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Urnas eletrônicas: Brasil na contramão da história |
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Autor: Michael Stanton |
Michael Stanton ( michael@ic.uff.br ) nasceu e viveu na Inglaterra até os 23 anos. Depois de dois anos nos Estados Unidos veio se radicar no Brasil, e mora atualmente no bairro da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. Doutor em matemática pela Universidade de Cambridge, desde 1972 se dedica, já no Brasil, ao estudo, ensino e prática da informática e suas aplicações. Seu atual namoro com as redes de comunicação começou em 1986, e ele participou ativamente na montagem no País das redes Bitnet e Internet, tendo participado da coordenação da Rede-Rio e da Rede Nacional de Pesquisa nas suas fases formativas. Depois de longa atuação como professor do Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, hoje é professor titular de comunicação de dados do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Niterói, RJ, onde coordena o projeto de modernização da infra-estrutura de comunicação desta universidade; é Diretor de Inovação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP); mantém uma coluna quinzenal no Estadão desde junho de 2000 sobre a interação entre as tecnologias de informação e comunicação e a sociedade.
Urnas eletrônicas: Brasil na contramão da história
Leitores antigos deste espaço teriam notado como alguns temas voltam a ser discutidos repetidamente. Entre estes, o que mais tem sido comentado foi nosso sistema de votação eletrônica, introduzido nos anos 90, que tornou o país um pioneiro na automação da votação. Entretanto, como todos sistemas novos, é absolutamente essencial o exame cuidadoso dos seus méritos para ver se o brilho da novidade esconde alguns inconvenientes que não estavam presentes no sistema anterior. O brilho da urna eletrônico se deve, sem dúvida, ao ritmo acelerado com o qual se produz um resultado para o pleito. Digo "um resultado", e não "o resultado", porque o sistema foi construído de tal maneira que nós, os eleitores, não temos nenhuma garantia real que os totais dos votos declarados por uma urna realmente correspondem aos votos dados pelos eleitores que votaram nesta urna.
A razão básica desta falta de garantia é que a urna é na verdade um reles computador, programado por pessoas, e os programas nele instalados estão sujeitos aos mesmos males que todo software no mundo - que não funcionam de acordo com o esperado pelo usuário, por desvios no seu projeto, por descuido ou por intenção do projetista ou programador. Por causa das características muito singulares desta aplicação de computadores, usada para determinar a vontade popular para a escolha de governantes e parlamentares, a confiabilidade dela precisa ser inatacável, pois a perda de confiança do eleitor no sistema de votação subverte o objetivo da consulta popular.
Como já tivemos a oportunidade de explicar em colunas anteriores (por exemplo, as colunas de 13 de novembro de 2000 e de 17 de novembro de 2002, diferente da antiga cédula eleitoral, marcada a caneta pelo eleitor para indicar seu voto, e logo passível de recontagem em caso de dúvida, a urna eletrônica registra o voto numa memória magnética, e logo o soma aos demais votos para os mesmos candidatos, desaparecendo o voto individual, e eliminando a possibilidade de recontagem dos votos. Um erro de programa da urna, por descuido ou por intenção do projetista ou programador, que interfira com a correta totalização dos votos, não poderá ser detectado através da recontagem.
Para restaurar a confiança do eleitor no correto funcionamento da urna eletrônica, passou-se a exigir que o resultado do ato de votar pudesse ser conferido direta e imediatamente pelo eleitor. No caso brasileiro, isto vinha sendo defendido pelo ex-senador e agora governador Roberto Requião, cuja proposta de impressão do voto foi incorporada na legislação eleitoral adotada em 2001 para as eleições de 2002. O esquema adotado foi acoplar à urna uma impressora, que imprimiria em papel o voto do eleitor e o exibiria para este poder confirmar ou não seu voto. Em caso de confirmar, o papel seria depositado numa urna convencional; no outro caso, o voto seria anulado e reiniciado por este eleitor. A geração em papel dos votos permitira realizar auditoria dos resultados desta urna, e isto deveria ser feito aleatoriamente para uma pequena fração das urnas, como medida de precaução.
Na eleição de 2002, aproximadamente 5% das urnas ganharam a capacidade de impressão defendida pelo ex-senador Requião, e, embora não foi avaliada com muita precisão a aceitação da novidade, a maioria de relatos informais atesta seu bom funcionamento. A legislação eleitoral adotada em 2001 previu a gradativa extensão da impressão do voto a todas as urnas, na medida do possível.
É necessário dizer aqui que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que comanda a Justiça Eleitoral, responsável pela implementação da legislação apropriada, jamais viu com bons olhos a modificação da urna eletrônica adotada em 2001. Seu quadro profissional, que havia supervisionado a automação do sistema eleitoral desde os anos oitenta, parece sofrer da auto-suficiência freqüentemente encontrada em instituições pouco expostas a questionamento. Afinal, podem contar com os próprios juizes do tribunal como seus advogados perante o Congresso, que precisa aprovar seus projetos, e em assuntos técnicos este juizes têm como seus assessores o próprio quadro profissional, fechando o círculo. Esta combinação vence quase todos os embates, com a reles exceção de 2001, quando houve o escândalo da subversão do painel computadorizado de votação do Senado, cuja clara falta de confiabilidade respingou politicamente na urna eletrônica, levando à aprovação nesse ano da proposta de impressão do voto, apesar da oposição dos técnicos do TSE.
Mesmo aceitando a impressão do voto, como proposto, o então presidente do TSE, Nelson Jobim, soube convencer o Senado a encontrar uma forma de enfraquecer sua lógica, que requeria a contagem dos votos impressos de certa proporção das urnas, escolhidos ao acaso, depois de realizado o pleito. Ao invés disto, a escolha seria feita antes do pleito, com o argumento que a implementação seria mais barata. Isto seria o equivalente da realização de exames anti-doping num evento esportivo, com o anúncio da escolha de quem seria testado antes do dia do evento (v. coluna de 31 de dezembro de 2001). Logo depois do pleito de 2002, o próprio Jobim anunciou que a impressão do voto havia se mostrado desnecessária, e ele defenderia sua retirada oportunamente. Esta promessa está sendo cumprida este ano.
No primeiro semestre deste ano, o senador Eduardo Azeredo introduziu novo projeto de lei para modificar a legislação eleitoral, suprimindo a impressão do voto, como vigora atualmente, sob a alegação que o custo de sua extensão a todo o país seria demasiadamente caro (v. www.tre-ms.gov.br/noticias/noticia393.html). Em reconhecimento da demanda reconhecida pelo Congresso em 2001 por auditoria do voto eletrônico, o projeto do senador Azeredo propõe o "registro digital do voto", o qual supostamente permitiria resguardar os votos individuais dos eleitores, com preservação do seu anonimato, com utilização de assinaturas digitais (v. www.ibdi.org.br/index.php?secao=&id_noticia=133&acao=lendo). Este projeto de lei já passou celeremente pelo Senado, tendo sido discutido e aprovado apenas na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, e não no plenário, e atualmente aguarda consideração pela Câmara dos Deputados.
O cerne da questão é a confiabilidade do processo eleitoral. A adoção do mecanismo do voto impresso teve como objetivo assegurar ao eleitor que sua vontade estava realmente sendo expresso no voto a ser contado. A importância da impressão do voto é , primeiro, que permite imediatamente que o eleitor confira com os próprios olhos a sua decisão expressa por meio da urna eletrônica. Assim ele teria uma demonstração cabal que a caixa preta da urna produz resultados corretos. Em segundo lugar, o voto impresso e guardado em uma urna lacrado não seria passível de posterior modificação. Contrastemos isto com a proposta do projeto do "registro digital do voto", cujos detalhes foram omitidos do texto submetido ao Senado. Nesta proposta não é previsto que o eleitor possa realizar auditoria do bom funcionamento da urna por um mecanismo redundante. Na prática, ele votaria normalmente e não haveria como ele saber qual o voto que foi realmente registrado na memória interna da urna. O registro da escolha do eleitor dependeria do correto funcionamento do programa de computador usado dentro da urna, e, como todos já sabemos, isto não pode ser garantido absolutamente. Este é este o defeito central de todas as urnas eletrônicas como as nossas.
Para demonstrar que esta preocupação com eventuais incorreções da urna eletrônica não é apenas de uma banda de inconformados e sonhadores brasileiros, é necessário olhar para fora do país, especialmente para os EUA, onde as preocupações com mecanismos de votação aumentaram muito depois da enorme confusão das eleições gerais de 2000, resolvidas em favor de Bush pela maioria republicana dos juizes no supremo tribunal daquele país. Desde então, e inspirada em certa parte pela abrangência do voto eletrônico no Brasil, houve uma corrida para adotar novos sistemas de votação, inclusive uns semelhantes à urna eletrônica brasileira. Ao mesmo tempo, vem sendo debatida a questão de confiabilidade do processo de votação eletrônica, como, por exemplo, por uma comissão de professores das grandes universidades Caltech e MIT (v. a coluna de 29 de julho de 2001). A tônica deste debate é justamente encontrar um meio eficaz para a verificação pelo próprio eleitor do funcionamento da urna eletrônica na hora de votar. Em todos os casos, esta verificação utiliza algum dispositivo físico, quer seja este um papel impresso, quer seja uma ficha magnetizada (batizado de frog (perereca) pela comissão Caltech-MIT).
Em 2002, o congresso norteamericano aprovou a lei HAVA (Help America Vote Act), que prevê o financiamento federal da substituição, antes das eleições de 2004, dos antigos sistemas de votação, que são responsabilidade municipal nesse país. Em conseqüência, houve uma corrida para compra de novos sistemas, muitos deles eletrônicos. Não deve surpreender que a maioria dos produtos disponíveis possuem características parecidas com as urnas eletrônicas brasileiras, especialmente no que diz respeito ao baixo nível de confiança nelas depositada.
Na discussão pública sobre este assunto, apareceu o professor David Dill da Stanford University, que tem exercido papel parecido com nosso caro colega Amílcar Brunazo aqui no Brasil (www.brunazo.eng.br/voto-e). [Dill mantém um sítio na rede em www.verifiedvoting.org, onde dá divulgação às questões relevantes e tenta sensibilizar a sociedade norteamericana à necessidade de zelar por sua democracia, através dos mecanismos de votação que permitem verificação do voto pelo eleitor. Inspirado no trabalho do Dill, foi introduzido recentemente no congresso norteamericano um projeto de lei apresentado pelo deputado Rush Holt, chamado de "Lei de Confiança do Eleitor" (holt.house.gov/issues2.cfm?id=5996). Este projeto manda implantar nas urnas eletrônicas até as eleições de novembro de 2004 a impressão do voto nos termos do projeto original do ex-senador Requião, para permitir a auditoria das eleições por meio de documentos em papel verificados pelos eleitores.
Esta semana foi realizado em Denver, Colorado, uma oficina sobre o assunto da verificação do voto eletrônico pelo eleitor (www.verifiedvoting.org/article_text.asp?articleid=46). Neste evento teriam sido discutidos diferentes esquemas para realizar esta verificação, e apresentados produtos (urnas eletrônicas) que já incorporam um ou outro destes esquemas. Uma reportagem jornalística do evento foi publicado no jornal local www.denverpost.com/Stories/0,1413,36~53~1540873,00.html.
Evidentemente é muito cedo para saber como serão encaminhadas estas discussões nos EUA, dentro e fora o congresso, mas a expectativa é que a sociedade de lá vai aprofundar seu conhecimento das alternativas disponíveis para depois optar por soluções que dão ao eleitor a convicção que ele realmente participa através do seu voto na democracia. Isto vai requerer, fatalmente, que na adoção de urnas eletrônicas, estas vêm com mecanismos complementares para permitir a verificação do voto pelo eleitor.
Voltamos agora ao Brasil, país que foi pioneiro, tanto na automação eletrônica do seu sistema de votação, e, corretamente, soube eliminar, através da impressão do voto visto pelo eleitor, o potencial para deturpação da vontade popular através de erros no funcionamento das urnas eletrônicas. Justamente neste momento, quando seus passos estão sendo seguidos por outras democracias de peso, há grande perigo do Brasil errar o caminho, e, aprovando o projeto de lei do senador Azeredo, entrar na contramão da história da democracia.