Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2003       Página Inicial (Índice)    


17/02/2003
O papel das redes na colaboração científica

Há duas semanas, passei os oito dias numa série de oficinas e reuniões realizadas em Miami, onde foram discutidos assuntos relacionados à infra-estrutura e às aplicações de redes de computadores avançadas para apoiar a colaboração científica em escala internacional. Na verdade, as redes de computadores dedicadas ao uso da comunidade de ensino e pesquisa sempre tiveram e ainda têm como sua justificativa promover o intercâmbio e colaboração à distância. No Brasil, as primeiras conexões às redes globais de informação foram estabelecidas com a justificativa explícita de dar este tipo de apoio. A primeira destas conexões foi estabelecida à rede BITNET em 1988 pelo Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) no Rio de Janeiro, que na época era do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, e hoje é unidade de pesquisa do MCT. Esta conexão explicitamente serviria (e serviu) à comunidade de pesquisadores nacionais, cujo atendimento é a razão de ser do CNPq. As pesquisadores, em todos pontos do país, fariam acesso ao mundo externo através da conexão do LNCC. A segunda conexão, no mesmo ano, foi realizada às redes BITNET e HEPNET pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SP - FAPESP, e serviria (e serviu) à comunidade de educação e pesquisa sustentada pelo governo estadual. Durante os próximos dois anos, a partir destas duas instituições irradiavam conexões para a maioria de grandes universidades e institutos de pesquisa no Brasil.

Estes acessos às redes de informação mundiais tiveram um extraordinário efeito sobre o estado da ciência nacional, que passou repentinamente da posição isolada, passiva e atrasada em respeito dos estudos realizados aqui para poder desfrutar não apenas de meios de realizar efetivamente a colaboração a nível nacional, vencendo as enormes distâncias geográficas que separam nossas instituições, como também inseria nossos pesquisadores em contato imediato com seus pares no exterior. É difícil exagerar as conseqüências desta aproximação, pois, além de superar as dificuldades das distâncias tanto nacionais como internacionais (dizem que as redes acabam com a "tirania da geografia"), ela também ocorreu no plano temporal. De uma situação onde o pesquisador trabalhava sozinho, ou apenas com seu grupo local, freqüentemente estudando problemas muitas vezes já resolvidas antes no exterior, mas sem ter acesso a esta informação, passamos em questão de dois anos para estarmos afinados com o mundo externo, tendo acesso imediato aos resultados de outros pesquisadores em todo o mundo, e podendo fazer conhecidos igualmente rapidamente os resultados dos nossos próprios trabalhos. Podemos dizer que foi esta a época quando foi "globalizada" a ciência brasileira.

Nos encontros em Miami houve presença significativa de brasileiros, organizada principalmente pela FAPESP e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Era natural a presença destas instituições pois o primeiro encontro foi da AmPath (Pathway to the Americas), projeto norte-americano para aproximar-se as redes de computadores acadêmicas da América Latina às suas congêneres nos EUA e no resto do mundo. Este projeto é coordenado pela Universidade Internacional de Flórida (FIU) e conta com o apoio da norte-americana Fundação Nacional de Ciências (NSF) e da operadora de telecomunicações internacionais, Global Crossing. Uma descrição deste projeto se encontra em www.ampath.fiu.edu, e revela que hoje conta com ligações entre Miami e as redes nacionais de Argentina, Brasil e Chile, além da redes estadual de São Paulo (ANSP). Espera-se adesões em breve de Venezuela e Panamá.

Este encontro da AmPath deu oportunidade de apresentar também os benefícios da colaboração viabilizada pelo interconexão internacional entre as redes, e foram proferidas várias palestras atestando ao que já vinha sendo feito, além de expor planos para novos avanços através de novos grupos de trabalho formados no encontro. Estes tratavam de áreas de aplicação temáticas, incluindo astronomia, física de altas energias, estudos meteorológicos e climatológicos, e técnicas de comunicação multimídia remota (videoconferências e vídeo interativo). Espaço também foi dado para uma apresentação remota, via videoconferência, dada pelo Diretor Científico da FAPESP, professor José Fernando Pérez, que enalteceu a ciência praticada em São Paulo e apoiada por sua instituição. A programação do encontro, bem como as apresentações, podem ser encontradas em www.ampath.fiu.edu/Miami2003.htm.

Sem dúvida, o projeto AmPath vem tendo um grande impacto positivo sobre a colaboração científica entre cientistas da nossa região e de outros continentes. Entretanto, seus benefícios precisam ser estendidos quantitativa e qualitativamente. O modelo usado pelo AmPath supõe que apenas um tamanho (de conexão) cabe a todos os possíveis parceiros. Entretanto, há quase duas dúzias de parceiros em potencial em diferentes países da América Latina, em diferentes estágios de evolução das suas redes acadêmicas. As redes mais robustas e extensas são de Argentina, Brasil, Chile e México, onde tem uma história de acompanhamento da evolução desta área desde os primórdios nos anos 1980. Para estes países o modelo AmPath pode até servir, mas a capacidade de comunicação oferecida pode ser insuficiente em pouco tempo. Por outro lado, há muitos países na região para quem não apenas a capacidade de conexão AmPath será excessiva pelo futuro previsível, como o custo de instalar e operá-la, mesmo sendo altamente subsidiado, inviabiliza sua participação. Finalmente, o modelo AmPath pressupõe que todo o tráfego internacional de cada país atendido passará por Miami, mesmo quando destinado a um país vizinho. Isto é ineficiente e mais caro que as alternativas mais intuitivas.

Por estas razões, as redes de Argentina, Brasil, Chile e México iniciaram contatos já em 2001, procurando um outro modelo mais apropriado para a comunicação entre as redes acadêmicas da América Latina, que privilegiasse a colaboração regional. Esta iniciativa tomou corpo mais substancial com o anúncio do programa @LIS (Alliance for the Information Society) da União Européia (UE) em início de 2002, e levou à formulação de um projeto de colaboração entre as redes latino-americanas, que ganhou o nome CLARA - Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas, concretizada através de uma rede de interconexão que daria acesso de todos as redes parceiras inicialmente às rede européias (v. coluna de 27 de junho de 2002). No presente momento os estatutos da organização CLARA estão sendo revisados, devendo ser adotados em breve pelas futuras sócias. Ao mesmo tempo está adiantado o processo de preparação do projeto de interconexão destas redes sócias, para submissão em breve ao financiamento da UE através do programa @LIS. Seu projeto técnico reconhece as diferenças entre os países da região, adaptando a capacidade (e custo) da cada conexão às necessidades de cada país. (Uma apresentação da CLARA foi feita no encontro da AmPath por Carlos Frank da Argentina, e se encontra no sítio do evento.)

As questões que surgem naturalmente a quem já conhece o projeto AmPath e agora toma conhecimento do projeto CLARA são como estes dois projetos vão se relacionar. Por um lado, temos em funcionamento uma rede de interconexão parcial aos EUA de redes latino-americanas, pela qual é possível se comunicar com a Europa. Pelo outro, os europeus se dispõem a ajudar as redes latino-americanas a se ligarem entre si, para que, juntas, consigam se comunicar com a Europa, e, eventualmente os EUA. Nesta saudável concorrência entre norte-americanos e europeus pela capacidade de se comunicar com as redes acadêmicas da América Latina, devemos todos sair ganhando, auxiliados por um exercício de diplomacia já iniciado em Miami recentemente. Em paralelo às reuniões formais, havia diversas conversas entre os interessados presentes, com o objetivo de encontrar formas de aproveitar para o bem maior os recursos colocados à disposição dos projetos separados. Por exemplo, a rede mexicana propôs que a "sua" conexão no projeto AmPath fosse colocada à disposição do projeto da CLARA, para melhorar a conectividade regional, e esta sugestão foi bem recebida pelos interlocutores norte-americanos. A expectativa é que vai progredir o projeto da CLARA para interligar ainda este ano as redes de mais de uma dúzia de países na região, e que a rede da CLARA permita acesso às redes da UE e às dos EUA. Vamos torcer que sim.

As outras questões tocadas em reuniões paralelas eram de como melhorar a capacidade das atuais conexões. No momento, as redes acadêmicas brasileiras estão ligadas ao exterior, principalmente através de conexões dedicadas, da ANSP (em São Paulo) e da RNP (no Rio de Janeiro), cada uma com 200 Mbps de capacidade. Embora isto seja suficiente para a maioria de aplicações, a tendência de migrar para usos mais sofisticados, tornados possíveis pelos avanços tecnológicos em redes nos últimos anos, tende a requerer cada vez maior capacidade. Estes usos incluem a transmissão de vídeo de boa qualidade, e a organização cada vez maior de trabalhos computacionais através da cooperação entre computadores espalhados geograficamente. Em áreas de aplicação como física, astronomia, geociências e ciências da saúde, estas técnicas estão ganhando aderentes, que requerem cada vez mais capacidade de comunicação para poderem realizar adequadamente suas colaborações científicas. Em alguns casos, a capacidade disponível hoje não será suficiente, e já se discute as futuras necessidades.

A questão é oportuna e precisa ser respondida. Em 2001, foram criadas algumas novas conexões entre as redes acadêmicas dos EUA e Europa com capacidades entre 2,5 e 10 Gbps (1 Gbps = 1000 Mbps). Isto permitiu que fossem demonstradas aplicações inéditas de colaboração internacional no evento iGrid realizado em Amsterdã, Holanda em setembro de 2002. A questão é premente, pois em 2003 deve entrar em funcionamento a rede GIGA, entre os estados do RJ e SP, dedicada para projetos de pesquisa e desenvolvimento, onde a capacidade das conexões será entre 1 e 10 Gbps (v. coluna de 16 de dezembro de 2002). Se quisermos admitir a interoperação de aplicações nesta rede com colaboradores no exterior desejada por nossos pesquisadores, será essencial providenciar a comunicação em patamares semelhantes.

Pelo escrito aqui, o leitor deve ficar com a distinta impressão que não acaba nunca o trabalho de projetar, instalar e operar as redes de comunicação, cada vez com maior capacidade, que se tornaram infra-estrutura tão fundamental para os trabalhos de pesquisadores e educadores nos últimos anos. Vou encerrar lembrando um trecho favorito meu, do encontro entre Alice e a Rainha Vermelha, do livro Alice Através do Espelho, do autor inglês Lewis Carroll. Alice reclama que tem correr muito, e não sai do lugar. A resposta da rainha: "Aqui, você tem que correr o quanto pode, só para ficar no mesmo lugar. Se quiser sair do lugar, você tem que correr pelo menos duas vezes mais rápido". Cabe como luva a esta área de redes. Em todos os países estamos aumentando aparentemente sem fim a sua capacidade para viabilizar os novos usos. Só que, quando alcançada a meta original, outro pesquisador já criou uma nova exigência, e a meta foi mudada de lugar.

Michael Stanton (michael@ic.uff.br), que é professor do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense e também Diretor de Inovação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), escreve neste espaço desde junho de 2000 sobre a interação entre as tecnologias de informação e comunicação e a sociedade. Os textos destas colunas estão disponíveis para consulta.