Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


16/01/2002
Uma rede sustentada pelo amor

Na semana passada li um artigo por Kevin Kelly, que havia sido publicado há duas semanas no Wall Street Journal (infelizmente o texto deste jornal não está disponível gratuitamente). O título do artigo era "The Web Runs on Love, not Greed", que traduz para "O que sustenta a Rede é o amor, e não a cobiça". A tese do autor é que a Internet, e especialmente a aplicação WWW, é uma obra principalmente não comercial, montada com carinho e capricho por milhões de pessoas espalhadas mundo afora.

Kevin Kelly tem profundas raízes neste mundo não corporativo, tendo se envolvido com uma série de iniciativas inovadoras e francamente comunitárias e libertárias ao longo dos últimos vinte anos. Durante os anos 80 se envolveu com o movimento Whole Earth (Terra Inteira), fundado nos anos 60 por Stewart Brand (www.well.com/user/sbb/bio.html) que usa como símbolo uma foto tirada do espaço da Terra inteira, iluminada pelo sol. A ênfase principal deste movimento foi a capacitação dos indivíduos e comunidades para melhorar a qualidade da suas vidas, tornando fácil o acesso a "ferramentas" para a vida. Durante vários anos foram editadas por Stewart Brand diversas edições do Whole Earth Catalog, um compêndio impresso repleto destas ferramentas. Na edição de 1981, com mais de 600 páginas, cada uma do dobro de uma folha de tamanho "carta", as seções incluídas foram: como compreender sistemas inteiros, utilização do solo, tecnologia suave ("soft"), artesanato, comunidade, política, nomadismo, comunicações, aprendizagem, negócios. (Eu comprei esta edição em 1983 e foi bem útil para mim durante vários anos.)

Manter catálogos impressos como este já não tem sentido na era da Internet, pela criação de outras formas de atualização das informações. A adoção de atualização incremental começou em 1980 com o lançamento da revista trimestral, que mais tarde adotou o nome Whole Earth, hoje disponível também na Rede (www.wholeearthmag.com) Foi em 1984 que Kelly juntou-se ao movimento Whole Earth para co-editar esta revista, e colaborar com outras iniciativas. Entre estas devemos citar a criação em 1995 pelo movimento do primeiro sistema de conferências eletrônicas, chamado The WELL (Whole Earth ´Lectronic Link), que continua até hoje, tendo migrado para a Internet depois que isto se tornou possível (www.well.com)

Kelly se desligou do movimento Whole Earth em 1992 para participar do lançamento da depois premiada revista Wired (www.wired.com/wired/current.html), da qual foi editor executivo até 1999. Neste período também publicou dois livros, Out of Control, e New Rules for the New Economy, ambos disponíveis na íntegra no seu sítio pessoal (www.kk.org).(Este último título tem edição brasileira, lançada pela Editora Objetiva, e chamada Novas regras para uma nova economia.) O primeiro livro apresenta uma abordagem biológica da interconexão de computadores, e suas conseqüências; o segundo tenta explicar o seu impacto no mundo dos negócios.

Voltando ao seu recente artigo do Wall Street Journal, Kelly contesta os palpiteiros negativos que igualam o fim da revolução ponto-com de 2001 com o fim da Internet. Admite que houve, de fato, grandes perdas financeiras e retraimento na área comercial, com a extinção de muitas empresas ponto-com e postos de trabalho. Entretanto prefere olhar o que permaneceu, o invés do que desapareceu com o final desta revolução ponto-com. Lembrando que seu início, marcado pelo lançamento público de ações na empresa Netscape em 1995, ocorreu há apenas 7 anos. Desde então foram confeccionadas mais que 3 bilhões de páginas WWW, acessíveis publicamente em mais de 20 milhões de servidores. Cada página destas precisa ser projetada, codificada e colocada num servidor. Quem, há sete anos, poderia ter previsto a montagem de um acervo tão amplo de informação, disponível a todos, e cobrindo praticamente qualquer assunto conhecido? Quem poderia pagar por isto? A resposta, evidentemente, é ninguém, pois o custo seria impossivelmente alto. E o crescimento continua.

Neste curto espaço de sete anos foi construído algo inteiramente novo no mundo: uma janela que cada internauta tem, que lhe permita examinar esta enorme riqueza de informação que habita nossa Internet de hoje, e que era absolutamente inimaginável uns poucos anos atrás. Hoje, a qualquer hora, podemos ter acesso a verdadeiras enciclopédias, mapas para nos orientar, previsão do tempo, resultados de competições esportivas, música, respostas a dúvidas de saúde, acesso a peritos em qualquer área, a compra de ingressos e passagens, correio eletrônico 24 horas por dia, e notícias de milhares de jornais em centenas de línguas.

Estamos, portanto, diante um paradoxo. Embora boa parte do conteúdo deste acervo foi criada como empreendimento comercial, isto não é verdade para a maior parte, talvez 70% do total, que são de entusiastas, de instituições que não ambicionam lucros com esta atividade, e de entidades públicas. Cada um contribui seu quinhão para o acervo comum, disponível a todos. Esta é a Internet que é fruto do amor, doado livremente e sem a expectativa de recompensa material. Com estas dádivas, ficamos todos mais ricos. E a rede cresce, pois é sempre possível acrescentar mais e novas fontes de informação, com novos livros, músicas e filmes. Nas palavras de Kevin Kelly, estamos construindo um sonho coletivo, criado por pessoas comuns que compartilham o que elas amam. Isto é o verdadeiro milagre da Internet, que continua firme e forte, apesar dos reveses econômicos do ano passado.