Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


01/02/2002
O futuro das comunicações

O pedido esta semana de concordata pela empresa de telecomunicações Global Crossing (www.estadao.com.br/tecnologia/telecom/2002/jan/28/254.htm) é a lembrança mais recente da lição principal da implosão das companhias ponto-com: não basta ter boas idéias - é essencial também um bom plano de negócios. A Global Crossing é o exemplo mais espetacular até o momento das dificuldades enfrentadas pelas empresas novas de telecomunicações em se estabelecerem num mundo sendo chacoalhado por mudanças revolucionárias em tecnologias de comunicações. O tamanho do estrago é maior que a soma das quatro maiores falências já registradas no setor das telecomunicações, e chega à metade da falência da Enron, a maior já registrada.

A Global Crossing (www.globalcrossing.com) foi fundada em 1997, e concentrou suas atividades em instalar e operar 100.000 km de cabos de fibra óptica para a interconexão, geralmente por via submarina, de 200 cidades em 27 países nas Américas, na Ásia e na Europa. Está presente no Brasil, onde seu cabo "Southern Crossing", que faz a volta do continente sul-americano, aporta em Fortaleza, Rio de Janeiro e Santos.

Foram gastos 15 bilhões de dólares para montar esta rede, recursos obtidos através de lançamento de ações e contratação de dívidas com bancos, fornecedores e outras empresas de telecomunicações. As ações da empresa, antes uma das estrelas do mercado, chegaram a ser vendidas por 60 dólares em março de 2000. Entretanto, a empresa nunca mostrou retorno nos seus investimentos. Seu plano de negócios era vender capacidade de comunicação internacional para companhias de telecomunicações, provedores Internet e empresas grandes. Infelizmente, não conseguiu atrair os clientes que precisava para ter lucro, e até o momento acumulou perdas nas suas operações de 7 bilhões de dólares desde sua criação. Antes do seu pedido de concordata, seus ativos totalizaram 22 bilhões de dólares, contra dívidas de 12 bilhões de dólares, e o preço das suas ações havia caído para 13 centavos de dólar, uma perda no seu valor de mercado de 40 bilhões de dólares em pouco menos de dois anos. O pedido de concordata, se aceito, permitiria reorganizar a empresa para torná-la viável financeiramente.

Como foi mencionado, a Global Crossing é a maior vítima até o momento da enorme freada dada à transformação do mundo das telecomunicações conhecida como a revolução ponto-com. Esta transformação consiste em levar até as últimas conseqüências o potencial de transmitir informação a taxas absolutamente inimagináveis há poucos anos, usando as tecnologias de fibra óptica e rádio moderno, junto com a inteligência dos computadores na ponta. Hoje já sabemos transmitir terabits (um milhão de megabits) por segundo por uma fibra óptica, e gigabits por segundo usando rádio. Os computadores pessoais, sempre mais rápidos, nos traz a capacidade de gerar e visualizar vídeo de alta definição, além de armazenar e processar rápida e convenientemente enormes massas de informação, que podem ser buscadas pela Internet, desde que tenhamos uma boa conexão a ela. Não todos têm esta boa conexão. Na verdade, poucos têm hoje. Por quê? É a resposta a esta pergunta que ajuda a entender o que aconteceu à Global Crossing, pois a esta empresa faltam, justamente, clientes para utilizar a capacidade que seus cabos submarinos colocam à disposição.

Numa ensaio bastante interessante, publicado recentemente, esta questão foi examinado por David Isenberg (www.isen.com). Isenberg já nos brindou em 1997 com a definição da Rede Estúpida (www.hyperorg.com/misc/stupidnet.html), como sendo a antítese da Rede Inteligente, tecnologia defendida pelas empresas de telefonia tradicional, e responsável para serviços disponíveis hoje através do telefone, tais como ligações 0-800, redirecionamento de chamadas, chamada em espera, e assim em diante. A maioria destes serviços foi idealizada como maneira de explorar o cliente cativo de telefonia, permitindo cobrar-lhe adicionalmente pelos novos serviços, de baixo custo marginal de implementação, uma vez que a própria rede de telefonia já precisa de muita inteligência internamente, para permitir funcionar com terminais não inteligentes, que são os telefones de hoje. Para Isenberg, a Rede Inteligente perpetua a visão tradicional dos serviços de telecomunicações, um modelo de escassez, explorado há muitos anos em regime monopolista, onde a mesma empresa que explora o serviço controla também a infra-estrutura de rede. Em contrapartida, caracteriza a Rede Estúpida como a melhor resposta à abundância de recursos de telecomunicações que começou a se evidenciar nos últimos dez a quinze anos. Na Rede Estúpida, a rede (digital) meramente transmite os bits eficientemente entre as pontas, onde está localizada a inteligência. A oferta de serviços é desvinculada do transporte de informação, podendo ser oferecida por terceiros em regime competitivo. O funcionamento da Internet mostra que a Rede Estúpida é bem viável, e muito esforço hoje está sendo empreendido em seu aprimoramento.

No seu ensaio mais recente, Isenberg aponta o que ele chama do Paradoxo da Melhor Rede, resumido em "A melhor rede é aquela que menos dinheiro gera para seu operador" (http://www.netparadox.com). No ensaio argumenta que a melhor rede, do ponto de vista do usuário e da comunidade em geral, é evidentemente a Rede Estúpida, pois, sem a necessidade de prover serviços além de simples transporte de bits, vira uma comodidade, aberta a exploração competitiva, e com preços atraentes.

Desde o início de exploração comercial da Internet, que as pegaram completamente desprevenidas, as empresas tradicionais de telefonia têm se empenhado também em melhorar sua infra-estrutura de rede para atender ao aumento de demanda por acesso à Internet. Isto envolveu aumentar a capacidade das suas redes backbone, a capacidade das suas centrais telefônicas para atender ao acesso discado aos provedores, e a capacidade ao usuário final, através de soluções como RDSI (telefonia digital) e ADSL (os serviços Speedy da Telefônica, Velox da Telemar). Entretanto, nestas áreas começam a surgir competidores: novos redes backbone, e acesso ao usuário final através de TV a cabo e rádio. Em alguns países começam a aparecer soluções de acesso baseadas em transmissão por fibras ópticas comunitárias. Enfim, o antigo monopólio de telecomunicações das empresas de telefonia é ameaçada. Pior para elas, os novos serviços não são tão rentáveis quanto aos antigos, exclusivamente de telefonia.

Finalmente, seu serviço mais rentável, a telefonia, pode vir a ser provido a sua revelia, através da Internet, na modalidade "telefonia IP". E isto ameaça no fundo seu modelo de negócios, que supõe um controle bastante grande dos seus clientes cativos de telefonia, permitindo fazer investimentos grandes a serem amortizados em prazos longos. Do seu ponto de vista, a solução ADSL é aceitável, pois aproveita do investimento já amortizado da rede de fios já usada por telefonia. Não é uma mudança tecnológica que rompe com o passado. Isenberg argumenta que as companhias de telecomunicações terão necessariamente de reformular seus planos de negócios para sobreviverem neste novo mundo. Isto as tornaria companhias diferentes das atuais, e as atuais empresas não seriam necessariamente as melhores para operar as novas redes.

Entretanto, estas empresas tradicionais ainda têm muito poder e influência, mesmo que não sejam ainda monopólios. Em todas os países, as comunicações são reconhecidas como uma preocupação legítima do governo, pela dependência delas que tem a sociedade moderna. Isto levou à criação de empresas estatais do ramo, e, mais recentemente, à regulamentação de empresas concessionárias, realizada no Brasil através da Anatel. Evidentemente, mesmo num regime de telecomunicações privadas, há grande interlocução entre o órgão regulador e as grandes empresas estabelecidas, e é natural que estas empresas usam estes contatos para defender seus interesses e seu modelo de negócios contra novos paradigmas.

No fundo, a questão da melhor tecnologia e da Melhor Rede se torna uma questão política. A melhor solução tecnológica é também a mais aberta politicamente. Além de ser mais barata e aberta à inovação, ela contribui para a construção de uma sociedade livre, democrática e participatória, proporcionando também as oportunidades para empreendedores levarem suas novas idéias e projetos ao mercado, para suceder ou não. Os problemas do modelo de negócios das atuais companhias de telecomunicações não deveriam se tornar um empecilho para que alcancemos os benefícios que viriam da Melhor Rede.

Isenberg advoga mudanças na legislação para poder resolver seu paradoxo. Embora que considere a possibilidade de confiar ao governo a tarefa de construir a nova infra-estrutura de Melhor Rede, ele rejeita esta solução estatizante, pela provável ineficiência e falta de flexibilidade que tendem a acompanhar empreendimentos governamentais. Por outro lado, rejeita a solução pura do mercado, pois teria sido a operação do mercado que nos trouxe até onde estamos, pelo favorecimento das grandes empresas existentes com suas economias de escala. Sua proposta tem vários elementos, e citaremos apenas os dois mais importantes. Primeiro, o governo deveria adotar publicamente como objetivo estratégico o acesso do cidadão à Internet em banda larga (alta velocidade, via conexões ópticas ou de rádio) num prazo curto (sugere cinco anos para os EUA), iniciando-se pelas escolas e prédios públicos, seguidos por empresas, outras organizações privadas e domicílios. Segundo, para facilitar este desenvolvimento, dividiria as atuais empresas de telecomunicações em empresas de transporte e empresas de serviços. As empresas de transporte teriam incentivo governamental (garantia de retorno no seu investimento), para tornarem disponíveis a todos os provedores de serviço a infra-estrutura de conectividade necessária para chegar até os clientes. Estes provedores não seriam regulamentados, e operariam num mercado competitivo.

A proposta é mais extensa, e inclui considerações de universalidade de acesso, para evitar a exclusão de áreas remotas ou menos favorecidas economicamente. Também sugere a realização de projetos pilotos para experimentar diferentes formas de construir o acesso em alta velocidade ao usuário final, através do financiamento para o cliente da infra-estrutura necessária, ou pelo uso de fibra comunitária, onde a infra-estrutura seria custeada pela comunidade beneficiária, e explorada por ela.

Embora seja dirigida sua análise à situação nos EUA, os desafios e benefícios em potencial em outros países diferem apenas em escala, e os remédios propostos têm aplicabilidade mais ampla, em particular no Brasil. Na véspera de uma eleição presidencial, seria oportuno ampliar a discussão sobre os rumos que daria o desenvolvimento das comunicações no país. Pretendemos voltar a tratar deste tema futuramente.