Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


17/09/2001
A democracia e o perigo das emergências

Os terríveis atentados praticados em Nova Iorque e Washington na última terça feira, dia 11 de setembro, continuam a dominar todos os meios de comunicação, não só pela escala dos estragos físicos e humanos, tão bem documentados, como pelos seus desdobramentos futuros. O governo norte-americano, aproveitando de uma onda de repúdio e desejo de vingança da sua população pela ferida ao seu orgulho nacional, quer caçar e punir os responsáveis, e fala de lançar-se numa guerra sem tréguas contra o terrorismo. O próprio congresso norte-americano o apoiou imediatamente, dando ao governo carta branca para prosseguir com as ações militares consideradas necessárias, embora estas não tivessem sido definidas previamente. Ao mesmo tempo há vozes mais ponderadas entre os norte-americanos, e em outros países, que urgem evitar uma resposta precipitada. No momento estas vozes são minoritárias, e não fica claro se seus conselhos serão ouvidos.

Ao mesmo tempo que se decide o futuro da política externa dos EUA, está em jogo também a política interna, pois os defensores da guerra contra o terrorismo tentam impor sua agenda política ao país, e encontra forte ressonância no congresso. Argumentando que os atentados de terça feira foram conseqüências de falhas no combate ao terrorismo decorrentes das limitações legais impostas às agências da segurança pública, advogam uma "relativação" dos direitos individuais, incluindo uma redução dos direitos de estrangeiros, e a remoção das restrições legais à escuta das comunicações telefônicas e pela Internet. Impressiona a notícia que vários provedores Internet receberam visitas de agentes do FBI na tarde do próprio dia dos atentados, quando teriam solicitado a instalação imediata do dispositivo polêmico "Carnivore", amplamente resistida antes desse dia (www.wired.com/news/politics/0,1283,46747,00.html). Já foi aprovada pelo senado uma expansão de poderes de escuta telefônica, e houve apelos para criminalizar o uso de software criptográfico que não tivesse uma porta de fundos que permitisse que o governo lesse as mensagens cifradas (www.wired.com/news/politics/0,1283,46816,00.html).

Não é mera coincidência que tenham sido aprovadas ou promovidas estas medidas na esteira dos atentados: seus proponentes aproveitaram bem a oportunidade para novamente apresentar seus argumentos, normalmente rejeitados em tempos mais tranqüilos. Nos EUA, como em muitas sociedades, há uma tensão permanente entre as tendências libertária e autoritária, que é caracterizada por um equilíbrio dinâmica entre elas. Os recentes eventos podem ter mudado este ponto de equilíbrio, na direção de uma sociedade mais autoritária. Certamente isto seria do agrado de muitos, inclusive no novo governo de Bush, que se sentiriam tolhidos pela obrigação de respeitar as liberdades civis das pessoas, entronizadas em leis e na constituição.

Os EUA nasceram no século 18 de uma rebelião contra o governo colonial da Inglaterra, e era muito forte na nova república a defesa dos direitos individuais, maltratados pelo governo colonial. Sua constituição, adotada naquela época, inclui desde cedo dispositivos em defesa dos direitos individuais, que têm sido uma inspiração para outros países que mais tarde alcançariam sua liberdade e independência políticas. A tendência libertária mencionada acima defende a atualização destes direitos no mundo moderno em que vivemos. Por exemplo, no dia 14, o Center for Democracy and Technology (CDT) publicou uma nota em que reafirma sua defesa da liberdade, abertura e diversidade que enriquecem a sociedade norte-americana, e sua fé em três pilares da sociedade atual: que não se deve trocar liberdade para conseguir a segurança, que os valores democráticas de uma sociedade evidenciam a sua força e não a sua fraqueza, e que as redes de comunicação abertas atuam como uma força positiva na luta contra violência e intolerância (www.cdt.org/security/cdtstatement.shtml).

Sentimentos semelhantes foram expressos neste dias difíceis por dois renomados criptógrafos: Bruce Schneier e Matt Blaze. Bruce Schneier, cujo último livro foi resenhado neste espaço em 23 de outubro de 2000, recorda os palavras de Benjamin Franklin, pensador e participante na Guerra de Independência dos EUA: "aqueles que abrem mão de liberdades essenciais para conseguir um pouco de segurança temporária merecem nem a liberdade e nem a segurança" (www.counterpane.com/crypto-gram-0109.html). Matt Blaze realça o papel fundamental da Internet na vida cotidiana, pois ela se coloca ao lado da constituição, possuindo o poder tanto de proteger a população, como de torná-la mais vulnerável, a tais excrescências como a invasão de domicílio e a censura prévia (www.crypto.com/wtc.html).

Com uma república, uma democracia e uma constituição bem mais novas do que os norte-americanos, os brasileiros devem ficar atentos à mesma tensão entre as tendências libertária e autoritária no cenário nacional. Foi neste sentido que foi dado um brado por Jânio de Freitas no último dia 14 de setembro na sua coluna, "Sonho fascista", na Folha de São Paulo. Denunciava declaração do Presidente Fernando Henrique na véspera em encontro com lideranças partidárias, quando ele aproveitava os atentados nos EUA para pedir "instrumentos para o combate ao crime organizado", na forma de relaxar o regulamento de escuta telefônica. É evidente que a tendência autoritária aqui também possui uma agenda para ser promovida oportunisticamente. Não é nada claro porque foi escolhido liberalizar justamente a escuta telefônica, que parece já ter extravasado qualquer medida de controle justificável, segundo reportagem publicado em 2 de setembro pelo mesma Folha de São Paulo, que afirmou que 65 telefones celulares e da "ordem de mil" telefones fixos estavam sendo grampeados com ordem judicial, apenas na cidade do Rio de Janeiro. Nestas condições não deve causar surpresa que aparecem freqüentemente na mídia transcrições de telefonemas de todo tipo de pessoa, obtidas não se sabe bem como. Quanto ao uso nacional de criptografia, já vem prevista na Medida Provisória 2.200 a porta de fundos para o governo ter acesso ao conteúdo de mensagens cifradas, através do mecanismo de depósito de chaves privadas, apesar de todas as ameaças que isto traz para a segurança do seu uso (v. coluna de 16 de julho).

Já foram vistas no passado outras ocasiões emergenciais aproveitadas para introduzir novas leis, a título de defender a segurança pública ou a segurança nacional em diferentes países. Nos EUA são de triste memória a internação dos nipo-americanos depois do ataque japonês a Pearl Harbour, e o início da guerra de Vietnã depois da passagem da Resolução de Tonkim. A história brasileira do século 20 também teve seus episódios negros, em suposta reação a emergências. Melhor seria contar primeiro até mil, e decidir quais devem ser os remédios a serem adotados na luz fria da razão.