Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2003 Página Inicial (Índice)
24/10/2003
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Bolívia: informação e comunicação
Recentemente estive na capital do país vizinho da Bolívia para participar em duas conferências científicas, e a pude observar de perto vários aspectos dos seus assuntos internos, potencialmente de interesse mais amplo.
Evidentemente, não posso deixar de comentar os últimos acontecimentos, que levaram à renúncia antecipada do então presidente, Gonzalo Sánchez de Losada, alvo de uma ampla campanha de mobilização popular durante as últimas semanas. Cheguei a La Paz pela primeira vez no dia 19 de setembro, uma sexta feira, no meio de uma greve geral de 24 horas. A primeira evidência era a falta parcial de transporte do aeroporto para a cidade. Felizmente, havia alternativas, e cheguei ao centro da cidade sem grandes problemas, embora o bloqueio com pedras das principais vias obrigou o motorista a procurar uma rota alternativa para meu hotel. Não saí mais aquele dia, pois a altitude (de quase 4000 metros) de La Paz recomenda que descanso primeiro dia o viajante que chega de altitudes menos elevadas, e eu vinha do Rio de Janeiro. No dia seguinte, sendo sábado, a greve havia terminado, e não tendo maiores dificuldades para me locomover, segui viagem em tranqüilidade.
Uma semana depois um colega de viagem me perguntou sobre como estava La Paz, dizendo que havia ouvido falar do seqüestro de turistas estrangeiros em Copacabana, cidade boliviana no litoral do Lago Titicaca. Procurei saber da imprensa internacional, inclusive a brasileira, e nada encontrei. Somente consegui ter notícias de Bolívia da imprensa local, que tem uma presença significativa na Internet. Foi a primeira vez que usei com vantagem o sítio australiana "Milhares de jornais na Rede" (www.onlinenewspapers.com), que lista os jornais digitais por país. Na imprensa boliviana, falava-se, com preocupação, dos incidentes em Copacabana, e das primeiras mortes ocorridas em conflitos entre grevistas, que bloqueavam as estradas, e as forças de segurança (polícia e exército) do governo boliviano.
Voltei a La Paz no início da semana do dia 29 de setembro, e a situação local havia deteriorado, com presença muito maior de tropas nas ruas, especialmente na cidade de El Alto, onde fica o aeroporto da capital. As conferências de que participei foram realizadas na zona sul de La Paz, mas fiquei hospedado no centro e tive várias reuniões de trabalho nesta parte. De segunda a sexta, o centro da capital era tomado durante o dia por manifestações, com impacto considerável sobre o trânsito. Mas ainda não havia nada na imprensa estrangeira a respeito do que se passava no país. Parecia que Bolívia não interessava a ninguém, nem aos países vizinhos, como o Brasil. Os últimos dois dias passados lá eram sábado e domingo, sem manifestações. Só perturbava o trânsito a festa popular de N.Sa. do Rosário, próximo do meu hotel, com desfile de danças típicas nas ruas.
Uma semana depois, no sábado, dia 11 de outubro, começaram os conflitos mortais de El Alto, com o fuzilamento de dúzias de manifestantes em choques com as tropas, levando ao isolamento total de La Paz e, em poucos dias, à renúncia do presidente Sánchez de Losada e sua substituição. Era somente a partir desta data que começaram a aparecer na imprensa internacional reportagens sobre a situação disfuncional reinando na Bolívia.
Confesso que fiquei assustado com esta manifesta falta de interesse da imprensa brasileira no país vizinho, especialmente como a ida para La Paz de numerosos turistas e cientistas brasileiros, que embarcaram nos vôos regulares da Varig e da Lloyd Aereo Boliviano, e somente descobriram o que estava passando nessa cidade depois de desembarcar no aeroporto de El Alto. Eu tive sorte pois cheguei e saí antes da convulsão final, mas outros não tiveram a mesma boa fortuna e ficaram por vários dias reféns de uma situação insegura e perigosa por absoluta falta de informação previa a respeito do que os aguardava. Qual é a conclusão? Não sei dar uma única resposta. É evidente para mim que a imprensa brasileira falhou em informar adequadamente sobre o que passava no país vizinho, deixando ao léu os viajantes que iam para Bolívia. Mas não era apenas da imprensa daqui, pois Bolívia só faz manchetes no exterior quando acontece algo realmente bárbaro, como o fuzilamento de manifestantes nas ruas. As companhias aéreas também se comportam como avestruzes. Um conhecido meu, que estava com passagem marcada pela American Airlines de La Paz para EUA, queria trocar o vôo por outro que saía de Lima, e a companhia de aviação não deixou, alegando que a situação em La Paz não era problema dela.
Mudando de assunto, mas permanecendo ainda focado em tecnologias de informação e comunicação na Bolívia, encontrei lá dois fenômenos interessantes. O mais simples de compreender era o "orelhão andante". Quando foi lançado aqui o telefone celular pré-pago, já o vi taxado de "orelhão de bolso". Pois bem, na Bolívia existe isto como serviço na rua. Você quer falar por celular, por exemplo, para outro celular (era meu caso)? Tem para alugar. O aparelho, normalmente acorrentado ao seu portador, está a sua disposição pelo bagatela de um boliviano (menos que 40 centavos de real) por minuto. Eu estava num restaurante e precisava fazer uma chamada. Sem problema. O garçom saiu na rua e trouxe de volta um "orelhão andante" destes.
A outra surpresa em La Paz era a abundância de postos Internet em quase qualquer beco da cidade. Isto eu já havia visto em outras viagens que fiz recentemente. Só não os encontrei com tanta facilidade nos Estados Unidos e no Brasil. Um posto Internet, às vezes chamado de "café Internet", é um local onde se pode usar recursos Internet, por exemplo, acesso WWW ou correio eletrônico, por um preço módico (entre R$1 e 2 por hora, pelo menos na Bolívia). Os computadores não são novos, em geral, mas são adequados. Tipicamente um posto destes terá até uma dúzia de computadores, talvez uma impressora, todos ligados em rede local com conexão de pelo menos 256 kbps via linha ADSL (como o serviço Speedy da Telefônica ou Velox da Telemar). O custo de montar e manter um posto destes é muito pequeno, e o preço baixo do serviço é atraente para os jovens. Numa cidade como La Paz, (até recentemente) na rota turística da juventude mundial, estes postos Internet têm turistas como usuários. Mas a freguesia não se limita apenas a turistas, e a maioria dos usuários são cidadãos do próprio país. Eu pergunto: por quê esta forma de inclusão digital não se popularizou entre nós? Temos todas as condições necessárias para chegar lá: os equipamentos (especialmente de segunda mão) são facilmente acessíveis, as linhas ADSL estão aparecendo a preços razoáveis. E creio que existe um mercado para tais serviços. Será que ele somente poderá ser atendido por iniciativas governamentais, como os telecentros da prefeitura da cidade de São Paulo?
Vou
finalizar dando meus votos que os bolivianos consigam superar seus problemas
atuais. Quando estive em La Paz, conversei com várias pessoas sobre a eventual
participação da Bolívia na CLARA, iniciativa em curso de integrar mais
fortemente as comunidades acadêmicas dos países da América Latina através da
interconexão das redes Internet usadas em cada país por estas comunidades (v.
coluna de 22 de junho). Embora já tenha existido nos anos 1990, atualmente
não existe uma rede Internet dedicada à comunidade acadêmica na Bolívia, como
temos no Brasil e em vários outros países da região (Argentina, Chile, Costa
Rica, México, Uruguai e Venezuela). A iniciativa CLARA, e o apoio dado a ela
pela União Européia através do projeto ALICE, está possibilitando recriar as
redes Internet para uso acadêmica nos demais países, inclusive na Bolívia. Além
de promover a cooperação internacional entre educadores e pesquisadores, esta
aproximação entre as comunidades acadêmicas dos países da região deverá também
aumentar o fluxo de informações entre estes países, contribuindo para diminuir
nosso desconhecimento uns dos outros.