Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2005       Página Inicial (Índice)    


20/07/05
Um internauta quase-nonagenário

Há um mês morreu meu pai, John Gerarde Stanton. Ele faria 90 anos em setembro, e ficou lúcido até o final. Na véspera, quando estive com ele pela última vez, estando impedido de falar por causa de um tubo na garganta, ele escreveu uma notinha pedindo água e ... cerveja!

A escrita para ele era fundamental. Correspondente prolífico, ele usou e abusou das cartas a vida inteira, sempre escritas com uma caligrafia distintiva. Foi meu maior correspondente desde o ano quando deixei a nossa cidade de Manchester, para estudar e mais tarde trabalhar em outras cidades e países. As cartas regulares nos mantinham em contato durante 36 anos apesar das distâncias.

Ele já era escolado nisto, pois, como eu, era filho único, e ficou anos longe dos pais. Ele passara seis longos anos no exterior, um soldado no serviço do seu país durante a Segunda Guerra Mundial. Como ele, havia milhões de outros e, como ele, eles escreviam cartas regularmente à família e aos amigos para contar as novas, que pudessem passar pelo crivo dos censores militares, ou simplesmente histórias.

Ele participou em eventos famosos dessa guerra, apesar de atuar na retaguarda dos guerreiros, por causa de seu ofício de mecânico de veículos motorizados. Sua primeira missão foi integrar a Força Expedicionária Britânica enviada para reforçar o exército belga perante a ameaça da Alemanha de Hitler. Como é bem conhecido, esta força teve que se retirar às pressas perante a ofensiva alemã, e acabou sendo levada de volta para a Inglaterra das praias de Dunquerque por uma frota de pequenas embarcações. Depois ele foi enviado para o Norte da África onde passou uns dois anos no deserto, em conflitos primeiro com tropas da Itália e depois da Alemanha. Foi nesse período que acabou sitiado no porto de Tobruk (hoje na Líbia). Depois do deserto, tudo era lucro e ele passou os últimos dois anos desta guerra na Itália e na Noruega. Sua memórias do seu tempo no exército eram muito vívidas, e ainda recentemente escreveu sobre algumas delas para uma amiga na Inglaterra.

Depois desta confusão toda, voltou para Manchester, casou-se com minha mãe e eles tiveram um único filho, a quem ele deu muita atenção. Aliás, ser filho único de um filho único dá nisto, pois tive os pais e os avós paternos para cuidar de mim durante todo o tempo antes de ir para estudar na faculdade. Ao pai devo meu gosto pela leitura, pelos números, pela geografia e por Manchester United, todos muito queridos até hoje. Nos tempos de paz, ele teve que ralar para sustentar a família e foi neste período que ele fez sua última incursão em eventos históricos, quando, sem a família, ele foi trabalhar nos campos petrolíferos do Irã, na véspera da expropriação pelo governo daquele país da companhia de petróleo britânica que os operavam. Em conseqüência sua estadia no Irã foi curta, e depois disto ele nunca mais viajou ao exterior a serviço.

Ele sempre tinha curiosidade por coisas novas. Quando jovem nos anos 1930 ele se interessava por motores, e combinava trabalhos em empresas de transportes com uma paixão para ter seu próprio carro. Teve vários carros e aprendeu como cuidar e consertá-los, conhecimentos que facilitaram seu serviço militar durante a guerra, quando pôde aproveitá-los profissionalmente. Também aprendeu outras habilidades, trabalhando com carpintaria e eletricidade, porém sem conseguir transmitir estes gostos para o filho. Depois da guerra, dos transportes se mudou para a televisão, onde trabalhava por alguns anos, na área hoje chamada de logística.

Ele não era ambicioso, e nunca galgou muitos degraus nas organizações onde serviu. No final da guerra havia chegado ao patente de cabo, depois de seis anos de serviço. Por outro lado, era generoso com os vizinhos, os parentes, o colégio do filho e a igreja, dedicando-lhes tempo e energia,. Gostava de fumar cachimbo, e bebericar cerveja, uisque escocês e vinho. Como minha mãe também trabalhava, vivíamos confortavelmente, porém sem ostentação. Tínhamos a primeira TV na rua, um carro, e saíamos em férias de verão no litoral, usualmente em Bournemouth, perto da Ilha de Wight. Tive uma bicicleta desde os quase onze anos e gozava de bastante liberdade para passear em Manchester e fora dela.

Com 18 anos saí de Manchester para estudar na Universidade de Cambridge, o que alegrava os pais. Porém eles não contavam com as conseqüências de soltar seu filho no mundo. Nunca mais voltei a morar em Manchester: com 23 anos já estava estudando no exterior, e com 25 trabalhando no Brasil. Dois anos depois casei e comecei a criar minha família, dois meninos e uma menina, aqui no Rio de Janeiro. Foi o início das visitas dos pais ao Brasil. Vieram aqui quatro ou cinco vezes nos anos seguintes. O pai até começou a estudar português, tendo como professora uma carioca que fazia sua pós-graduação em Manchester. Eles ficaram amigos desde então.

Entre 1979 e 1980 meus pais se aposentaram do trabalho, mas não da vida. Intensificaram suas atividades sociais, e ainda encontraram uma maneira de complementar sua aposentadoria entregando catálogos. Rarearam as visitas deles, porém ficaram mais freqüentes nossas visitas para Inglaterra, e incluíram uma licença sabática minha da PUC no final dos anos 1980. Esta última visita coincidiu com o período dos meus primeiros contatos com o que viria a ser a Internet, e eu via isto como algo que poderia facilitar a comunicação familiar. Entretanto, não consegui viabilizar isto nessa época. Apenas comecei a usar o fax para me comunicar com os pais, o que tinha quase o caráter imediato do correio eletrônico. O pai ainda respondia através de cartas postais.

Minha última visita à casa deles em Manchester foi em 1999. Fui com uma proposta inusitada: que trocassem esta casa por um apartamento no Rio ao lado do meu. Os pais já estavam com mais de 80 anos, e a saúde da mãe já não era tão robusta. Argumentei que seria mais fácil eu poder prestar-lhes ajuda se estivessem mais perto, e, além disto, o clima do Rio era bem superior. A mãe topou entusiasticamente e tratou de superar a resistência do pai. Seis meses depois, venderam a casa em Manchester e embarcaram para o Rio, levando o que puderam da casa antiga, que era maior que o apartamento. Preciso explicar aqui que foi fundamental nesta confusão o auxílio do meu filho mais velho, já nesta época morando em Londres, que obteve toda a documentação necessária para sua emigração ao Brasil. E os pais superaram as não poucas dificuldades para se estabelecer no Rio.

Neste último capítulo da vida do pai, ele voltou a usar seus conhecimentos de português, que já estavam um pouco enferrujados, e enfrentou uma série de empecilhos para montar um cotidiano normal. Por exemplo, com quase 85 anos, tirou sua carteira de motorista brasileira, e passou a enfrentar o trânsito carioca até o final da sua vida. Descobriu marcas aceitáveis de fumo para cachimbo e de bebidas, e onde arrumar ingredientes para fazer as comidas costumeiras da Inglaterra. E descobriu a Internet.

Assim que chegou, sua produçao de cartas havia aumentado enormemente, pois tinha tantas novas para contar para os amigos e parentes. Já em 2000, virou internauta. Inicialmente usava computador na minha casa, mas depois adquiriu um notebook velho que usava na casa dele, ligada por rede WiFi à minha conexão Internet. Assim habilitado, com gosto transferiu muitas das suas correspondências postais para as eletrônicas. Isto era evidentemente mais fácil com os correspondentes mais novos, mas ele juntou um grupo seleto de octogenários que se comunicavam assim, muitas vezes diariamente. O uso da Internet não se limitou ao correio. Aprendeu escanear fotos e enviá-las pelo correio, bem como verificar os resultados da MegaSena através da página WWW da Caixa. Usava irregularmente a Rede para ler os jornais, porém na prática as notícias eram acompanhadas pela TV a cabo, e o entretenimento principal era ver filmes também na TV (em inglês, é claro) e acompanhar Manchester United nos campeonatos da Inglaterra e da Europa.

Recentemente, participei numa discussão da série Grandes Temas da Rádio Bandeirantes, onde outro participante defendia que a Internet nos torna mais solitários. Pude discordar dele baseado em experiência própria, e do meu pai. Para o pai a Internet tornava mais próximos os entes queridos. No dia 29 de maio, nasceu sua bisneta Júlia em Madri. Graças à Internet, pôde ao menos ver suas fotos pouco depois, no mesmo dia que eu. Uma semana depois adoeceu pela última vez.

Eu gostei de ter tido a oportunidade de conviver com o pai durante estes últimos cinco anos, especialmente depois de ter passado tanto tempo longe dele. Sinto sua ausência agora, o que é natural. Ele viveu uma vida longa e cheia, e com boa saúde de modo geral. E não perdeu a curiosidade. Poderia pedir mais?