Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


04/03/2002
ICANN na encruzilhada

Confesso ter deixado de lado o assunto da ICANN, desde a coluna de 17 de junho de 2001. ICANN, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (www.icann.org), foi criada em 1999 para assumir a coordenação de trabalhos de administração global de endereços, nomes de domínio e outros detalhes dos protocolos usados na tecnologia Internet. Antes esta função era realizada pela Internet Assigned Numbers Authority - IANA, na pessoa do saudoso Jon Postel, sob contrato do governo dos EUA. A transferência para uma empresa privada sem fins lucrativos era vista como um passo essencial na globalização da Internet, pois era inconcebível manter o funcionamento desta nova estrutura sujeito aos caprichos de um único governo nacional. Depois de longo período de debate foi encaminhada proposta para a criação da ICANN, que acabou sendo modificada pelo governo dos EUA para introduzir maior consideração para a participação da comunidade de usuários, e não apenas as pessoas e empresas que proveriam a tecnologia usada e os serviços consumidos. Enfim, foi aprovado que ICANN teria 18 diretores, divididos igualmente entre representantes de usuários e dos provedores dos diferentes serviços, além do executivo principal, que seria nomeado pelos demais diretores. Os 9 vagas de diretor previstas para os usuários foram preenchidos por nomeação. Em 2000, 5 destes diretores nomeados foram substituídos por outros 5, eleitos por voto de pouco mais de 30.000 "sócios individuais" da ICANN, para representar 5 regiões geográficas. No caso da região AL&C (América Latina e o Caribe), foi eleito o brasileiro, Ivan Moura Campos, atual presidente do Comitê Gestor Internet-BR (www.cg.org.br). O mandato dos eleitos vai até novembro deste ano.

Estes diretores eleitos eram vistos como pessoas de fora da cultura vigente até então na ICANN, onde todos os demais diretores haviam sido nomeados/escolhidos por processos "controlados". Dos 5 novos diretores, dois haviam sido eleitos com plataformas claramente oposicionistas, prometendo lutar para mudar o estilo de operação da ICANN que havia sido adotado até então, e especialmente o papel determinante do quadro de funcionários permanentes, em detrimento dos diretores, de tempo parcial e não remunerados. Era o temor das conseqüências de eleições diretas que fez com que decidiu-se preencher apenas 5 das 9 vagas por eleição em 2000, decisão que ajudou a tumultuar o processo naquele ano.

Como explicada na coluna de 17 de junho de 2001, logo depois da posse dos diretores eleitos, já foi dado início a um estudo, presidido pelo antigo primeiro ministro da Suécia, Carl Bildt, para avaliar o papel dos diretores eleitos e eventualmente apresentar propostas para modificá-lo e o processo da sua seleção. A comissão Bildt já entregou seu relatório final em novembro de 2001 (www.atlargestudy.org/final_report.shtml), onde foi recomendado manter a participação de diretores eleitos pelos usuários, porém foi sugerido que estes diretores deveriam ser limitados a um terço, não metade, do total, sendo os demais escolhidos para representar os interesses, respectivamente, dos provedores de serviços e de entidades empenhados no desenvolvimento tecnológico da Internet. Ao invés de manter o funcionamento das eleições de 2000, quando era permitido inscrever-se como eleitor qualquer pessoa com 16 anos que possuía um endereço de correio eletrônico e outro de correio postal, foi proposto limitar o eleitorado apenas aos responsáveis de nomes de domínio Internet (como estadao.com.br ou pizzadaesquina.com.br), o que permitiria maior confiança na autenticidade dos eleitores, uma vez que estas pessoas já estariam cadastrados em algum registro existente de nomes de domínios.

Para dar maior substância à representação destes usuários, foi ainda sugerido que fosse criada uma entidade básica da ICANN (uma "supporting organization"), para se juntar às existentes nas áreas de endereços, nomes e protocolos. Esta organização, como a própria eleição dos diretores, continuaria a ser baseada em blocos geográficos regionais, tendo sido sugerida a divisão em dois do atual bloco da Ásia/Australásia, entre uma parte que incluiria os países do centro, sul e oeste da Ásia, e a outra que ficaria com o restante (o chamado bloco "Ásia/Pacífico"). Estas modificações seriam efetuadas em tempo para novas eleições para diretor antes do fim em 2002 do mandato dos diretores eleitos em 2000.

O relatório da comissão Bildt foi criticado por integrantes de estudo paralelo, chamado NAIS (www.naisproject.org), criado na mesma época, e reunindo integrantes da academia e de organizações não governamentais (ONGs), com a participação do brasileiro Carlos Afonso da Rede de Informações para o Terceiro Setor - RITS (www.rits.org.br). Para o NAIS, o mais importante era a ampla participação da comunidade de usuários, e ele não apenas aprovou a experiência das eleições de 2000, como queria estendê-lo enormemente. Portanto, o NAIS criticou duramente as propostas da comissão Bildt que eram vistas como maneira de limitar a participação na ICANN dos usuários individuais da Internet. Pelo menos em um ponto a comissão Bildt cedeu às críticas do NAIS, e incluiu na versão final do seu relatório a recomendação de proteger a presença de diretores eleitos na ICANN, pelo exigência de uma maioria qualificada para votações futuras de mudança de estatutos da ICANN, impedindo que fossem alterados os estatutos, eliminando os diretores eleitos por maioria simples dos votos da diretoria.

A expectativa da comissão Bildt era de discussão e votação das suas recomendações na reunião anual do ICANN em novembro passado. Entretanto, alegando a necessidade emergencial de dar prioridade a discussões da segurança da Internet na esteira dos atentados de 11 de setembro, o novo executivo principal da ICANN, Stuart Lynn, postergou para a reunião seguinte, de março de 2002, a discussão do relatório Bildt (newsbytes.com/news/01/171866.html). A comissão Bildt, entretanto, continuou a estudar a implantação de mecanismos de eleição para implementar suas recomendações em tempo para eleger novos diretores antes da expiração dos mandatos atuais em novembro de 2002 (www.atlargestudy.org).

Esta então era a situação da ICANN até uma semana atrás, quando foi realizado um "retiro" (para não ser qualificado de reunião) da diretoria na capital dos EUA. Neste retiro, amplamente divulgado e discutido nos dias seguintes, a novidade foi a apresentação por Stuart Lynn da sua visão apocalíptica da iminente falência funcional da ICANN, e de sua proposta para uma reformulação completa da instituição, com descarte total da proposta da comissão Bildt, ou de qualquer outra que envolvesse o conceito do usuário individual da Internet (http://www.icann.org/announcements/announcement-24feb02.htm).

Alegando que a ICANN estava gastando muito tempo, energia e dinheiro em discutir como representar os usuários individuais, Lynn defendeu que esta função melhor cabia aos governos, e propôs que cinco dos quinze futuros diretores fossem indicados por organizações regionais de governos. Dos demais diretores, cinco seriam indicados por serem consideradas pessoas "preparadas" para a função, e cinco o seriam em função de cargos ocupados dentro da ICANN. Estes cargos incluiriam o executivo principal e os presidentes de quatro conselhos que substituiriam as organizações de suporte atuais (endereços, nomes de domínio e protocolos), e que cuidariam, respectivamente, das políticas de endereços e números, de nomes genéricos (.com, .org e semelhantes), de nomes geográficos (.br, .ar e semelhantes) e de assuntos técnicos. Com exceção dos diretores "ex oficio", os demais indicações teriam que ser aprovadas pela diretoria anterior. Em todos os casos, a representação viria em troca de suporte financeiro. Finalmente, Lynn propôs que não houvesse mais recurso de decisões da diretoria da ICANN. No estatuto original, era prevista, porém ainda não implantada, uma espécie de comissão fiscal da ICANN, com poderes para julgar inválidas decisões da diretoria, e esta comissão não existiria mais, na visão de Lynn.

A reação não tardou, e vieram de várias direções (v. por exemplo www.icannwatch.org ou as mensagens enviadas entre 24 e 27 de fevereiro à lista IP do Dave Farber - www.interesting-people.org/archives/interesting-people). Muitos críticos concentraram atenção na falta de clareza do que seriam os limites de ação da nova ICANN, e quem os fiscalizaria. Foi comentado também que a ICANN estava se propondo para assumir a gerência do sistema de servidores raiz do sistema de nomes, hoje realizada sem custo por uma série de entidades tradicionais e independentes. Uma destas, a RIPE (responsável pelo registro de nomes e endereços na Europa, e pela operação do servidor raiz europeu) (www.ripe.net) questionou a sabedoria de deixar o sistema de nomes depender inteiramente do funcionamento da ICANN.

As críticas mais pesadas se dirigiam à tentativa de extinguir liminarmente a experiência com a representação de usuários iniciada em 2000. Não seria exagero dizer que há descrédito geral da capacidade de organizações multinacionais de governos para representar usuários da Internet - a ligação entre umas e outras é tão tênue. Na sua formulação original a ICANN supostamente seria uma maneira a devolver à iniciativa privada, comunitária, incumbências até 1999 cumpridas em nome do governo norte-americano. Agora a direção da ICANN quer abraçar governos, para se livrar das inconveniências da representatividade ampla, e de diretores desbocados. É claro que havia falhas no esquema de votação experimentado em 2000, onde houve clara "captura" dos resultados por eleitores na Alemanha, Brasil e Japão. O relatório Bildt até iria quebrar a continuidade do predomínio pelo menos destes países, por impedir que os sucessores dos atuais eleitos fossem dos mesmos países. É claro que esta medida não acabava com este problema, mas o atenuava.

A próxima reunião da ICANN será em Accra, Gana, começando domingo que vem, dia 10 de março. Sem dúvida alguma, a reunião será o palco de discussão e debate sobre as diferentes propostas para o futuro funcionamento da entidade. Seria uma boa oportunidade para Ivan Moura Campos, o diretor eleito para nossa região, vir ao público para defender (ou não) os mecanismos de representatividade dos usuários que o elegeram diretor da ICANN. Depois, talvez não tenha outra chance.