Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


24/03/2002
Software aberto: o governo está contra?

Na coluna de 6 de maio de 2001, discutimos os assuntos de software livre e software aberto, principalmente do ponto de vista de quem desenvolve software. Hoje eu queria falar um pouco sobre o ponto de vista do seu usuário, que precisa suprir o ambiente de execução, ou plataforma, para os programas que ele utiliza.

Como já se sabe, o componentes principais desta plataforma são o hardware, ou seja, o próprio equipamento computacional, e o sistema operacional. Para o usuário individual o hardware hoje é tipicamente um PC baseado na arquitetura Intel, ou, minoritariamente, um Macintosh da Apple. Ignorando a minoria de máquinas Apple, embora ela não seja desprezível, o hardware Intel permite usar diversos sistemas operacionais, dos quais os melhor conhecidos são Windows, da Microsoft, e vários sabores de Unix, do qual o mais popular é Linux. Linux é software livre, aberto a todos, podendo ser adquirido gratuitamente. Ele foi criado e é mantido por uma comunidade enorme de entusiastas, muitos deles empregados por empresas que também desenvolvem aplicações para esta plataforma. Problemas encontrados em Linux são rapidamente corrigidos e as correções divulgadas. Para o profissional de computação, Linux é muito atraente, pois não esconde segredos do seu usuário. Se for necessário, está completamente aberto seu código-fonte, e este pode ser e é comumente adaptado para situações individuais.

Entretanto, apesar desta abertura do Linux, ele tem pequena penetração no mercado, comparado com a alternativa Windows, que é vendida pela Microsoft. A principal razão para isto é o número enorme de aplicações confeccionadas para esta plataforma, começando com os principais produtos para automação de escritórios da Microsoft, que é o conjunto Office, e para utilização da Internet, como correio eletrônico (Outlook Express), WWW (Iexplorer), videoconferência (NetMeeting) e distribuição de vídeo (Media Player). O fato que muitas empresas adotaram estes produtos já incentiva sua utilização doméstica por seus funcionários, para evitar ter que aprender novas interfaces para o uso do computador (afinal, usar o computador não é algo natural para a maioria das pessoas, e poucas têm a disposição de aprender lidar com mais de um sistema operacional, por exemplo).

Para que quer saber mais sobre as origens desta situação, recomendo um artigo de um dos meus autores favoritos, Neal Stephenson, autor do romance Cryptonomicon (v. a coluna de 27 de novembro de 2000). Este artigo conta uma história divertida do mercado dos sistemas operacionais, chamado "In the beginning was the command line" (No início havia a linha de comando), disponível em www.cryptonomicon.com/beginning.html, em que ele descreve a analisa as forças que nos trouxeram até a situação atual do domínio pela Microsoft do mercado de software, e especialmente de sistemas operacionais.

Este domínio vem tendo conseqüências na área governamental, que deveriam ser analisadas. Por hoje vamos nos limitar ao governo federal, que é o mais visível, e provavelmente onde teve maior grau de "informatização". O problema principal é a imposição do uso de padrões de mercado que pertencem a empresas específicas, usualmente a Microsoft. Por exemplo, uma visita rápida aos sítios WWW de muitos órgãos do governo vai revelar a divulgação de informação, não através de documentos em forma padrão HTML, mas como documentos no formato de arquivos .DOC de MS-Word ou .XLS de MS-Excel. A visualização destes documentos requer que o usuário possua o software correspondente, que está disponível apenas comercialmente, e somente para as plataformas Windows ou Mac-OS (para o Macintosh), mas não para Linux. Ainda pior que isto, em alguns casos, para poder se solicitar serviços (por exemplo, obter financiamento de projetos) do governo federal, a informatização dos processos antes baseados em papel agora obriga a necessidade de submeter a solicitação em arquivos .DOC ou .XLS. Outra prática nefasta e muito comum em certos círculos governamentais é o envio pela Internet de mensagens de correio eletrônico, em forma de arquivos .DOC, como anexos a uma mensagem sumário, contendo algo como "A mensagem está no arquivo em anexo."

Estes expedientes em geral são irritantes e desnecessários, porque existem mecanismos genéricos e padronizados para realizar os serviços necessários, de forma a prescindir o uso das aplicações da Microsoft. O padrão MIME de correio eletrônico permite o envio de textos arbitrários e ortograficamente corretos em português (e em dezenas de outras línguas). Existem também notações padronizadas, como HTML, para a distribuição e coleta de informações no contexto WWW.

Entretanto, há alguns sistemas mantidos e usados pelo governo federal que talvez sejam muito complexos para usar os padrões convencionais de HTML/WWW, e onde decidiu-se adotar o uso de uma aplicação copiada para o computador do usuário e executada localmente. Basicamente, se preenche um formulário complexo, verifica os dados localmente, e envio tudo de uma vez para um servidor governamental através da Internet. Uma aplicação deste tipo é a Declaração de Ajuste do Imposto de Renda de Pessoa Física, da Receita Federal. Outra é o conjunto de programas conhecido como a Plataforma Lattes, adotado pelo CNPq e outros órgãos que fomentam pesquisa. Ambas estas aplicações têm em comum a exigência do uso do sistema operacional Windows da Microsoft no computador do usuário.

Há vários anos a Receita Federal vem incentivando a submissão digital desta Declaração de Ajuste, realizado inicialmente em disquete, e mais recentemente através da Internet. Todos os contribuintes devem conhecê-lo, pois é quase uma unanimidade nacional - mais de 90% das declarações são entregues hoje através da Internet. Entretanto, o software fornecido pela Receita exige o uso do sistema operacional Windows, sem nenhuma concessão aos alternativos. Pela primeira vez do que se tem conhecimento, este ano foi organizado um movimento para reclamar formalmente o fim desta exclusividade, através de um abaixo-assinado, disponível na Rede no endereço www.petitiononline.com/ir2002/petition.html. O texto do abaixo-assinado, endereçado à SRF, é o seguinte: " Nós, abaixo-assinados, vimos por meio deste manifestar nossa insatisfação com a obrigatoriedade imposta pela Receita Federal a todos os usuários de computador de utilizar o sistema operacional Windows para fazer a declaração do imposto de renda. Ainda que o Windows seja, sem dúvida alguma, utilizado pela maioria dos usuários brasileiros, ele não é o único. Há milhares de usuários do MacOS e também do GNU/Linux. Não cabe ao Estado determinar que sistema nós devemos utilizar. Cabe, porém, oferecer opções diferenciadas, respeitando a diversidade e o gosto dos usuários. Por isso, assinamos abaixo e solicitamos que sejam oferecidas versões também para outros sistemas operacionais, já neste ano de 2002. " No dia que escrevo estas palavras, este abaixo-assinado já contava com 4.363 assinaturas, e incentiva-se a adesão de outros interessados, a quem se pede identificar fornecendo nome, endereço de correio eletrônico, cidade e estado.

Situação parecida alcança a comunidade de pesquisadores no país, devido à adoção da Plataforma Lattes pelo CNPq e outros órgãos de fomento federais. A Plataforma Lattes é um conjunto de aplicações usadas que visam "compatibilizar e integrar as informações em toda interação da Agência com seus usuários. Seu objetivo é aprimorar a qualidade dessas informações e racionalizar o trabalho dos pesquisadores e estudantes no seu preenchimento." (lattes.cnpq.br:8888/plataformalattes) Entretanto, exige o uso de Windows, sem abertura para alternativas, com uma exceção - é possível manter atualizado o currículo usando uma interface WWW. Recentemente, o professor Bruno de Oliveira Schneider, da Universidade Federal de Lavras, enviou mensagem à lista de discussão da Sociedade Brasileira de Computação (www.sbc.org.br), para colocar em pauta a obrigatoriedade do uso de Windows e Word no preenchimento de formulários do CNPq. Segundo professor Bruno, no CNPq "quase ninguém reclama disto, e, portanto, isto não é uma questão importante para eles." O professor termina sugerindo uma maior manifestação pelos incomodados, enviando suas sugestões por correio eletrônico para atendimento@cnpq.br.

Enfim, vemos que o governo federal, que deveria se manter neutro na adoção de tecnologias que impliquem em despesas adicionais para os cidadãos, por inércia ou comodidade vem adotando soluções fechadas e comerciais, através de uma série de decisões isoladas, tomadas em diferentes instâncias governamentais. O resultado é a dependência exagerada no trato da coisa pública dos produtos de um único fornecedor, como demonstrado exemplarmente no ano passado, durante a discussão a respeito de que software adotar numa grande compra de computadores para escolas do ensino médio a ser realizada com recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações - FUST (v. www.estadao.com.br/tecnologia/informatica/2001/ago/30/105.htm). Neste caso, as reclamações contra a exigência da adoção do software da Microsoft eram tantas, que acabou sendo adiada a licitação em questão (http://www.estadao.com.br/tecnologia/informatica/2001/dez/14/231.htm). Neste caso, ao menos, foi demonstrado que pode ser modificado o comportamento governamental, se houver a mobilização da sociedade. Portanto, saber reclamar é necessário ao exercício da cidadania.