Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


17/02/2002
Lawrence Lessig e o Direito Autoral

Lawrence Lessig (lessig.org) é professor de direito da Stanford University, e há vários anos vem estudando aspectos legais das tecnologias modernas, e especialmente da Internet. Nos últimos três anos publicou dois livros importantes: em 1999 saiu "Code and Other Laws of Cyberspace" (Código e Outras Leis do Ciberespaço), pela Basic Books (ISBN: 0-465-03913-8), e em 2001 "The Future of Ideas" (O Futuro das Idéias), pela Random House (ISBN: 0-375-50578-4). Infelizmente, estes títulos ainda não existem em tradução para o português.

O primeiro livro, "Code", foi um exame da teoria política do ciberespaço, e especialmente de algumas suposições então comuns entre os usuários da Internet sobre as limitações do alcance governamental sobre este bravo mundo novo. Havia um sentimento entre estes usuários que não seria apropriada a interferência no funcionamento da Internet por parte de governos, que a própria arquitetura do ciberespaço era politicamente neutra e dificultaria a sua manipulação por interesses especiais, e que a expansão de comércio eletrônico e a transferência para a Internet de boa parte do nosso discurso público aumentariam nossa liberdade enquanto cidadãos e consumidores.

Em "Code" Lessig procurou refutar estas noções, argumentando que eram incompletas as descrições do arcabouço político e legal do ciberespaço, e era justamente aquilo que era omitido que impediria a preservação da tal propalada liberdade. O ponto principal que percorre o livro é a importância do "código" (de software) usado para construir a realidade virtual do ciberespaço, pois é ele que restringe e molda o comportamento do internauta, muito mais do que as meras leis. Entretanto, as leis são criadas e promulgadas pelos representantes das nossas sociedades (reais), enquanto o código que restringe nosso comportamento embute os ideais e filosofia dos seus criadores, ou, mais provavelmente, dos empregadores destes.

Como exemplo de como o código pode moldar comportamento podemos citar os incentivos dados para o usuário proferir seus dados de identificação, em troca de um serviço, informação ou software do seu interesse. Para evitar o fornecimento de dados incorretos, o código pode incluir checagem da sua autenticidade, através do envio por correio eletrônico de uma mensagem essencial à integridade da "conversa" entre usuário e serviço. Futuramente, as pessoas serão identificadas com facilidade ainda maior através dos seus certificados de assinatura digital.

O comprometimento da privacidade individual é um dos três temas citados no livro "Code". Os outros são a liberdade de expressão e a propriedade intelectual. A ênfase em liberdade de expressão talvez seja peculiarmente norte-americana, onde a censura é inconstitucional, exceto quando feita e dirigida especificamente para a proteção de menores. Por causa das dificuldades em identificar se um internauta é menor ou não, causou muita comoção nos EUA o fácil acesso a sítios pornográficos ou "somente para adultos", que levou a adoção pelo congresso de uma lei de "decência nas comunicações" (Communications Decency Act, ou CDA), posteriormente julgada inconstitucional pelo supremo tribunal.

O assunto de propriedade intelectual, e especialmente do direito autoral, é mais complexo. Este assunto, explorado também com maior profundidade no seu segundo livro, é hoje um campo de batalha entre interesses conflitantes. O direito autoral é antigo e permite ao detentor do direito o controle sobre a produção de cópias da obra protegida. Quando aplicado a livros e escritos em geral, era desnecessário antes da invenção da imprensa. A facilidade de fazer cópias impressas levou à definição deste direito, que em tempo passou a ser visto como um algo limitado em tempo, para permitir uma solução que conciliasse o interesse em proteger o processo criativo, e o interesse da comunidade em poder desfrutar da invenção alheia, a qual poderia ser estendida por outros criadores.

Quando primeiro definida, o direito sobre cópias era dado durante poucos anos. Depois de caducado o direito autoral, a obra entrava no domínio público, tornando-se lícito ser copiada sem restrição. Entretanto, mudanças tecnológicas podem alterar o equilíbrio entre os interesses em conflito, e temos observado nos últimos anos uma série de inovações com impacto sério sobre o compromisso anterior entre o dono do direito e o interesse da comunidade. A invenção e difusão de tecnologias de fotocopiadoras tornou corriqueira e barata a realização de cópias de obras impressas. Foram modificadas as leis para permitir "uso justo" de fotocópias para estudo individual de obras protegidas.

Mais sério é o reino de som e imagem, também o objeto de direito autoral. As gravadoras de música e a indústria cinematográfica sempre defenderam seus direitos sobre as cópias, mantendo controle absoluto da edição das suas obras. Com a invenção de gravadores em fita magnética de áudio e de vídeo baratos, estas indústrias recorreram aos governos para proteção dos seus direitos. De modo geral, seus anseios não foram atendidos, e era considerado "uso justo" a gravação em fita de músicas e de programas de TV, desde que as cópias não fossem comercializadas. Poderia ser argumentado que as cópias eram inferiores aos originais, por serem analógicas.

O advento do mundo digital mudou tudo isto. Agora todos os meios envolvidos - texto, música e vídeo - são hoje primordialmente criados e usados em forma digital. De obras digitais, podemos fazer cópias perfeitas, a custo ínfimo, usando os computadores pessoais. O que protegerá o direito autoral agora? Bem, tem vários expedientes que foram tentados. Em primeiro lugar, foi estendido enormemente a duração de proteção do direito autoral. Hoje vale por setenta anos depois da morte do autor. O que pode significar em alguns casos uma proteção de uma obra por bem mais de cem anos. Deve-se notar que outros países, inclusive o Brasil, acompanharam a iniciativa norte-americana neste ponto, e nossa lei 9.610, de 1998, reproduz estes prazos
(v. www.minc.gov.br/diraut/leis/L9610.htm).
Em segundo lugar, os donos dos direitos primeiro tentaram proteger-se contra cópia com dispositivos tecnológicos. Infelizmente para eles, para visualizar uma obra requer o mesmo acesso (leitura) que seria necessário para fazer uma cópia digital. Então resolverem tentar controlar as máquinas reprodutoras, obrigando seus fabricantes a não permitir gerar uma saída digital que pudesse ser usada para captar o conteúdo do meio.

É claro que os meios de hoje - CD e DVD - podem ser manuseados por computador, desde que conhecidos os detalhes da formato de gravação. Então as indústrias conseguiram que a nova lei norte-americana de direito autoral, a DMCA - Digital Millenium Copyright Act, de 1998, incluísse dispositivos definindo como crime a tentativa de subverter qualquer mecanismo de proteção usado para proteger direito autoral. Esta subversão incluiria realizar engenharia reversa, pesquisa em métodos criptográficos, e, evidentemente, divulgar detalhes destes esquemas de proteção. Por enquanto, a aplicação desta lei tem sido folclórica, com a prisão nos EUA e subseqüente libertação do programador russo Sklyarov, e as dificuldades de apresentação dos resultados das suas pesquisas do professor Felton, ambos incidentes tendo ocorrido no ano passado (v. coluna de 20 de agosto de 2001).
Há uma tendência clara de contestar também a constitucionalidade desta lei, mas ainda não houve o tempo hábil para isto ocorrer.

No seu segundo livro, Lessig concentra sua atenção sobre os danos para a coletividade das novas leis de direito autoral. Em particular, ele relembra que não pode ser absoluto o direito do autor, permitindo que apenas ele se beneficie com sua criação, como parece ser o resultado de estender para mais de 100 anos a proteção legal concedida em leis recentes, abandonando em definitivo o equilíbrio histórico entre a propriedade e seu usufruto social que marca as legislação anterior. Em defesa desta crítica aponta que o desenvolvimento intelectual da humanidade tem sido quase sempre incremental, com novas criações estendendo o alcance das anteriores. Exemplos abundam no reino das idéias, e entre os mais comuns estariam as peças de Shakespeare, quase sempre baseadas em enredos já conhecidos de outros autores. Atualmente, as leis permitiriam que os autores destes outros enredos impedissem sua utilização para novas criações. Tem um caso atual na justiça norte-americana dos herdeiros da autora de "E o Vento Levou", que tentam impedir a publicação de outro livro que conta a mesma história do ponto de vista dos escravos. E abundam casos de autores de músicas, que impedem que suas obras sejam interpretadas comercialmente por terceiros - v. o caso recente da polêmica nacional do CD de Zé Ramalho cantando Raul Seixas, do qual foram excluídas algumas músicas de autoria de Paulo Coelho (v. www.jt.estadao.com.br/editorias/2001/04/28/var245.html).

Lessig não está contra o direito autoral como conceito, pois reconhece a importância de estimular o exercício de criatividade, através da sua remuneração. Ele quer que seja modificado para um sistema aberto, à semelhança do sistema de patentes, onde um invento é protegido por tempo limitado (não mais de 20 anos), mas pode ser usado livremente por outros, sujeito ao pagamento de "royalties", uma taxa paga ao dono do invento para sua utilização. Crê que com esta mudança os benefícios da criação individual possam servir para basear novas criações, enriquecendo mais a nossa cultura, sem negar aos criadores os benefícios do seu trabalho. Ele chama esta novo espaço de criatividade coletiva de "Creative Commons", e quer atrair para lá os criadores atuais e futuros de obras expressas em meio digital. Estas obras seriam marcadas com as restrições específicas que seus autores querem impor, como condição para colocar a obra no espaço público. A criação de licenças padronizadas diminuiria enormemente o trabalho hoje confiado a advogados para levantar e enquadrar as dificuldades enfrentados na área cultural na produção de novas obras, especialmente nas áreas de música e cinema, onde cada influência precisa ser devidamente identificada e contabilizada. Maiores detalhes se encontram na reportagem recente no jornal SFGate (www.sfgate.com/cgi-bin/article.cgi?file=/gate/archive/2002/02/11/creatcom.DTL). O próprio Lessig já se envolve em realizar esta idéia, e pretende se licenciar temporariamente do seu trabalho de professor para promovê-la. Em breve será lançada o sítio Creative Commons (http://www.creativecommons.org), que pretende oferecer para os interessados acesso a estas licenças padronizadas.

Em Lawrence Lessig, a Internet conta hoje com um colaborador importante para sua evolução, alguém que consegue enxergar além dos problemas legais imediatos provocados pela descontinuidade tecnológica com o passado, analisando e identificando temas mais permanentes nas relações entre as pessoas e a sociedade, e propondo em conseqüência soluções mais completas e adequadas para manter estas relações saudáveis.