Michael Stanton

WirelessBrasil

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22/06/2003
ALICE nos países das maravilhas

Inicio este meu quarto ano de contribuições a este espaço retornando ao assunto do papel das redes de comunicação usando tecnologia Internet para a colaboração entre educadores e pesquisadores em diferentes países, especialmente entre a América Latina e a Europa. Há exatamente um ano, na coluna de 27 de junho de 2002, registrei o primeiro encontro, na cidade de Toledo na Espanha, entre representantes das redes acadêmicas da Europa e América Latina, onde estiveram representados 12 dos 18 países latinos (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela) que poderiam participar no programa ALIS, às vezes escrito @LIS, que significa Alliance for the Information Society (Aliança para a Sociedade de Informação) (europa.eu.int/comm/europeaid/projects/alis). Como representante do Brasil participava a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa - RNP (www.rnp.br). Nessa coluna expliquei que o programa ALIS estaria financiando projetos internacionais de demonstração em áreas como governo eletrônico, educação à distância e outros usos sociais da comunicação via Internet. Adicionalmente existe uma linha de financiamento para promover a interconexão de redes acadêmicas latino-americanas à rede pan-européia, GÉANT. Na reunião de Toledo, os representantes presentes da América Latina resolveram aceitar o desafio de se organizarem para que, juntos, procurassem uma solução que pudesse ser financiada através do programa ALIS.

A caminhada iniciada em Toledo está começando a frutificar, de diversas formas. Em primeiro lugar, decidiu-se estabelecer uma organização internacional cujos membros são as próprias redes acadêmicas nacionais dos países da região. Na semana passada, um ano depois de Toledo, foi criada formalmente a CLARA - Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas, cujos estatutos foram adotados pelos representantes de redes nacionais de 13 dos 18 países envolvidos numa reunião realizada em Valle de Bravo, México. Espera-se a adesão dos outros 5 países iniciais dentro de poucos meses. CLARA também aceitará como membros redes nacionais de qualquer outro país na região de América Latina e as ilhas do Caribe. A principal atividade prevista para CLARA é montar e operar uma rede latino-americana promovendo a integração das redes acadêmicas nacionais dos países da região.

Mas o grande motivo para que estas redes acadêmicas latino-americanas colaborem entre si neste momento é a perspectiva de participar no projeto ALICE (América Latina Interconectada Com Europa), coordenada pela DANTE (www.dante.net), administradora da rede pan-européia, GÉANT. Depois de realizar em 2002 estudo de viabilidade de como interligar as redes de América Latina à GÉANT, a DANTE conseguiu aprovar no início deste mês o financiamento do projeto ALICE, com recursos do programa ALIS (www.mct.gov.br/comunicacao/textos/default.asp?cod_tipo=1&cod_texto=3486). O projeto ALICE prevê a montagem da rede prevista pela CLARA, com conexão para GÉANT, onde os europeus vão financiar 80% dos custos totais durante dois anos e meio de operação, até um teto de €10 milhões. Os outros 20% serão custeados pelas redes nacionais de cada país, com a contribuição de cada uma determinada em função da capacidade e custo real de seu acesso à rede da CLARA. No estudo de viabilidade de 2002, concluiu-se que era exeqüível este projeto dentro dos limites orçamentários propostos. Atualmente, está sendo realizada uma licitação internacional para adquirir os recursos de telecomunicações e equipamentos necessários para pôr em funcionamento a rede almejada, e espera-se que a nova rede irá começar a funcionar no segundo semestre de 2003.

Quais serão os benefícios objetivos advindos destas iniciativas? Enxergo vários que são relevantes. Pela primeira vez na sua curta história, os custos de conectividade internacional da Internet acadêmica entre a América Latina e uma outra região do mundo serão compartilhados, neste caso com francos benefícios para nosso lado. Além de reduzir substancialmente os custos desta comunicação para os 4 ou 5 países onde já existe conectividade, os custos compartilhados com os europeus da nova rede estão promovendo pela primeira vez levar conectividade internacional dedicada a vários outros países onde já existem redes acadêmicas nacionais em funcionamento. Em diversos casos, esta conjunção CLARA-ALICE está incentivando a montagem de novas redes acadêmicas, especialmente nos países relativamente pequenos da América Central.

Imagina-se que as conseqüências mais importantes da implantação desta nova infra-estrutura não será necessariamente a melhoria de comunicação dos educadores e pesquisadores da América Latina com seus colegas europeus, mas com seus próprios colegas latinos, comunicação esta francamente minimizada até agora na era Internet. Esta "inclusão digital" vem um pouco tarde, se considerarmos a longa história de intercâmbio cultural no hemisfério. Melhor tarde do que nunca: a reunião da semana passada no México onde foi constituída a CLARA foi seguida por visita de representantes de CLARA às organizações interamericanas OEA (Organização de Estados Americanas) e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para apresentar tanta a CLARA como as perspectivas abertas com o projeto ALICE. Poderemos esperar uma ênfase maior na tecnologia de comunicação Internet para integração e desenvolvimento em futuras ações destas organizações.

Outra característica importante do projeto ALICE é o aparecimento europeu no cenário Internet na região. Isto não deve surpreender, dada a herança cultural da longa presença ibérica na região e o recente retorno em peso de investimento europeu no setor de telecomunicações, esteio básico para a tecnologia Internet. Desde o final dos anos 1980, quando surgiu pela primeira vez em escala global a comunicação através de computadores, os EUA monopolizam os meios de acesso à América Latina, e mais de 99% do tráfego Internet originado na América Latina passam pelos EUA, mesmo se destinados a outra região do mundo. Mesmo no caso de tráfego destinado a outro país da região, a maior parte passa pelos EUA no seu caminho ao destino. Pelo menos para o tráfego acadêmico, a rede da CLARA permitirá encaminhar tráfego intra-regional sem sair da região, e escoará diretamente para Europa o tráfego destinado a esse continente.

Não deve surpreender que os norte-americanos estão acompanhando com interesse estas novidades. Afinal, ganharam este monopólio da Internet sem esforço e sem investimento. Agora que surgiu um concorrente no "seu quintal" poderemos esperar que haja uma reação correspondente por parte do governo norte-americano, talvez das suas agências envolvidas em cooperação científica internacional, por exemplo a NSF (Fundação Nacional de Ciências) ou os NIH (Institutos Nacionais de Saúde), que também foram visitados por representantes de CLARA depois da reunião de México.

Finalmente, é bom reconhecer o papel do Brasil e especialmente da RNP na condução desta iniciativa. Desde o primeiro momento em Toledo em 2002, a liderança do lado latino-americano foi exercido naturalmente pelas quatro redes acadêmicas mais estabelecidas na região, que são justamente a RETINA da Argentina, a REUNA do Chile, a CUDI do México e a RNP. Mesmo antes do anúncio do programa ALIS já havia entendimentos destas quatro sobre formas de colaboração para a montagem de uma rede latino-americana. A iniciativa européia veio em boa hora. A organização CLARA se edificou na confiança previamente estabelecida entre seus dirigentes, e como presidente do conselho diretor provisório foi aclamada pelos presentes a indicação de Nelson Simões, diretor geral da RNP.

Michael Stanton (michael@ic.uff.br), que é professor do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense e também Diretor de Inovação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), escreve neste espaço desde junho de 2000 sobre a interação entre as tecnologias de informação e comunicação e a sociedade. Os textos destas colunas estão disponíveis para consulta.