond, em tradução para o português por Erik Kohler (www.geocities.com/CollegePark/Union/3590/pt-cathedral-bazaar.html).

O crescimento do Linux e outros produtos chancelados pela OSI incomoda bastante a Microsoft. Já em 1998, o Apache (servidor WWW) estava sendo usado na maioria dos sítios Internet, e as vendas do concorrente Internet Information Server (IIS) da Microsoft alcançavam apenas 15% do mercado. Em outubro desse ano foram vazados relatórios internos da Microsoft sobre a concorrência do software aberto, que sugeriram à direção da empresa linhas de reação. Estes documentos, chamados dos documentos de Halloween, foram publicados no site da OSI, com anotações de Eric Raymond (www.opensource.org/halloween/index.html).

Entre as linhas de reação propostas para a Microsoft estavam a exploração da tática de FUD (Fear, Uncertainty and Doubt - Medo, Incerteza e Dúvida), onde um líder de mercado tenta manter a lealdade do seu freguês, assustando-o com os problemas que possam advir da adoção da solução do seu concorrente (www.geocities.com/SiliconValley/Hills/9267/fuddef.html), como exemplificado pela página WWW www.microsoft.com/ntserver/nts/news/msnw/LinuxMyths.asp. Mais importante, do ponto de vista técnico, era a proposta de procurar "decomoditizar" os padrões usados para comunicação pela Internet, fazendo substitui-los por padrões proprietários disponíveis apenas através de produtos da Microsoft. Seria importante reconhecer aqui que o que permite concorrer bem com os produtos da Microsoft para a Internet é a existência de padrões de comunicação abertos (os protocolos TCP/IP), e é natural que um produtor grande como ela iria querer aleijar a concorrência desta forma, como ela já fez com produtos alternativos que possam ser usados no seu sistema operacional Windows. Afinal, é por precisamente esta prática que a Microsoft é o objeto de uma ação anti-truste na justiça norte-americana.

Na semana passada, vimos mais uma rodada da guerra entre Microsoft e a OSI. Num discurso em Nova Iorque, um dos vice-presidentes da Microsoft acenou com mudanças na política de licenciamento do seu software, para abrir seu detalhes de forma controlado (www.microsoft.com/presspass/exec/craig/05-03sharedsource.asp). Chamado de "shared source" (código compartilhado), em contraste com "open source" (software aberto), foi declarado que a Microsoft acredita que a propriedade intelectual do software é a alma do negócio, e, embora pretende obter os benefícios já conhecidos de compartilhar o software com um número grande de usuários, ela não pretende abrir mão da sua propriedade. Em particular, foi tachado de "vírus" a licença "copyleft" do GNU, pois infecta todo o software com que entra em contato, tornando-o de domínio público, o que contraria o modelo de negócio que a Microsoft defende para sucesso.

Uma resposta rápida ao discurso do vice-presidente da Microsoft veio de Linus Torvalds, numa entrevista publicada no mesmo dia na coluna de Dan Gilmore (web.siliconvalley.com/content/sv/2001/05/03/opinion/dgillmor/weblog/torvalds.htm). Nesta entrevista Torvalds lembra que o movimento de software aberto lembra muito a maneira pela qual ocorrem avanços em ciência e tecnologia, onde há grande difusão e fertalização cruzada de idéias, e menciona as contribuições de Einstein, Rutherford, Bohr e Leonardo da Vinci como tendo contribuído muito mais à humanidade do que qualquer empresa tenha feito. Termina citando Isaac Newton, que reconheceu sua dívida aos seus antecessores com as palavras: "Se eu consegui enxergar mais longe, foi apenas porque eu pude me apoiar nos ombros de gigantes".

É muito cedo para saber se esta última iniciativa da Microsoft vai surtir o efeito pretendido de refrear os avanços de software aberto sobre as posições do mercado por ela defendidas. O apelo do software aberto é visto como fundamental em diversos países. Existem propostas sérias na França e Alemanha para a adoção exclusiva de software aberto pelo governo destes países. Propostas de computadores populares, como na Índia e no Brasil (www.luar.dcc.ufmg.br/faq/index.html), dependem do uso de software aberto para atender as suas necessidades. Em última análise, como reconhece a OSI, a decisão será tomada em cada caso por motivos racionais, baseado numa ampla avaliação dos benefícios e custos, inclusive os não estritamente financeiros.